O COME-BUNDA CLTS 06

Dalila não tinha nenhuma cliente naquele fim de tarde, era uma quinta feira morna e ela varria o pequeno salão Cachos Dourados. Se orgulhava do seu empreendimento embora fosse um muquifo muito mal frequentado onde anos antes um grupo de fanáticos louvava o Senhor pregando a total abstinência. Ironia, pois suas freguesas no geral eram prostitutas ou travestis sem condições para buscar melhores cuidados.

Na mesinha de canto, algumas revistas velhas cobriam parcialmente a Tribuna do Povo, jornaleco sensacionalista local que muitas vezes estampava notícias fantasiosas.

Por um momento ela deixou a vassoura de lado se interessando pela manchete de capa: ‘O COME-BUNDA FAZ NOVA VÍTIMA’.

Já conhecia a notícia, nos últimos dias era assunto recorrente entre as profissionais do meretrício, porém queria ler as palavras impressas, saber o que dizia as pessoas cultas de um mundo ao qual sonhava fazer parte. Diferente do boca-a-boca, esperava ter informações consistentes sobre o ritmo das investigações.

Não conseguiu ler nem metade da matéria quando teve seu salão invadido.

Marta Tentação parecia ter um ataque de nervos, nem cumprimentou a cabeleireira, já sentou parecendo ser a dona do estabelecimento.

- Dalila, minha nêga, me socorre. Dê um jeito neste aplique pois tenho um encontro importante hoje, não quero parecer servente de pedreiro.

- Já fechei por hoje. Você podia ter vindo mais cedo.

- Amiga, sua linda. Dinheiro não escolhe hora de chegar. Quando vem a gente agarra. Faz isso por mim, hoje faturo alto. Tô precisada, aluguel venceu e a velha dona do quartinho já bateu umas três vezes lá na porta.

Marta falava quase sem dar oportunidade de resposta.

Ela também precisava daquele dinheiro, o movimento estava fraco, só não queria que achassem que era só chegar e pronto, tinha que ter respeito, o salão era simples mais organizado.

- Nêga, você viu? A Baiana tá faturando alto lá no cinema antigo, ganhou na loteria, só home com carrão. Ela tá um luxo.

Enquanto a cliente deitava falação, apática, a cabeleireira ia ajeitando os cachos sintéticos já passando da hora de serem substituídos.

Marta parecia uma maritaca, ao falar deixava transparecer sua inveja recolhida.

- Miga, você precisa ver. Tá toda siliconada, um horror, parece que vai explodir. O traseiro esta tão grande que se virar sem aviso é capaz de derrubar uns quatro ao mesmo tempo.

- Aquela Baiana é uma desaforada. Tá me devendo três cabelos, mas tem dinheiro para silicone. Tem que tomar vergonha. Quero ver é meu dinheiro. Quem faz caridade é a Cruz Vermelha.

A conversa transcorria agitada, Marta muito comunicativa fez a colega esquecer o cansaço do dia maçante. Era quase vinte horas quando terminou.

- Querida, amanhã a gente acerta, só tenho do táxi, mas esta noite promete. Vou me dar muito bem. Coisa garantida.

Com olhar vazio, a cabeleireira ficou novamente nas promessas, seu esforço foi em vão, porém com o serviço feito, restava confiar na promessa de pagamento no dia seguinte.

* * *

Terminado mais um programa, a Baiana desceu de um sedan luxuoso. Sua micro-saia impedia-a de movimentos mais soltos. Ainda com o sorriso frouxo, o motorista se despediu satisfeito. Ela ajeitou a bolsinha vermelha, jogou os cabelos para o lado enviando um beijinho sex para o bonitão que acelerou com preguiça.

Era muito tarde, a rua do cinema estava deserta, a iluminação dos postes revelava dois vira-latas brigando pelas sobras do restaurante francês.

Quando pegou o celular para chamar um taxista seu amigo, um carro parou a seu lado. O vidro escuro se abaixou lento.

- Vamos embora? Quer carona?

Ela conhecia a pessoa ao volante, sorriu. Uma carona sempre é bom, ela não precisaria esperar e economizaria o dinheiro da corrida.

* * *

Carolina deixou o filho na porta da escola, ela não o beijou como em anos anteriores, agora ele se achava homenzinho, não queria pagar mico para os colegas. Mesmo assim era uma tarefa que não dispensava. O garoto de doze anos a lembrava da inocência e pureza humana, algo do qual se afastava cada vez mais.

Ainda havia tempo, antes do trabalho dava para tomar seu café na padaria “Deus Lhe Pague”, o plantão só começa às oito da manhã.

Antes de receber seu pedido, o café foi adiado.

- Pois não Delegado Meiga. Atendeu a seu colega de profissão.

- Bom dia Doutora. Sei que ainda esta descansando, mas aconteceu de novo. Acharam outro travesti assassinado.

O plantão da delegada Carolina Monteiro teria início em menos de duas horas. Adilson Meiga era responsável pelo caso, mas achou por bem acionar a colega que breve renderia seu turno, substituindo-o na investigação.

- Não se preocupe. Estou à disposição. Onde foi que encontraram o corpo?

- Os funcionários da Granja acharam perto do parque de exposições, ao lado da ponte.

- Temos alguma pista?

- Ainda não Doutora. Estamos em diligência. Recebemos o chamado há uns quinze minutos, as viaturas seguiram rumo ao local. A equipe do Romeu também foi acionada.

- Vou direto para lá. Obrigada pelo aviso.

Nos últimos meses, uma série de crimes homofóbicos abalava a cidade que não era tão grande. Provinciana, diria-se que todos tinham um laço de afinidade, todas as fofocas eram de domínio público.

Romeu era o perito criminal destacado pelo governo federal para auxiliar nas investigações que até então pouco se esclarecia. Em meses, nenhuma pista promissora foi encontrada, o povo se dividia contra e a favor da habilidade dos investigadores.

A estrada que levava à Granja era bem conservada apesar de cruzar áreas de matas e pastagens. A prefeitura escolheu um terreno afastado com pouco valor comercial para construir o parque de exposições onde realizavam as varias festas municipais como o Jubileu do Santíssimo, rodeio e a festa do hortifrutigranjeiro, a mais popular do centro-oeste.

Os vizinhos não reclamavam, moravam longe, as estradas foram melhoradas com a pavimentação que devido ao pouco uso garantia sua longevidade, além é claro da iluminação e limpeza das margens. Sobre o riozinho de águas mansas, uma ponte repousava.

A Doutora Carolina chegou pouco tempo depois que seu colega. Seus investigadores também foram convocados.

- Bom dia Doutora. Cumprimentou o delegado.

- Bom dia Doutor. Respondeu ajeitando seus óculos escuros. Temos alguma nova informação?

- A vítima é nossa conhecida. Waldemar Antônio Brandão, vulgo Baiana. Passagens por agressão, roubo e desordem. Estava respondendo a tentativa de homicídio. Esfaqueou um suposto cliente por falta de pagamento.

- Vamos listar o tal cliente para investigação. Quais as características da morte?

- Provavelmente ocorreu entre meia noite e quatro da manhã, o corpo foi encontrado logo em seguida, seis e meia, as testemunhas foram arroladas e ouvidas, aguardam liberação.

- E aqueles curiosos ali? O criminoso pode estar entre eles, observando nosso trabalho.

- Alguns são funcionários da Granja, a maioria caipiras locais. Romeu colocou homens entre eles, estão na espreita.

- Como esta a Vítima?

- Se encaixa no perfil. Mesma assinatura. Travesti, contusão no crânio, marcas de enforcamento provavelmente por torniquete, acreditamos que tenha usado a alça da bolsa da vítima que foi devidamente preservada como prova, e por fim, na região das nadegas profundas lacerações, marcas de mordidas que serão comparadas com os outros casos, alguns pedaços foram até mastigados num rito de canibalismo post mortem. A emissora de rádio já noticiou mais um caso do come-bunda, nome idiota criado por estes ignorantes, contudo mandei fechar os acessos à rodovia limitando a contaminação da cena.

- Muito bem Meiga. Excelente trabalho. Parece que teremos um dia daqueles.

- Pois é. Desta vez o elemento não descansou nem uma semana.

As mortes ocorriam sempre guardando um prazo entre si, mas algo fez o assassino agir mais cedo, ou então sua necessidade de matar tenha aumentado.

O delegado Meiga acompanhou um pouco mais as investigações e se despediu, seu plantão havia terminado e estava exausto, queria um banho quente para livrar-se da sujeira da vida nas ruas. Agora a responsabilidade era da colega.

Os peritos passaram a manhã estudando a cena, fotografaram e recolheram provas, no fim reviram todo o local em busca de evidencias importantes a serem anexadas ao caso.

Nas semanas seguintes as testemunhas foram ouvidas, papeis preenchidos e a mídia sensacionalista disseminou um monte de inverdades.

Determinou-se o reforço do policiamento em toda a cidade, principalmente nos redutos de prostituição onde o movimento dos travestis teve uma queda drástica, os clientes também desapareceram.

Em casa, o dinheiro começava a faltar e as contas acumulavam-se, felizes eram aqueles com dupla jornada, mas para Dalila o Cachos Dourados perdia também seus clientes enquanto o locador apertava querendo o seu.

Sem programas, não havia penteados, a fonte secava arroxando as finanças, por sorte o telefone tocou. Era um cliente conhecido, idade já avançada, viúvo dono de padaria, cachê fácil que cobriria uma parte da sua dívida.

As vinte e três horas marcaram num local discreto. Para não ser reconhecido, como sempre o senhor de respeito deixaria seu carro na praça, seguiria a pé e Dalila o apanharia, a gratificação compensava o esforço para garantir a reputação do padeiro.

Passaram uma noite extasiante. Às vezes ativos, outras passivo a idade ou mesmo o casamento jamais foram empecilhos para as peripécias amorosas do senhor ranzinza que se derretia ao ser tomado pela magia da cabeleireira.

Com a madrugada avançado, estava na hora de se despedirem, ele ficaria bem próximo de onde foi apanhado se a rua estivesse deserta, é claro.

Computado o saldo da noite, Dalila respirou aliviada, dobrou as notas enfiando-as no sutiã, estava pronta para seu repouso merecido.

Descendo a rua do cinema, encostou ao ver Marta Tentação. A colega se debruçava com metade do corpo ainda dentro de um veiculo, seus movimentos escandalosos demonstravam a ausência de pudor, o vestido tubinho ultra colante quase mostrava aquilo que jamais deveria ser revelado. Com um forte estalo, as duas bocas se desgrudaram. Marta se desembaraçou de seu último compromisso.

O cliente acelerou desaparecendo na esquina. Dalila enxergou uma ótima oportunidade para completar seu aluguel. Certamente a noite havia rendido um bom cachê para amiga, aquele aplique fiado estava na hora de ser quitado.

Marta não recusou a carona, estava exausta, porém falante. Coitado do seu último compromisso que teve seu desempenho menosprezado e satirizado, a única coisa que valia a pena era o pagamento muito generoso. Gostava também do carinho como era tratada, às vezes numa relação profissional os atos quase mecânicos diminuem a interação humana.

Ao falar do fiado, Dalila foi rapidamente rebatida com uma série de prioridades atropelando qualquer possibilidade de receber aquilo que lhe era devido.

Vermelha de raiva a motorista encerou a conversa, seguiu o resto do caminho remoendo seu ódio, seus ouvidos doíam com a voz irritante da colega, cada palavra dita era um tapa em seu rosto, desejava atirar aquela inútil para fora com o veiculo ainda em movimento.

Quando parou bem próximo a casa de Marta, que se esforçava para abrir a porta sem sucesso pois algo travava o mecanismo, Dalila desceu dando a volta para abri-la pelo lado de fora.

Ao descer, Marta recebeu uma forte pancada em sua nuca, não conseguiu se manter alerta, seu corpo amoleceu perdendo os sentidos, Dalila a devolveu para o interior do veiculo, seguindo rumo desconhecido.

O Delegado Meiga estava de campana na rua do cinema quando viu Marta entrar no carro de Dalila. Um impulso o fez seguir as duas, na verdade, muito antes estava de olho no balanço dos quadris da morena, se não fosse Dalila, ele mesmo teria abordado Marta, afinal ninguém é de ferro.

De longe assistiu Dalila desferir o golpe que nocauteou a colega, quase interveio, porém algo dizia para esperar o desfecho dos acontecimentos. Permaneceu observando à distancia, seguiu com os faróis apagados até que a cabeleireira parou num lugar bem afastado e calmo. A madrugada seria a cumplice perfeita daquele crime.

Dalila nem percebeu o que a acertou.

Certo da impunidade do cargo, o Delegado Come-bunda salivava.

- Duas pelo preço de uma.

Em sua mente deturpada, cumpria seu dever sagrado, limparia a cidade de toda a sujeira humana.

Tema - Serial Killer

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 02/02/2019
Reeditado em 27/06/2020
Código do texto: T6565352
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