Perdedor

A estrada descortinava-se como uma serpente à sua frente. O que se via não era uma daquelas paisagens de cinema ou folha de calendário, era apenas um passar rotineiro de árvores, relvas, pequenos morros, campos, pontes e de vez em quando um buraco mais graúdo que fazia o pequeno veículo diminuir a sua marcha ou saltar como pipoca na panela.

No interior do carro um homem de meia idade, meio calvo, meio alto, meio malvestido fumava um cigarro atrás do outro. Silvério Damasceno passava as marchas do veículo de maneira tensa. Lembranças de raiva e melancolia se misturavam com a fumaça do cigarro. Mais de uma vez ele observa com o canto dos olhos o banco do carona como se a qualquer momento fosse ver alguém. Mas o banco está vazio.

Há poucos dias atrás ele era apenas o inexpressivo marido de Sônia de Paula. O inexpressivo e corno marido de Sônia de Paula.

“Ando meio desligado, eu nem sinto os meus pés no chão. Olho e não vejo nada, eu só penso se você me quer ...” A música rolava no toca-fitas quando engatou e não saiu mais som algum. O homem que dirigia soltou um palavrão, parou o carro e, de maneira um tanto quanto brusca, puxou a fita cassete para tentar ajeitá-la. Não era o tipo de música que ele gostava, moderna demais para o seu gosto, mas era o estilo musical que Sônia de Paula amava. Aquela fita fora esquecida ali e agora ele, por alguma mórbida forma de autopunição, ficava escutando-a.

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Ele nunca fora o cara popular da escola, aquele que as meninas ficam pululando em torno como mariposas em volta da lâmpada ou o que era sempre convidado para alguma coisa interessante. Em sala de aula não sentava na frente porque estaria sempre exposto às perguntas dos professores e, além do mais, ali era o feudo dos sabichões. Também não sentava no fundão, seria pior ainda, pois ali ficavam os faladores, os populares e os que não queriam nada com nada. Em toda a sua vida escolar sempre sentou nas fileiras que ficavam imediatamente ao lado de alguma parede, pois, em sua fantasia, ali ele seria um pouco invisível.

Uma graduação em ciências contábeis e uma trajetória como a de todo mundo até conseguir firmar-se em sua profissão. Uma vida de solidão composta por um pequeno escritório, ausência de amigos, nenhuma namorada e umas poucas idas a um prostíbulo que não representavam nada mais do que tentativas de sentir-se um pouco parecido com as outras pessoas.

Nunca uma mulher genuinamente havia se interessado por Silvério. Ele sempre fora o cara que ficava no banco da praça vendo os casais de namorados passearem de mãos dadas. Todas noites dormia fantasiando o dia em que alguém surgiria e se apaixonaria por ele. Às vezes a madrugada avançava com ele deitado em sua cama de solteiro imaginando como é ser amado e desejado por alguém.

Já estava com quarenta e seis anos quando conheceu Sônia. Os vinte e cinco anos de diferença não foram obstáculo para que este se apaixonasse pela garçonete de risos fartos, cabelos castanhos e seios generosos.

Uma sensação indizível de arrebatamento atravessou-lhe a alma quando percebeu que seus olhares furtivos eram correspondidos por Sônia. Muitas vezes perguntava-se como era possível que uma moça bonita gostasse de alguém tão sem graça como ele.

Em seis meses estavam casados. A tia idosa de Sônia não colocou dificuldades quando sua sobrinha disse que ia casar. E assim foi.

Uma etapa completamente nova e inusitada surgia na vida de Silvério. Antes um homem inseguro, com a autoestima de um miserável e, por causa disso, muitas vezes uma pessoa até desagradável, agora transformara-se em alguém mais assertivo, seguro e capaz de minimamente olhar alguém de frente. A simples atenção de Sônia de Paula havia realizado essa transmutação.

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Após dois anos de casamento tudo mudou. O encantamento, a paixão e o sexo desenfreados foram substituídos aos poucos por apatia e brigas frequentes. Os constantes presentes que tanto agradavam a Sônia já não lhe despertavam mais nada. Silvério queria um filho e Sônia de Paula não queria mais sexo com ele como antigamente.

Várias vezes Silvério se pegou chorando de madrugada olhando para Sônia enquanto esta dormia. Um estado de autocomiseração ameaçava querer grudar em sua pele. Raiva e tristeza misturavam-se formando algo inominável.

Todo tipo de pensamento começou a fazer morada em seu ser. Passou a imaginar-se sendo traído por Sônia. Imaginava Sônia com outro homem, sendo flagrada e depois vindo humildemente pedir-lhe que voltasse para casa, dizendo-se arrependida e que ele era o homem da sua vida. Eram pensamentos fantasiosos, mas que lhe marcavam profundamente.

Aquilo que ele julgava ter ficado para trás de repente retornou. Os sentimentos de solidão e desvalia voltaram de maneira avassaladora. Novamente aquele adolescente que se achava feio, com o rosto cheio de espinhas e todo desengonçado estava de volta. O homem de meia-idade tímido e solitário foi sendo substituído por alguém taciturno, desconfiado e negativista.

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Monte Bispo já ficara há muito para trás. Nunca mais aquela cidade desgraçada veria Silvério e Sônia de Paula.

Seu braço já estava cansado do esforço de passar as marchas por mais de seis horas. Decidiu parar o carro. Era preciso desanuviar a miríade de pensamentos que lhe assolavam. Seus olhos vagavam pela paisagem monótona enquanto acendia um cigarro.

O dia vai terminando. Os poucos veículos que passam por aquela estrada sequer prestam atenção naquele homem fumando encostado em seu carro. Jamais imaginariam que espremido no pequeno porta-malas está o corpo de uma jovem mulher.

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“Sou um velho tolo e idiota apaixonado por uma mulher jovem que já não gosta de mim”. Como um mantra essa frase passou a fazer parte do cotidiano de Silvério. Nas raras vezes em que Sônia permitia que este a tocasse e deixava-se possuir ficava-lhe sempre aquela sensação de que ela estava fazendo um favor a ele.

Uma barba rala e malfeita passou a compor seu visual, a mesma roupa muitas vezes era usada por dois ou três dias seguidos, nem sempre era possível sentir outra coisa que não o cheiro de suor envelhecido em seu corpo.

Sônia percebe essas mudanças em Silvério, sabe que este não está bem. Várias vezes lhe pergunta o que está acontecendo mas recebe como resposta apenas um olhar vago e algumas palavras soltas. Em seu íntimo começa a achar que um simples namoro deveria ter bastado e não um casamento.

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A imagem de Sônia toda lasciva, beijada e beijando, com suas pernas abertas para receber um outro homem não lhe saia da cabeça. Um documento importante esquecido em casa e uma porta levemente entreaberta permitiram a Silvério confirmar que Sônia nunca mais o amaria como antes. Ele nunca mais teria o amor de Sônia. Nessa noite ele não voltou para casa. Retornou só no fim da tarde do dia seguinte, fedendo mais do que antes.

Silvério sempre fora um homem de poucas palavras, as pessoas lhe intimidavam, por isso falava apenas o básico e o essencial. Claro que ele tinha vontade de ser como os outros, mas alguma coisa sempre o impedia, agora já estava ficando velho e era muito tarde para mudar.

Um dia ele havia quebrado a casca do ovo e ido para o mundo, agora ele voltaria para o lugar de onde nunca deveria ter saído.

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Silvério percebe que está ficando sem cigarros e isso para ele é uma grande merda. Os solavancos do carro e a monotonia da paisagem parecem lhe atravessar a alma. É hora de mudar a fita cassete. Outra das músicas de Sônia surge. Mais uma que ele não gosta, mas que teima em escutar.

Mesmo não gostando da música ela parece grudar em seu corpo ...“Vento solar e estrelas do mar. A terra azul da cor de seu vestido? Vento solar e estrelas do mar. Você ainda quer morar comigo? Se eu cantar não chore não. É só poesia...” Silvério olha para o banco do carona mais uma vez. Ao seu lado agora está Sônia, linda como no primeiro dia em que a viu. Ela usa o uniforme azul claro de garçonete e o mesmo corte de cabelo de dois anos atrás. A única diferença era que seu rosto está com uma cor arroxeada, fruto do infarto fulminante que tivera. Sônia nascera com um problema cardiológico severo. Sua morte fora rápida e Silenciosa.

Eles nunca mais retornariam para Monte Bispo. Para Silvério restava fugir de si mesmo e quem sabe encontrar no fim do arco-íris respostas para perguntas que ele nunca fez.

“ ... se você vier pro que der e vier comigo. Eu lhe prometo o sol ou a chuva ... até onde a gente chegar, numa praça na beira do mar, num pedaço de qualquer lugar ...” O pequeno carro seguia na estrada íngreme. Em seu interior um homem de meia idade escuta músicas que ele não gosta.

* Músicas: Ando meio desligado (Mutantes, 1970), Um girassol da cor do seu cabelo (Lô Borges, 1972), Dia Branco ( Geraldo Azevedo, 1981)

TEMA: ESTRADAS

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 18/11/2018
Reeditado em 16/12/2018
Código do texto: T6505772
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