As Árvores - CLTS 06

Por favor, me chame de Vini, poupa tempo e energia. Vindo do interior, eu só tinha 16 quando vim morar em Natal sob aquele velho pretexto de conseguir uma vida melhor. Eu moro no Conjunto Mirassol que fica no Bairro Capim Macio. Muito bem localizado, perto de vários pontos bacanas da cidade. Minha casa fica numa esquina, bem no início do conjunto, em frente a uma praça bem arborizada com um campo de futebol e um parquinho para crianças, do outro lado da praça a BR 101 corta o meu querido Estado do RN. Durante o dia é tudo muito movimentado e agradável por aqui, mas à noite as ruas ficam bem esquisitas e perigosas, não é legal sair por aí depois das 22 horas. Vivo aqui há uns sete ou oito anos e já vi coisas estranhas, curiosas, acontecerem por aqui. E é nesse clima de solidão, de ruas vazias, de silêncio, que vamos ter essa conversa.

Houve um tempo em que eu saía para correr no campo às quatro da manhã, eu trabalhava às seis, era o tempo livre que eu tinha. Em dois desses dias eu vi uma garota sair de um carro por volta das 4:30, alguém a deixava numa esquina e ela subia as ruas do bairro. No terceiro dia isso não aconteceu mais. Outra vez vi uma garota sentada num banco da praça, eu desci pro campo e ela veio sentar na arquibancada, talvez estivesse com medo, pensei.Quando o dia clareou, ela foi embora.

Nessa mesma época um carro preto com vidros escuros aparecia durante à noite, o vi por três vezes, ficava parado do outro lado da rua, com o motor ligado e faróis acesos, depois de um tempo o carro saía. Outra vez alguém esteve jogando garrafas de vidro dentro da minha casa e durante esses dias arrancaram os números da parede que identificavam o endereço. Vândalos? Jovens? Pensei, não sou muito diferente depois de algumas doses. Às vezes, ladrões espreitam a janela do meu quarto, o qual fica junto à rua, já vi vários. Já presenciei muitos assaltos, às vezes ouço as pessoas fugindo, vidros de carro sendo quebrados, discussões de casais, pessoas passam cantando e conversando, um portão arrastando de madrugada emperrado, que eu não sei onde diabos fica. Enfim, eu presenciava essas coisas. Houve um período da minha vida em que eu passava a madrugada acordado, escrevendo, tocando violão, lendo, assistindo filmes, documentários e show de mulher nua, como diria Belchior. Foi um período de muita solidão.

Mas o ponto forte aqui são duas figuras pelas quais tenho fraternos sentimentos, Wolf e Gambá. Gambá sempre foi um meninão, mesmo com seus trinta e poucos anos. Morava com sua mãe devido ao seu vício em drogas e álcool, mas, depois que ela morreu, ele foi posto pra fora devido às discussões judiciais com outros irmãos que queriam verter a casa em dinheiro, você sabe como é, como diria Belchior: “essas coisas de família e de dinheiro, eu nunca entendi bem". Gambá era muito querido por todos aqui no bairro, pois de tudo ele inventava, ajudava os vizinhos pintando muros, limpando carros e quintais, consertava portões e janelas, levava os bichos para passear, com essas virações ele sempre conseguia um prato de comida e um trocado para os seus vícios. Ele amava este lugar, e mesmo depois de não ter onde morar, ele preferiu ficar por aqui.

Wolf, já um pouco mais velho, talvez entre 40 e 45 anos. Um homem misterioso, alto, loiro, de pele muito clara e um físico esportivo, vive sozinho em sua casa, um antigo casarão de muro baixo, com um jardim à vista. Interessante e bonito, parte do muro e algumas ornamentações no jardim mostravam símbolos e figuras que eu já havia visto algo parecido em filmes e documentários sobre a Alemanha da Segunda Guerra Mundial, o que, de certo modo, me causava medo e ao mesmo tempo me agraciava a vista com tão bela arte exposta. A maldade por trás da história, você sabe como é...

Apesar da maior parte dos moradores gostarem do Gambá, esse sentimento não era unânime. Havia pessoas que não o desejavam, “escória”, entende né? Interessante pensar que essa imagem de morador de rua foi criada por pessoas do mesmo tipo, de mesma índole, visto que os próprios irmãos preferiram tomar-lhe a casa, e agora, o pobre diabo era julgado pelos senhores da situação. Triste e medonho, meus amigos, é o momento em que o criador abomina a criação.

Mas apesar do seu infortúnio, Gambá estava sempre com um sorriso no rosto e pedindo uma próxima dose, moleque piranha! Ele sempre soltava uns gracejos para as moças que passavam na praça, era sempre ignorado, mas o cabra sempre dava risada depois de já estarem longe, ele sempre dizia: óia óia, venham ver uma aranha, chei’ de perna! Certa vez eu lhe disse: “Cuidado não...! É numa dessas que você arruma o chapéu da viagem, visse?!” Ele respondeu: “Arrumo não. Visse, galego.” Então eu lhe falei: “Home’ você tenha cuidado!”, mas ele saiu cheio de graça dando risada.

Fora aquelas coisas estranhas que comentei no início, teve algo mais. Daphne era uma garota que morava no bairro, assim como eu, vinda do interior. Estudava, trabalhava, enfim, levava uma vida bem normal. De pele morena, cabelos pretos longos e lisos, de fato, uma moça muito bonita de chamar a atenção. Eu estava na calçada com Gambá, por volta de umas onze horas da noite, quando ela atravessava a praça em passos apressados, como se fugisse de alguém, mas não falou nada. E quando desviamos a atenção, ela não estava mais lá. O que não fazia muito sentido, pois ainda havia um bom pedaço de chão pela frente. A princípio, nós pensamos no caso de pegar um atalho ou algo do tipo. Acontece que essa foi a última vez que ela foi vista. A única moça para a qual Gambá não soltava gracejos. Ele gostava dela, eu sabia disso, por mais que ele sempre tenha negado, o olhar dele era claro como o dia. E quando ela desapareceu, sua respiração ficou densa e ofegante. O que me fez triste por ele.

A partir de então, mulheres começaram a desaparecer na praça. Era muito sinistro, a única coisa em comum é que todas foram vistas pela última vez nos arredores mais escuros entre as árvores da praça. A polícia foi acionada, mas não chegaram à conclusão alguma. Naqueles dias era bem comum uma viatura disfarçada da polícia rondar a praça, mas quem quer fosse, já sabia disso e certamente não ia dar vacilo. Ou era isso, ou a polícia nunca quis investigar por já conhecer a origem de tudo aquilo e sabia que até certo ponto o sujeito tinha bala na agulha.

É certo que a maioria dos moradores jamais suspeitaram de Gambá, mas aquele seleto grupo de moradores que o detestavam pensava diferente. Outro dia, a noite já caía, Nellie vinha com uma amiga passando pela praça. Gambá, já zoado depois de dar um tapa no cachimbo do índio, soltou um gracejo para amiga da moça. Nellie, neta de Seu Potrão e Dona Romilda, assim como os avós, repudiava Gambá e ele sabia disso. Sabia tanto que nada disse para a neta do casal. Mas Nellie estava sombria naquele dia.

Após deixar sua amiga na parada de ônibus, ela foi correndo para a casa dos avós e lá fez uma peça sobre como Gambá teria a molestado e raptado sua amiga. Aquilo foi um estrondo, a conversa se espalhou muito rápido e ninguém sabe ao certo se ela foi induzida por alguém. Houve muita confusão e gritaria entre os que o defendiam, os que o acusavam e os que se mantinham neutros tentando acalmar a situação.

Eu corri até onde ele estava e lhe falei:

- Home’ vá-s’embora daqui, estão dizendo que você fez arte com a neta de Seu Potrão!

- Comé que é, Galego?! Eu não fiz nada com ninguém não, viu?! Se saia! Eu tava aqui ó, no sossego, só soltei um agrado pra moça que ‘tava com ela!

Eu ainda insisti:

- Home’ vá pelo menos enquanto as coisas se acalmam por aqui!

Mas ele era teimoso e no fundo tinha razão:

- Galego, se eu for embora é a mesma coisa de assumir algo que eu não fiz!

Enfim, eu me despedi e fui para casa muito nervoso e preocupado. Uns cinco minutos depois, eu ouvi muita gritaria na praça, gritos de revolta, de vingança e de desespero. Naquele momento o desespero era Gambá. Eu saí correndo para ajudá-lo, mas quando cheguei na praça, de longe o vi no chão rodeado por seis homens que batiam sem parar enquanto ele se esperneava e tentava atingi-los de alguma forma. O pobre diabo ainda conseguiu juntar um punhado de areia e arremessar contra os seus agressores. E naquele vacilo ele conseguiu fugir, saiu correndo em completo desespero, porém, ele não viu o buraco de uma obra que estava sendo realizada pela companhia de tratamento de esgotos do Estado. Eu fechei os olhos. Caiu uma lágrima. Naquele momento o silêncio era desespero.

Não houve gritos, nem gemidos, apenas o silêncio. Os homens saíram correndo covardemente. Chegando no local, o vi estripado como um porco entre as vigas que se erguiam no escuro do buraco e o silêncio mortal de uma tragédia.

Ao longe, quase no fim da praça, percebi um homem escondido entre as árvores, Wolf, eu tinha certeza.

Estava feito. Wolf veio até minha casa numa conversa estranha;

- Quer ver o que é a vida? Se eu falasse, ninguém acreditaria. O homem come o pão e a terra é o diabo na sua essência.

- Mas que diabos você tá falando, cara?!

- Preciso te mostrar uma coisa!

Ele me conduziu até sua casa. Vi um jardim muito bonito e bem cuidado, mas só até a porta. Ao entrar, Nellie estava pendurada no meio da sala e já cheirava mal, vermes comiam parte de um bonito rosto, apesar da crueldade que ela praticara e agora a consumia de todas as formas. As garotas que sumiram na praça estavam todas sentadas na mesa de jantar, com parte de suas peles arrancadas e alguns membros removidos com certa precisão. Era um lugar sujo e fedido, membros cortados espalhados pela casa, jogados de qualquer jeito, parecia mais um matadouro e o abate eram seres humanos. Paredes sujas de sangue, velas acesas, injeção com líquidos entorpecentes, restos de bebida, livros antigos e empoeirados, roupas íntimas amontoadas no chão, muita, muita sujeira. E no meio desse inferno, um lindo quadro enfeitava a parede da sala, um anjo alto, bonito, de pele clara e um físico esportivo, que se não fossem as asas, parecia o próprio Wolf. Olhava para quem o fitasse, agraciado com três lindos pares de asas, iluminado por luzes que emanavam do céu. Abaixo do quadro, facões e machados sujos de sangue escorados na parede, a qual continha a expressão “Morning Star" escrita com sangue empoeirado. Na cozinha, último cômodo antes do quintal, uma mulher sentada ao lado da mesa, como uma boneca cheia de costuras e remendos, com uma xícara, talheres e um prato postos à disposição. Naquele momento, o silêncio era solidão.

É-é s-sua mãe? Gaguejei.

- Estávamos tomando o café da manhã quando eles chegaram - ele falou - fora morta por homens como aqueles que pegaram o ‘gentleman’ (era como ele se referia a Gambá), sua vida fora tirada muito antes do seu tempo, eles não deram sequer uma chance pra ela e tudo aconteceu bem na minha frente, eles me penduraram de cabeça para baixo e me batiam o tempo todo! - os olhos dele se encheram de lágrimas. - O sangue me transformou nessa aberração.

Eu tentei fazê-lo refletir um pouco: você não acha que a sua Mãe não já sofreu demais? Pense bem em dar a ela um descanso digno da mulher que ela foi para o senhor.

Da janela da cozinha eu pude ver seis crânios no quintal enfileirados lado a lado. São eles?!

- Sim - respondeu Wolf - agora olhe mais de perto. A grama não cresce, seca, quebradiça. Eu não vou pro céu, mas eles também não. Estão se revirando há dias dentro de suas alcovas, ou a morte não tem interesse nesse tipo de gente, ou a Estrela da Manhã já iniciou a punição. No mais, nas minhas orações, peço um lugar reservado no Inferno de Dante.

Um silêncio mórbido se fez entre a gente no meio daquele cenário insólito, cortado apenas pelos gemidos dos algozes de Gambá sob a terra e uma música, que tocava no quintal de uma casa vizinha:

“Mãe, guarde esses revólveres pra mim, com eles nunca mais vou atirar

A grande nuvem escura já me envolveu, me sinto até batendo na porta do céu...”*

Aquela música tocando, um lindo fim de tarde embelezado por nuvens densas que se misturavam com a luz do sol poente, tão linda e atraente quanto a do nascente, traziam um ar de leveza no meio daquela escuridão. A essência de Gambá, uma flor no asfalto, o silêncio no intervalo, a precisão no tique-taque de um relógio atrasado, o sorriso de Daphne. Tudo agora era calmaria no meio de tanta destruição. Uma brisa bateu no nosso rosto, o meu sempre enrijecido e carrancudo, apesar de jovem, o de Wolf, amargurado.

Um pouco mais lá pra o fundo do quintal, havia várias flores brotando no chão, a grama era muito verde e macia, vários buquês rodeavam aquele pedacinho de terra. Depois das flores, duas pedras enfeitadas com muita delicadeza, uma escrito “Daphne” a outra “Gentleman”. O mundo está mesmo cheio de voltas e automóveis, já dizia um grande amigo meu. No mais, as mulheres pararam de sumir, os homens ficaram avisados, a praça ficou mais triste e Wolf continuou sozinho.

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*Batendo na porta do céu - Zé Ramalho (Knocking on heaven's door - Bob Dylan)

Tema: Serial Killer