NÃO QUEREMOS O SEU DINHEIRO

Mário teve de estacionar quando notou que a gasolina tinha acabado. Esperava chegar a interestadual - haviam talvez uma dúzia de postos de gasolina o esperando. Enquanto manobrava o carro sobre o meio fio, fantasiou encontrando um galão com combustível suficiente para dirigir mais alguns quilômetros. Antes que tivesse notado seja lá o que fosse, teve um pressentimento ruim. Costumava ficar nauseado nesses casos, era como se um aliem estivesse tentando eclodir de seu estômago como em o oitavo passageiro.

A avenida Wilson era um dos retornos possíveis da entrada sul que levava até a interestadual. Mário podia ter escolhido um dos outros quatro retornos possíveis, isso se todos não estivessem congestionados. Era final de ano e neste período o número de carros aumentava, já que a maioria dos motoristas tentavam cruzar o estado. Mesmo que nunca tivesse dirigido por aquele trecho, não importava se isso significasse economizar horas até chegar a interestadual.

- Precisa de ajuda senhor?

Mário esquadrinhou a área em busca daquela voz cavernosa.

- Precisa-de-ajuda? - Repetiu a pergunta mais perto.

Ele abaixou a cabeça e seguiu aquela voz até encontrar um rostinho de criança parado ao lado da sua perna, como se tentasse se esconder. Sentiu seu pomo de Adão subir e descer e quase não conseguiu responder.

- Quer me matar de susto garoto.

- Chefe, está precisando de ajuda?

O garotinho saiu detrás de suas pernas e pode notar que seus olhos eram desproporcionais, maiores que o comum. Enquanto tentava se acostumar aqueles olhos, reparou no pôr do sol, uma bola de fogo vermelho corava o brim azulado do horizonte com raios de luz alaranjado.

- Está precisando de alguma coisa Chefe.

Mário dobrou os joelhos, e respondeu olhando diretamente naqueles olhos descomunais.

- O que uma criança está fazendo sozinha. Não tem medo de estranhos.

O rosto do garoto se contraiu imperceptivelmente, e notou que estava balançando a cabeça numa resposta negativa.

- Chefe, precisa-de-ajuda.

O garoto deveria ter no mínimo seis anos de idade. Estava descalço e usava uma camiseta preta, longa suficiente para chegar até sua canela. Mário ficou parado a frente do garoto sem resposta. Havia algo diferente. Costumava ouvir um som forte do vento cobrir a região, podia ser ouvido por todos os retornos até a interestadual, mas naquele trecho o vento tomava formava um nuance diferente, como um ronco forte de um velho dormindo. Parte das terras ali era só mato. Do lado leste da rua um grupo de casas e sobrados antigos - todos abandonados, exceto um - margeava um pequeno córrego que se alinhava perfeitamente na direção norte entrando pelo mato até não ser mais visto.

- O que está fazendo sozinho aqui, hein?

O garoto tossiu, passou a mão com força no pescoço sob as dobrinhas, coçando uma de suas cicatrizes.

- Chefe precisa-de-ajuda.

Sua voz saiu devagar e debilitada.

- A menos que tiver um pouco de gasolina. - Sorriu dando-lhe dois tapinhas na cabeça.

- Chefe, temos-de-tudo, te-mos-tu-di-nho. Afinal, todos que se perdem acabam aqui.

Ele segurou o braço de Mário e o puxou até outro lado da rua.

- Espero que saiba barganhar. Tratamos apenas com barganhas.

Mário assentiu sorrindo.

- Seus pais estão aí dentro?

No terreno ao lado havia uma área coberta de caracóis mortos. A grama crescia volumosa sobre cadáveres de gatos e cachorros, pássaros e animais pequenos.

- É nosso cemitério?

Mário tomou outro susto.

- É-nosso-cemitério?

- Como assim garoto?

- Eles tentam comer os caracóis e acabam morrendo envenenados. Tem a ver com o córrego lá atrás... eles vêm de lá. Acho que não disse ainda, mas meu nome é Jeremias.

Alguma coisa tinha mudou depois que atravessaram a rua. Teve a impressão que o menino tinha ficado mais velho. Mas era apenas uma impressão besta, não podia ter ficado mais velho. Mario seguiu o garoto até uma garagem.

- Seu pais estão? - Insistiu, observando as fileiras de estantes distribuídas dentro da garagem.

- Faz tempo que sou só eu, sou só... eu. - Respondeu Jeremias num tom melancólico.

Não importava quanto ficasse ali parado olhando, aquela garagem lhe pareceu um tipo de brechó que vendia coisas realmente velhas. Não estranharia se encontrasse seus avós perdidos lá dentro.

Embora Mário quisesse voltar para o carro e tentar ligar para sua esposa - Jeane não atenderia naquele horário a menos que estivesse acordada. Jeremias pediu que esperasse e quando voltou lá de dentro trouxe com dificuldade um galão de combustível.

- Obrigado garoto...

Mário estendeu o braço na direção dele. O garoto virou o galão para o lado contrário e balançou a cabeça fazendo que não.

- Estou-aqui-a-muito-tempo.

Ele não sabia muito bem o que aquilo queria dizer, ainda assim pareceu mais motivado a conseguir aquele galão. Tirou do bolso sua carteira, estava um pouco mais rechonchuda que o normal porque tinha acabado de retirar parte de seu salário do banco.

- Quanto?

- Estou-aqui-a-muito-tempo-Chefe. Muito-tempo. Talvez devêssemos barganhar.

- Não quer dinheiro?

Jeremias fez que não e tirou o galão de gasolina da sua vista.

- O que você quer então garoto?

Jeremias apontou para uma placa de alumínio pendurado na parede, quase não pode ler por conta de uma grossa capa de poeira. “Não queremos o seu dinheiro”

Tinha começado a anoitecer e não haviam postes de luz ali perto, na realidade não haviam postes até a interestadual. Mal conseguia enxergar seu carro naquele breu. A única luz agora era daquela garagem. Vaga-lumes se estreitavam perto da lâmpada que estava perdurada numa das paredes, a luz piscava constantemente e parecia que a qualquer momento iria queimar.

- O que você quer então?

- Nesses últimos anos temos tido poucos clientes. Aqueles que encontram esse lugar geralmente não ficam muito tempo.

Jeremias balançou o braço colocando o galão de gasolina numa prateleira ao seu lado.

- Temos mais de mil artigos, cada um deles tem um preço diferente. Alguns mais caros que os outros. Nossa forma de negociar é um pouco diferente, escolha um de nossos artigos, e de acordo com sua escolha haverá um preço a ser pago, depois de pago poderá levar galão.

- Deixe me ver se entendi. Está me dizendo que a partir do item que eu escolher, me dará o preço do galão de gasolina?

Jeremias demorou para responder.

- Isso.

Houve um momento de silencio, ambos se entreolharam por talvez um minuto inteiro, então Mário respirou, forte e alto. Mesmo que fosse estranho, valia a pena se não precisasse pagar com dinheiro. Tentava adivinhar que preço teria de pagar.

Mário entrou na garagem, percorrendo o longo corredor de estantes e vitrines. Haviam centenas de coisas diferentes, caixas de fósforos, martelos, cordas, bitucas de cigarro, olhos de vidro, potes abertos, bonecos e bonecas, itens de caça, itens de pescaria, itens de corrida, casacos, botas, cabelo humano, peixes estranhos em conserva, sapatos, livros de todos os tipos, ventiladores, latas de lentilha - vencida desde 1976 -, caixinhas de remédio vazias, anéis e um cinto de couro que lhe chamou a atenção pelo detalhe de prata em formato de flecha.

Ele segurou o cinco e em seguida Jeremias apareceu.

- Decidiu por conta própria entrar após ser convidado.

- Como assim? - Perguntou Mário, soltando o cinto abruptamente.

Jeremias parecia cada vez mais velho, agora teve impressão que tinha pelo menos quinze anos.

- Este item pertenceu a um homem de meia idade que dependia dos filhos para sobreviver. Era arrogante e pretensioso demais para achar que podia me enganar. Mas não há retorno quando se entra aqui. A escolha tem que ser feita.

Mário começou a gargalhar.

- Acha que sou otário garoto. Não vai conseguir nada contando esse tipo de história para mim.

Ele notou os olhos do menino enchendo-se de sangue.

Mário gargalhou de novo, mais alto usando quase todo poder de seu pulmão, porém desta vez sentiu uma sensação indescritível de medo, involuntariamente recuou dois paços e se apoiou numa das prateleiras após se sentir zonzo.

- O que você fez comigo?

- Nada. Tinha a opção de escolher entre milhares de itens, cada um com um preço diferente, eu lhe falei. Este cinto equivale ao preço da vida de um homem de trinta e oito anos, um puritano do século 18. Ele percebeu que seu estomago estava inchando, percebeu tarde, o câncer já havia se espalhado por muitos dos seus órgãos internos, mas ele não morreu, não... à medida que estava ficando melhor, seu filho adquiria a pior de todas as doenças, ela corroeu seu cérebro e sua mente. Pouco tempo depois, quando estava quase curado, seu filho entrou em seu quarto enquanto dormia, colocou uma faca no seu pescoço e o degolou. Depois escondeu seu corpo. Escondeu... isso mesmo, ele escondeu debaixo da cama.

Jeremias sorriu.

- Pode levar a gasolina. O preço já foi pago.

Mário franziu a testa mais que perplexo com que tinha ouvido. Atrás dele as lâmpadas apagaram, e continuaram apagando até que só restasse a que estava sobre sua cabeça. Jeremias ficou parado observando. Ele não piscava. Mário notou que naquele momento a sombra dele projetada pela luz formava uma silhueta esquisita. Haviam patas e garras assustadoras, tentáculos volumosos que escorregavam ligeiramente das costas enquanto chifres brotavam de sua cabeça formando uma espécie de coroa.

Mário correu, fugindo na direção oposta. Teve tempo de pegar o galão de gasolina que havia sido deixado numa das prateleiras da ponta, perto da saída. Não conseguira entender como havia tanto espaço dentro de uma garagem como naquela onde esteva. Teve tempo de encher parte do tanque, tinha sobrado um pouco no galão, mas o largou sobre o asfalto. Após ligar o carro, percebeu que perdera sua aliança de casamente. A ideia de voltar àquela garagem passou por sua mente, deixou-o arrepiado e o fez acelerar o carro.

Mário nunca mais viu Jeremias.

Em julho do ano seguinte, Jeane engravidou e teve um lindo bebe. Colocaram-lhe o nome de Lucas Henrique Duarte. As coisas não iam muito bem neste período, depois que foi demitido Jeane teve suportar as despesas da família sozinha. O aluguel era alto, dezenas de contas se acumulavam com frequência e rotineiramente recebia telefonemas de cobrança excessivos que deixavam todos dentro daquela casa estressados. Ainda naquele mês, Jeane perdeu o emprego.

Mário deitou-se na cama desconfiado, seus olhos traçaram uma linha pelo cômodo e se lembrou daquele dia, do dia mais estranho da sua vida. Antes que pudesse continuar pensando naquilo, recebeu um e-mail. A notificação apareceu no canto direito da tela do seu notebook; estamos interessados no seu perfil profissional. Mário não precisou ler o restante para abrir um sorriso largo no rosto.

Era quase dezembro e já estava empregado tempo suficiente para regularizar sua vida financeira. Durante um checkup Jeane descobriu que estava com Tuberculose. Tudo aconteceu muito rápido. Os médicos disseram que a doença tinha progredido extremamente rápido, era raríssimo isso acontecer. Após o natal, quando Jeane não conseguia nem abrir os olhos de tanta dor, ele a levou para casa, o bebe ficou em seu quarto todo o tempo, chorando. Mário decidiu que não o deixaria ver aquilo. Pensava ser demais para um recém-nascido, mesmo que não entendesse ainda. Em janeiro o corpo de sua mulher ainda estava na cama, apodrecendo sem que Mário tivesse coragem de informar a polícia que sua esposa tinha falecido.

Vinte anos se passaram. Lucas tinha terminado o ensino médio, mas decidiu não fazer faculdade. Mário tinha acabado de completar sessenta anos e nunca mais se casara - Jeane ainda estava lá, num lugar onde nunca seria encontrada. Envelhecer mudou sua perspectiva de vida. Os anos amontoaram-se um após o outro, e era como se estivesse dirigindo um automóvel cego. Conforme dirigia a bagagem tornava-se mais pesada. No entanto, cada vez mais conseguia se lembrar daquele dia. De Jeremias e de tudo que tinha dito.

Mário via o rosto do garoto em todos os lugares. Aqueles tentáculos se erguiam em sua mente e pareciam furar seus olhos tentando sair de dentro de sua cabeça. As coisas pareciam não fazer mais sentido.

Um dia, seja lá quando foi. Mário sentou-se numa rede do lado de fora da sua casa. Olhou para seu filho, depois lembrou-se de sua esposa. Algo dentro dele o fez chorar sem motivo. Lucas, no entanto, saiu pelo portão da frente, nervoso após encontrar algo debaixo da cama de seu pai, escondido numa mala. Lucas nunca mais voltou.

Haviam coisas que Mário não conseguia entender, uma delas era biologia, a outra física e outra a morte. No final, pelo menos antes de se perder, entendeu o que havia trocado. Mário nunca morreu, sem dúvida neste exato momento está procurando aquela garagem.

Vinícius N Neto
Enviado por Vinícius N Neto em 07/01/2019
Reeditado em 07/01/2019
Código do texto: T6544764
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