A SEDE MORTAL - DTRL32

O povoado desde sempre foi alvo de diversas histórias que eram espalhadas pelas calçadas e bodegas. Houve um tempo, porém, em que as conversas não eram mais sobre as coisas do passado, mas sobre o que estava acontecendo no presente.

A maioria das pessoas da região era bem religiosa: ia à missa aos domingos, rezava o terço diariamente e pedia a benção para todos que deviam, inclusive para o padre da capelinha. Ainda assim, é sabido que nem sempre esses costumes são o suficiente para livrar um povo e sua terra dos males que vêm das sombras ou mesmo do Inferno.

Naqueles dias, quando o sol já se ia e era chegada a hora de apagar as lamparinas, muitas pessoas iam dormir; outras pegavam suas bicicletas ou cavalos para irem beber nos botecos. Seu Zé, o dono do estabelecimento, puxava assunto com seus dois clientes de longa data:

- Vocês tão percebendo como tá o tempo? Como tá o fim da tarde, o vento da noite e o alvoroço dos bichos pelas madrugadas?

- Seu Zé, faz mais de 50 anos que não via um tempo tão estranho assim.

O outro cliente aproveita o comentário dos amigos e pergunta:

- E é verdade o que falaram dos bichos de Dona Neide?

Seu Zé, colocando mais cachaça nos copos dos dois, responde:

- Sim. O Antônio, filho dela, confirmou mais cedo. Hoje mesmo eu já limpei minha espingarda.

Os dois homens se benzem ao ouvirem a confirmação. Um outro cliente, bem mais novo e bem aparentado, chamado Pedro, que sentado no alpendre bebia ao lado de seu belo cavalo, curioso pergunta:

- O que tá acontecendo?

- Chuparam o sangue dos bichos de Dona Neide e tentaram até entrar na casa dela.

- Quem tentou entrar na casa?

- Quem não, o que...

Com uma expressão de curiosidade, o jovem então pergunta:

- O que os senhores acham que era?

- Isso é coisa de chupa-cabras, meu filho – diz Seu Zé.

- Não. É coisa de lobisomem – supõe Seu Arnaldo.

Por fim, o outro cliente comenta:

- O ataque aconteceu em noite de lua cheia. A coisa matou três bichos e tentou entrar na casa. Creio que só não conseguiu porque Dona Neide sempre joga água benta nas portas e janelas. Pode ter sido um lobisomem, um chupa-cabra ou mesmo outras coisas, pois é tempo desses bestas aparecerem. Dá pra perceber pelo tempo, assim como se percebe a chegada do inverno ou a época em que os cajueiros vão florir. Você, meu jovem, ainda é muito novo pra perceber os sinais da terra, das águas, das plantas, da lua ou dos bichos.

O jovem cliente, não gostando da insinuação feita pelo velho, levanta-se, bate o copo no balcão e diz aos três idosos:

- Isso é besteira! Essas coisas não existem. Foi algum cachorro do mato que matou aqueles bichos. O resto é conversa de bêbado ou de velhos mentirosos. Tenham uma boa noite – finaliza pagando a conta.

- Boa noite – respondem os idosos com um olhar de desaprovação.

Um deles, depois de uma tragada no cigarro de palha, diz aos outros dois:

- Como é inocente essa juventude. Se soubesse que o mundo não é apenas aquilo que ele mostra, ele teria mais respeito pelas coisas que não conhece.

- Esse aí só sabe correr atrás das filhas dos outros. Se aproveita que é bom com as palavras e da boa pose para se aproveitar das filhas alheias.

- Verdade! Esse rapaz só quer vadiar! Nunca nem pisou numa missa, só quer saber das profanidades das noites.

Os dias foram passando e por todo o vilarejo as pessoas falavam sobre o que poderia estar sugando o sangue dos bichos. Alguns protegiam as ruas à noite portando espingardas e água benta que, segundo o padre, o contato da criatura com a água seria crucial para matá-la ou pelo menos espantá-la da região. Diariamente então, o padre passava pelas casas benzendo as águas, muitas vezes em segredo para não fazer alardes.

Na lua cheia seguinte, todos do vilarejo já previam pelos sinais das aves nos galinheiros e pelas inquietude dos cães que alguma coisa ruim estava prestes a acontecer. Todos benzeram suas casas e carregaram suas armas. Muitos ficaram vigiando seus animais nos quintais; outros, montados a cavalo, vigiavam a praça e algumas ruas da região à procura de algo estranho.

Como não havia muitos jovens na região, Pedro resolveu prestar seus serviços para o povo do vilarejo. Bem arrumado e com elegante pose em seu belo cavalo, começou já no início da noite a cavalgar pela cidade, principalmente pelas estradas próximas às fronteiras à procura do que estaria matando os animais da região. Para ele, não se tratava de seres do outro mundo ou bestas, mas de um cachorro do mato ou mesmo uma raposa. Além do revólver e da espingarda, ele ainda portava seu facão que usava cotidianamente quando trabalhava de vigia noturno.

Ainda cedo, quando voltava da rota, enquanto fazia um cigarro de palha montado no seu cavalo, um outro homem montado se aproximou puxando assunto:

- Boa noite!

- Boa noite!

- Quer água?

- Não, obrigado.

- Tão dizendo que não é lobisomem nem chupa-cabra.

Acendendo o cigarro, Pedro então pergunta:

- Por que tão dizendo isso?

- Faz muito tempo que não se vê essas coisas. Quase não existem mais.

- Então o que é que tá chupando o sangue dos bichos? Morcegos ou cachorros do mato?

- Gente amaldiçoada.

- Como é? Não entendi.

- Tão dizendo que há alguns anos atrás, um rapaz teve um sonho de que em algum lugar do vilarejo, que fica do outro lado da serra, teria uma botija, uma caixinha cheia de joias e ouro escondida embaixo de uma árvore. Esse rapaz então avisou a dois amigos sobre o sonho e foram os três desenterrar o prêmio. Depois de cavar e encontrar a botija, o rapaz traiu os amigos, matando os dois com seu facão. Depois disso, ele enterrou os amigos e levou o baú. É claro que com o crime de sangue e com a traição, o tesouro seria amaldiçoado, assim como o assassino. Dizem que a sede de riqueza dele foi convertida em sede de sangue dos animais e que ele agora só andaria pelas noite, sem mais poder ver a luz do sol.

- O povo gosta de inventar cada uma... – ri Pedro.

O outro homem, com um olhar de desaprovação, balança a cabeça cumprimentando o jovem e se retira dizendo:

- Cuidado, meu filho. Não é por que ninguém viu, que isso seja mentira. Boa noite!

- Boa noite!

Horas depois, quando a madrugada já se iniciava nas terras próximas à fronteira, os cachorros latiam e as vacas mugiam sem parrar no curral das terras de Seu Joaquim. A confusão dos bichos logo se juntou ao som de tiros, e então Pedro, com sua audição aguçada, já bem treinada devido à sua profissão, percebe de onde vem os sons, e logo sai cavalgando rapidamente em direção às terras de Seu Joaquim. Pelo caminho, encontra um conhecido e sem perder tempo manda-o chamar os outros para que cerquem o local:

- E você, Pedro?

- Eu vou na frente! Vá! Chame todos os homens! O Seu Joaquim pode tá precisando de ajuda.

- Tudo bem!

Alguns minutos depois, alguns homens, inclusive o padre, já estavam agrupados na praça principal com suas armas e tochas. Então começaram a cavalgar rumo à origem dos tiros. Durante o caminho, o som de tiros ainda continuava e deixava todos apreensivos enquanto cavalgavam o mais rápido que podiam para ajudar Pedro e Seu Joaquim. Ao chegarem na porteira, um dos homens a abriu e todos desceram de seus cavalos, preparando suas armas e seguindo para o curral.

Ao chegarem ao local, os homens se deparam com uma cena banhada à sangue. Seu Joaquim estava morto próximo à entrada do curral. Logo ao adentraram, avistam um bode preto morto com os olhos arrancados e pescoço sangrando e ao seu lado, um homem morto a tiros. O padre logo se benzeu vendo a cena. Em seguida, os homens escutam a voz de Pedro, que sentado ao chão com as costas apoiadas num pilar do curral, diz:

- Esse homem era a tal criatura!

- O que aconteceu, Pedro?

Pedro, sentindo dor e respirando com dificuldade, tentando se levantar, conta:

- Quando eu cheguei, Seu Joaquim já estava morto. Foi aí que vi esse homem degolando o bode com a boca e arrancando os olhos do bicho. Eu não esperei nada mais, só atirei. O tiro não foi certeiro, então o homem se virou e partiu pra cima de mim. Sorte a minha que não entrei em pânico e de novo dei um tiro nele, dando cabo à sua vida.

- Meu Deus! O que ele fez com esse bode? - pergunta um homem.

- Ele tinha um pacto com o demônio! Só isso explica essa animalidade! – um dos homens supõe.

- Era um ritual satânico! Ele bebeu o sangue do bode e comeu os olhos! – outro diz.

Ao ouvirem o relato de Pedro e verificarem que o homem está morto, todos se sentem aliviados. Alguns se benzem novamente e abaixam as armas dando os parabéns ao bravo rapaz que provou sua valentia. Já em pé, Pedro vê Seu Arnaldo, ainda tremendo de nervoso, bebendo em uma garrafa de vidro. Doido para tomar um gole de cachaça para passar a dor que sentia, Pedro pede a garrafa e toma um bom gole.

É então que percebe que não é cachaça, mas água:

- Eu pensei que era cachaça, Seu Arnaldo! – diz o jovem cuspindo.

- Não, meu filho, é água benta pelo padre.

Nesse instante, depois da água descer pela garganta, o nariz e a boca de Pedro começam a sangrar. Suas mãos começam a tremer e suas pernas, a bambear. Do nada, ele começa a tossir fortemente e a tremer. Todos olham para a cena sem entender o que está acontecendo, menos o padre que já com o terço na mão, diz:

- O homem que Pedro matou não era a criatura, era só um ladrão de animais.

Com os olhos avermelhados e lacrimejantes, Pedro cai de quatro e vomita os dois olhos do bode. Os homens incrédulos com o que viam, ficam sem reação. Nenhum tem coragem de fazer alguma coisa que não seja somente olhar aquela inesperada e sombria cena.

O padre então, pegando uma garrafa e uma tocha se aproxima de Pedro e entregando-lhe um terço em sua mão, com uma triste expressão, diz:

- Nem tu sabias que era a besta que caçavas, jovem Pedro, mas sabias de teus crimes contra a vida de teus amigos. A tua sede de sangue era insaciável, assim como sua ambição e ego. Foste amaldiçoado a vagar somente pelas noite e não mais envelhecer. Não foi, meu filho?

Chorando lágrimas de sangue, Pedro, segurando firme o terço dado pelo padre, levantando a outra mão para o céu, diz em voz rouca e dolorosa:

- Perdão, padre, pois eu pequei. Eu me arrependo. Estou pronto pro meu fim.

O Padre, com os olhos cheio d´água, enfim joga o querosene por cima de Pedro:

- Filho, pela água, tua purificação começou. Agora ela se completará pelo fogo.

E foi naquela triste noite de lua cheia que aqueles homens viram morrer em chamas e arrependido com um terço na mão, o primeiro e último vampiro da região.

TEMA:VAMPIROS

HENRIQUE SANTOS CE
Enviado por HENRIQUE SANTOS CE em 28/01/2019
Reeditado em 05/02/2019
Código do texto: T6561119
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