OS 500 - DTRL 32

Prestes a fazer a viagem que mudaria o curso da minha vida e as percepções tão sólidas de uma carreira calcada na racionalidade e na ciência, eu, Karl Wilmet, 22 anos, solteiro, formado em medicina pela faculdade de Cambridge, até então ignorante de fatos de natureza estranha e inexplicável, começo a fazer parte deste mundo caótico e absurdo e passo a registrar, não para lembrar mas para esquecer, todos os eventos que sucederão desde o dia em que deixei Londres rumo ao desconhecido e fui sugado pra sempre dentro do turbilhão de materializações tão concretas do horror verdadeiro, que me deixaram, antes dos 30 anos, incapacitado e doente como estou agora, em que delirante cito essas linhas à enfermeira Wilhelmina, minha amante e cuidadora, única pessoa que acredita incontestavelmente em tudo que se passou comigo.

Nestes tempos conturbados de agora, onde a ciência, com a louvável finalidade de jogar a última pá de terra sobre a idade das trevas e iluminar os pensamentos primitivos, que como vírus infectam a sociedade com crendices e conceitos primitivos de moral e costumes, eu aceitei o desafio que me foi imposto nesta carta:

Dr. Karl Wilmet,

É com pesar que venho nestas condições escrever-lhe. Pois como médico e entusiasta dos mais aplicados na honrada tarefa de curar as enfermidades do corpo, trago a notícia aterradora e que ainda me enregela a alma, de que uma vila inteira, da noite para o dia, nos arredores da nossa capital Atenas, desapareceu. Pouco mais de 500 pessoas residiam ali.

Para tornar essas notícias dignas de credito, me valho de recortes de jornais da época, considerando que as mentes criativas e perturbadas desse povoado de pescadores e artesãos deram asas a muitas versões de um só evento, desacreditando muitas dessas histórias.

Correio Ateniense,

5 de outubro de 1829

Após a missa dominical de ontem, uma manhã agradável de brisa fresca em que os fiéis voltavam pra suas casas, uma correria se formou tão de repente quanto se forma o ciclone no mar e o alvoroço e confusão foram tão intensos que logo a multidão cercava o lugar para saber o que tinha se sucedido.

Sophia, uma jovem recatada e comum, passou a gritar e atacar as pessoas. Visivelmente alterada a moça arranhava, batia, chutava, todos que se aproximassem, até subir em uma árvore e ter que ser arrancada de lá por 5 homens grandes e fortes, dos quais 2 tiveram que ser levados ao hospital municipal com sérias lesões.

Todos os envolvidos no caso têm pontos de vista distintos à cerca do que aconteceu, o que causou divergências e uma bagunça homérica na delegacia. À ponto de o delegado ter que prender todos na cela e chamar um a um para depor.

Este caso, foi o mais recente antes que a vila fosse varrida para sempre. E o que mais posso adiantar, é que coisas terríveis aconteciam com essas pessoas. De surtos psicóticos, onde um honrado homem de família trucidou todos os parentes com um facão, até suicídios em massa de jovens estudantes que se jogaram do farol.

Como neurologista, afirmo que em toda minha formação acadêmica nunca vi transtornos ou demências em pacientes como estes. Formei uma junta médica em Atenas para discutir o caso e levei os relatórios até para Berlim e Paris, onde os melhores médicos puderam discutir entre eles e todos foram unânimes em afirmar que os exames eram de pessoas com saúde mental perfeita. Por isso peço para que o Doutor atenda ao meu chamado desesperado e venha o quanto antes à Mégara.

Como testemunha das suas práticas pouco ortodoxas, mas eficientes, sei que não poderia confiar em melhores mãos as vidas dessas pessoas que estão perdidas e sofrendo, onde quer que estejam. Se não desvendar esse mistério, vou acabar tão louco quanto os pacientes que trato no Manicômio São José de Cupertino.

Cordialmente, Pedro Bakas

Em Mégara, tomando um chá com Pedro e consultando seus documentos e laudos, eu pude compreender, que se deveras fossem tais laudos de pessoas com problemas psiquiátricos ou psicológicos, algo estava muito errado. Algo ainda incompreendido pela medicina atual e que teria de ser estudado à exaustão.

No local do vilarejo agora só havia uma cidade fantasma de casas e camas abandonadas, janelas e portas escancaradas e espaços vazios preenchidos pelo vento frio das noites gregas. Na Grécia, o mar, a terra, as rochas, as nuvens, todos os elementos da natureza sussurravam suas origens enchendo os ouvidos e olhos de imaginação e poesia. O haxixe nos primeiros dias me ajudou com o tédio e o desconforto de me adaptar à uma cultura tão diferente. Meu cachimbo e meu diário se tornaram instrumentos indispensáveis e claro, Pedro, quando requerido, traduzia o que os moradores de Mégara falavam.

Porém nada poderia me preparar para o que estava por vir. Foi numa noite em que fumei tanto haxixe que meus sentidos ficaram embotados a ponto de me perder e ir parar bem longe. Cai rolando morro a baixo em uma mata fechada e escura. Acordei machucado no rosto, braços e pernas; cortes e arranhões.

Sangrava, a roupa rasgada. Na minha frente me deparei com um cão preto de olhos vermelhos e orelhas pontudas. Tão magro que parecia uma formação esquelética e asquerosa, sem músculos ou nervos. O bafo quente do bicho infernal invadiu meu nariz e me fez tossir. Então tive medo de ser devorado, mas mesmo assim, sem saber o que fazia, só levantei e corri, corri. Quando olhei de volta não tinha cão nenhum, nem floresta tampouco. Não sei se me afastara tanto ou se tudo fora coisa da minha cabeça. Foi quando encontrei a cabana. Uma cabana rustica e velha, abandonada. Tive que forçar a porta pra entrar, quase desloquei o ombro. Lembro que deitei na cama de palha, dormi, quando acordei tinha um homem do meu lado. Era velho, tão velho, que não sei como ainda podia estar vivo. Parecia ter 200 anos e usava roupas simples, de pescador. Trapos rasgados e sujos, fedidos de peixe e ranço.

Sobre a mesa a sua pescaria, 4 peixes amarrados juntos. Sentado na cadeira me observava incisivamente e depois virou as costas, levou os peixes, os preparou, assou e colocou na mesa. Comemos em silêncio, ele só me olhava curioso, sem dizer nada.

Satisfeito, arrotei, ele riu. Limpei a boca com a ponta da toalha da mesa. Ele não gostou desse comportamento, deixou bem claro com o olhar, mas também nada disse. Depois saiu mais uma vez. Lá fora, sentado observava o mar. Sentei ao seu lado e puxei conversa. Perguntei alguma coisa sobre como ele vivia ali, se morava sozinho. Ele não me respondeu, ao invés disso pulou no meu pescoço e me mordeu. Foi um ataque tão repentino que não tive reação. Uma dor intensa tomou conta de todo o meu corpo, como uma injeção de substancia altamente tóxica.

Senti dor, depois senti meu corpo preenchido e inflado, como se através daquela mordida começasse uma reação alérgica e então um arrepio e depois frio, muito frio e ele me largou caído na areia. Deitado de lado, comendo os sedimentos e tentando me restabelecer, o vi afundando no mar, mais fundo e mais fundo até desaparecer debaixo daquele oceano infinito.

Não me lembro depois disso como acordei, nem como fui parar num cemitério. Só sei que estava lá e que túmulos estavam abertos e eu tão pálido e fraco que mal conseguia ficar de pé. Andei e procurei abrigo.

Quando consegui me localizar perguntei à uma senhora, esquecendo que não falava grego, onde eu estava. A mulher esbravejou algo e gesticulou rispidamente com as mãos. Continuei caminhando e consegui encontrar a casa de Pedro. Quando entrei, sua criada, Isadora me recebeu. Tomei um banho, coloquei roupas limpas e cai na cama, dormindo o resto da manhã.

Contei tudo que aconteceu comigo a Pedro, que não duvidava, mas fazia muitas perguntas.

Mas quando falei das tumbas abertas do cemitério foi que ele então me revelou:

- Sim, isso está se tornando normal aqui. Dizem que os corpos dos mortos são roubados para serem vendidos aos anatomistas e legistas das faculdades de medicina de Atenas. Você sabe, isso está acontecendo em vários lugares na Europa e não é mais novidade.

Tem isso também, esse caso dos roubos de corpos. E tudo contribui para fantasiar a história e mascarar com um ar de lenda. Isso me aborrece.

Eu sei que o que aconteceu, de um jeito ou de outro pode ser explicado e por isso você está aqui. Temos que investigar.

- Eu estou fazendo o possível, desde que cheguei. Mas o povo é fechado, não falam. Quando falam as pistas não dão em lugar nenhum. Parece que estou andando em círculos. Não sei mais o que pensar.

- Quem sabe se ficasse mais tempo sóbrio. Sem o seu haxixe, ou seu ópio. Tente ficar limpo pra variar. Verá as coisas com maior clareza.

- Ver o que com clareza? Como posso compreender o incompreensível? Você mesmo falou, que tem que ter sentido, mas nada aqui faz sentido. Então o que eu to fazendo aqui? Já não sei mais.

- Escuta. Esta noite vamos jantar na pensão de Dona Catarina. É uma velha ranzinza e sovinas, mas ela jura que viu a netinha Pietra, que desapareceu junto com os 500 da Vila. Escutei o boato enquanto almoçava numa taverna de beira de estrada. Não dei muita importância, mas depois fui tratar de assuntos de negócios, acabei indo parar perto da casa. Bati na porta e ela me confirmou tudo, chorando, achei que acabaria matando a velha de emoção. Abanei, dei água, ela se recompôs e terminou de me contar. Disse tudo como foi e ela não está mentindo, eu sei. Nós médicos sabemos, não é? Com nossos pacientes é assim. Sabemos quando mentem e quando falam a verdade.

- E o que fazemos com essa informação? Como isso irá nos ajudar?

- Bom, agora sabemos que não desapareceram assim, do nada. Estão por ai. Só temos que encontrá-los.

Essa foi a última vez que vi meu amigo Pedro. Combinamos de irmos juntos ao local onde Dona Catarina disse ter visto a neta, mas ao chegar ele não apareceu. Depois de trinta minutos um carro surgiu, o cocheiro desceu e me entregou um bilhete, dizendo que Pedro havia sido assassinado em sua própria casa enquanto descansava na varanda.

Não sabia o que fazer, não tinha conhecidos ali. Arrumei minhas coisas e comprei meu bilhete na estação. Fazia muito frio, minhas mãos estavam congelando. Ao calçar as luvas me distrai e não percebi aquela multidão. Eram eles, eu sabia. 500 almas, vindas do inferno, sujos de terra e molhados. Gemiam e gritavam. Suplicavam pela morte. Encarei os transeuntes que circulavam pela estação para ver se também notavam. Estavam todos boquiabertos com aquele horror. Paralisados de medo, não se mexiam, como se estivessem hipnotizados. Então dos telhados vieram os gatos de todos os lados, de casas, igrejas, lojas. Ladeavam a multidão e avançavam miando esganiçados e medonhos. Os olhos amarelos, infernais e obsessivos, capturavam sua alma e remexiam seus intestinos por dentro, a ponto de desejar morrer.

Eu não sei o que aquele velho na cabana tinha feito comigo naquele dia. Só que tinha me deixado doente, muito doente. Estava me desfazendo aos poucos, perdendo minha energia vital. Como uma cana chupada, ficaria só o bagaço com o tempo. Mas quando os andarilhos das trevas, aquelas almas desaparecidas invadiram a estação, tudo que fizeram foi tocar as pessoas e instantaneamente todos nós nos desviamos dos nossos caminhos e fomos com eles. Como se nada antes importasse. Como se só agora começássemos a viver.

E foi assim que me tornei esse lunático imprestável, residente no Manicômio de Forkshire. No dia em que fui encontrado pelo pai de Wilhelmina, numa praia isolada e quase morto, fui tratado por ele e pela filha de maneira muito cortes. Perceberam logo que não estava em meu juízo perfeito e me internaram nesse lugar, onde Wilhelmina já trabalhava.

Numa noite chuvosa porém alguém apareceu no manicômio. Um homem com muita pressa e aflito, gritando meu nome foi recebido por Mina e lhe entregou uma carta:

-O vilarejo é amaldiçoado. Todos os seus moradores foram cúmplices da tragédia. Uma coisa horrenda, que faria até o desalmado diabo sentir pena do pobre Yorick.

Segue o conteúdo da carta:

Caro Wilmet,

Acompanho sua busca incansável por respostas. Lamento, mas você não as vai encontrar. Mas a essa altura já deve saber disso, se ainda não se tornou um deles. Essa miserável vila e todos os seus 500, biltres e ordinários maldosos e sem coração, recebeu seu galardão justo e bem pesado, como retribuição pelo desprezo e sofrimento que fizeram o infeliz Yorick passar.

Quando chegou na vila, no longínquo ano de 1699, pediu água a um lenhador que fazia lenha de toras. Chamou o filho, mas depois parou, riu para Yorick, foi pessoalmente e trouxe a água. Assim que bebeu Yorick sentiu o gosto amargo do vinagre e cuspiu tudo. Ainda assim ficou.

Sentou-se para descansar debaixo de um beirado, numa casa simples. Mas sem perceber o que tramavam do alto, foi alvejado violentamente por dejetos humanos jogados de um balde, da janela acima de sua cabeça e ainda assim ficou.

Ninguém sabia, mas Yorick de onde vinha tinha sido um bobo da corte e trouxe com ele uma trupe para construir um teatro na cidade.

Representavam as peças de Shakespeare e sempre disfarçado agora, não chamava a atenção. Mesmo assim pagou caro quando passaram a se interessar pela vida de Tereza, sua esposa. Sociável e amável, risonha, brincalhona, logo passaram a caluniá-la e difamá-la.

Mas o destino cruel parecia favorecer os facínoras e revelou uma faceta escondida de Tereza. Ela ensaia escondida com um ator para representar uma peça, disfarçada de homem. Quando viram os dois supostos amantes, logo envenenaram a cabeça de Yorick e armaram um flagrante. Talvez não esperassem uma reação tão intempestiva dele, matando a sangue frio a esposa e o amigo ator.

Vagando perdido e desamparado pelo mundo, durante muito tempo não tiveram mais notícias. Quando voltou estava mudado, mas o reconheceram. Tinha os mesmos olhos, mas não era o mesmo olhar.

Agora se tornara um homem mal. O riso com o qual presenteava a todos havia sumido e no lugar um desdenhoso sorriso torto e discreto de onde despontavam incisivos amarelados.

Apresentou-se como um trabalhador autônomo e passou a fazer serviços diversos para todos. Em pouco tempo todos precisavam dele sempre, pra tudo. E aos poucos durante muito tempo o esperto e vingativo Yorick, dotado de um poder incompreensível para aquelas pobres almas humanas, passou a concatenar sorrateiramente planos diabólicos que jogavam uns contra os outros, soprar segredos, revelar pensamentos sujos de uns em relação a outros e logo, sem que se dessem conta dos motivos, estavam todos entregues, imóveis, como peças de um jogo. Cada um servindo de instrumento para destruir o outro e orquestrar com perfeição tudo o que o seu mestre já tinha determinado.

 

Tema: Vampiros