Devaneio noturno

A madrugada é o festim dos demônios, dizia sua falecida avó. Mas ele nunca acreditou nisso. Tampouco evocava esse tipo de besteira no seu tempo ocioso. Era científico. Rigorosamente técnico. Propalava que paranormalidades são meros joguetes de nosso cérebro; peripécias do nosso intelecto para nos lembrar de que o medo ainda nos habita. Uma espécie de darwinismo: “imagine o que seria da fauna se nas presas só reinasse o destemor..”

Era tarde. Pôs a caneca na cabeceira e lançou as meias ao chão. Sentou-se na cama e encarou o relógio: 01:12. Alguns feixes de luz da luminária tremeluziam em sincronia com alguns uivos caninos lá fora, ao longe. Havia se permitido dormir um pouco mais tarde àquela noite. Habitualmente se deitava antes das 23 horas, mas combinara de chegar ao trabalho só as 9h na manhã seguinte. Repousou a cabeça sobre o travesseiro e cobriu-se com o cobertor. As pálpebras, consumidas pelo cansaço do dia, começaram a se fechar e aos poucos a inquietação da vigília dava lugar a calmaria do sono. E assim sempre fora seu sono: pura calmaria.

Passaram-se algumas poucas horas desde o momento em que cerrou os olhos. A madrugada havia sido tomada por um silêncio pleno. Já não se ouviam os uivos ao longe e as luzes não mais tremeluziam. Não haviam mais luzes no quarto. O relógio marcava 3:32 e ele ainda dormia, imóvel, inerte e exposto à lúgubre escuridão que o rodeava.

“...tss...”— Algo pareceu inrromper no silêncio, fugaz e discretamente; alguma coisa vaga e incerta. Mas não havia nada ali. O homem ainda estava deitado e tudo permanecia imóvel e disposto exatamente igual a instantes atrás. O silêncio ainda se mantinha, pleno.

Passam-se alguns minutos. Alguma coisa parece novamente inrromper o silêncio. Desta vez mais firme e seca. Um som vazio; estranho; disforme. O homem, deitado, parece finalmente afetado pelos ruídos e vagarosamente abre suas pálpebras, tomadas pela fadiga. Mas não vê nada. Mais uma vez, havia apenas silêncio. Talvez fosse alguma peripécia de sua cabeça. Decorrências do cansaço. Como imãs, seus olhos se fecham novamente. Mas antes que pudesse voltar à quietude do sono, um novo ruído interrompe a calmaria. O homem abre os olhos, em reflexo, e percorre os ângulos do quarto. A penumbra era a mesma de instantes atrás. Tudo estava intacto, fiel à solidez da noite. Começava a se irritar. Talvez estava com a tal da insônia, de que tanto falam a respeito. Talvez fosse excesso de trabalho. Ansiedade, quem sabe. Por via das dúvidas permaneceria ali, imóvel, esperando que o sono lhe tomasse conta novamente. Iria cerrar os olhos e aguardar que dormisse.

Mas algo estranho lhe tomara. Algo que nunca havia lhe ocorrido: tentou fechar as pálpebras mas, inexplicavelmente, permanecia vendo o breu do quarto. Ordenava a si mesmo para que os olhos repousassem mas eles não o obedeciam. Não conseguia fechá-los. Perdera o controle sobre eles. Em vão tentou novamente forçar a tapá-los, mas a visão daquele cômodo escuro se mantinha, como se fosse compelido a mantê-la permanentemente em sua retina. Não conseguia nem mesmo movê-los.

Nunca lhe ocorrera aquilo. Nunca ouviu ninguém relatar algo parecido. Pensou rapidamente em buscar um copo d’água. Raramente o fazia, mas aquela seria uma boa hora para ir ao toalete e lhe jogar um pouco de água no rosto. No entanto, algo mais estranho lhe ocorreria: não conseguia se mexer. Seus músculos ignoravam seus comandos internos. Permaneciam estáticos como pedras. O homem impelia toda sua força a movê-los mas nada acontecia. Um vazio desesperador começava a invadi-lo. Uma tormenta inquietante vagarosamente o açoitava. Tentou gritar, mas não emitia qualquer som. Tal como as outras partes de seu corpo, sua boca permanecia imóvel, entreaberta, como se tivesse parada no tempo. Na periferia de sua visão, fixa e imóvel, conseguia ver a sombra dos ponteiros do relógio: 03:40. Não sabia o que fazer. Não havia o que fazer. Aguardaria, na companhia do desespero e de uma ansiedade cruel, até que tudo voltasse ao normal. Haveria de ser um pesadelo. Um terrível pesadelo e, como todo pesadelo, uma hora chegaria ao fim.

Diante de sua visão, inesperadamente uma forma pareceu alterar o que via. Uma forma negra, sutil em meio àquele escuro. Uma forma que se camuflava na penumbra e agora parecia encontrar vez. O homem não conseguia identificá-la. Todo o medo e pavor que lhe tomara se intensificava ainda mais, em uma escala inimaginável. Aquele espectro era uma reunião de todos as suas incertezas. De todas as suas inseguranças. Todas as suas aflições. Estava entregue a todas as suas desgraças. Apenas sua mente parecia lhe fazer parte e ela estava tomada pelo horror.

A forma então começou a se dirigir ao homem. Mais perto ele percebeu que ela não tinha rosto, mas sabia tudo sobre ele, sobre o que sentia. Tinha acesso aos seus medos mais remotos. Com uma voz anômala e de mesmo timbre dos sons que ouvira, a forma disse:

— Está tomado pelo medo...

O homem estava tomado de intenso terror. Agora a loucura lhe insinuava cada vez mais, pouco a pouco, como uma alternativa àquele infortúnio.

A forma então manteve-se estática, em frente ao homem, sem mais nenhum som.

E assim passaram-se os dias. O homem se manteve ali, deitado, em terror, sendo aos poucos acalentado pelo delírio, por longos dias. Todo aquele cenário se manteve, imutável e a forma ainda lhe fazia companhia. O relógio marcava as mesmas 03:40 de quando tudo teve início. Ele não acreditara. Estava preso em uma tortura temporal e não podia nem ao menos gritar. Nao podia fugir e não tinha controle de nada. Dilacerava-o a ideia de eternizar-se em meio àquele sofrimento. Já desistira há tempos mas nem a desistência o livrara daquilo tudo. Estava acabado, entregue ao tempo.

Repentinamente a luz se acendeu. Ele pareceu acordar de um sono profundo. Uma noite mal dormida. Conseguia se mexer e os olhos se moviam normalmente. Olhou ao redor do quarto e tudo estava como deixara pouco antes de dormir. Feixes solares transpassavam as frestas da janela e podia-se ouvir o borburinho da rua a fora. Era manhã. Fora tudo um pesadelo e agora só sentia a ressaca daquilo tudo. Estava bem. Estava vivo... e livre. Pos-se a vestir como se intuitivamente estivesse atrasado para o trabalho e seus afazeres. Tomou seu café, sacou a jaqueta pendurada na roupeira e dirigiu-se a porta. Antes de sair olhou rapidamente para o relógio, que estranhamente estava parado e tinha os ponteiros estacionados em uma hora errada: 3:40h. “Bobagem”, pensou, “Mais uma peripécia da minha cabeça”. E alentado pelo ofício que o esperava, saiu pela porta.

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Grande abraço a todos.

Mederi
Enviado por Mederi em 10/01/2019
Reeditado em 14/01/2019
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