PRIMEIRO LUGAR

Céu, Inferno... -
DTRL 32
 

 
          Foi quando vi Janaína. Num vacilo do olhar, lá estava ela: salto agulha, vestido curto, coladinho. O cabelo no rosto, os braços estendidos como para um abraço. Mãos firmes e a respiração lenta de um monge. Seria algo comum aquele comportamento no escritório? Cuidado com a imaginação... Absurdo, é só trabalho. Para minha sorte, seus olhos encontraram os meus, o que me garantiu um tempo maior para que pudesse avaliá-la. Concentração.

          Então, passei a notar sua presença. Nós saíamos, para os lugares de sempre, e, ela estava lá. Aquilo já estava se tornando repetitivo demais. Uma coincidência? Apesar de pensar assim, gravei aqueles encontros na cabeça, para recordar. Em pouco tempo, as coincidências não estavam mais sendo coincidências. “Três, quatro, feijão no prato...” Loucura (o que eu tinha quase certeza de que não era); ou um de nós estava sendo perseguido (o que seria estranho e engraçado) ou eram somente especulações de meu pai:

          — Conhece essa foto? Sabe de onde veio? Entende o contexto?  — meu pai retratava a situação sem leveza. — Você não vai criar perfil falso em redes sociais ou dar início a mensagens românticas ou flores, chocolates e bilhetes deixados no carro. Fazer parecer uma perseguição, busca por um romance. Nada de ligar trinta vezes ao dia, pintar o carro com verniz ou fazer acusações. Isso seria clichê e só conseguiria uma separação. Fez isso já e deu em nada. Você já sabe tudo o que é preciso para ser casal. Já resolvemos o caso de Mariah e tem aquela outra garota de quem esqueci o nome — fui tomada pelo pânico, pela tristeza e pela confusão. Enfrentar um divórcio, uma depressão debilitante e outro amor fracassado?

          Tinha que provar a traição... Não poderia deixar aquilo ir mais longe. Não. Estava tomada por um sentimento de liberdade que ainda não conhecia. Estava tudo preparado, não havia batalhas internas para combater. “Cinco, seis, feijão inglês...” Papai me convenceu. Dediquei-me à causa com persistência. Sabia que seria uma questão de tempo. Desculpava-me e justificava que era amor.

         Em casa, era como se nada acontecesse. A rotina das manhãs, café, jornal; depois, ele no trabalho, eu, pilates, questões domésticas.  No clima das noites, fazíamos amor intensamente. Eu mergulhava de corpo inteiro, densa e leve, porque eu podia sentir, então, que existia, como alguém que houvesse perdido a perna, mas ainda tivesse sensações no pé. Durante a tarde, passei a vasculhar fotos e publicações da vadia em todas as redes. Como alguns dos amigos conversavam com ela, decidi colher informações com eles, afinal trabalhavam juntos. Eles comentaram que ela perguntou uma vez ou outra, coisa que é normal, sobre nós. Tracei rotina, horários e hábitos dela. Até que a situação complicou:

          Visitei um local que eu tinha vontade há muito tempo de ir: um Cyber Café. Nesses últimos anos, esse tipo de negócio tem falido e pensei em aproveitar a melhor oportunidade e ir o mais cedo possível, antes que o último que eu conhecia também fechasse. Sinceramente, melhor lugar para se tomar um café no mundo se gosta de tecnologia. Sabia que Janaína frequentava aquele espaço e tudo não passava de desculpa. Assim que a vi, passei-lhe uma mensagem no celular: "Olhe para trás". Ela veio até mim.

         Sinceramente, não sou uma pessoa de surpresas. Mas atuei direitinho. Conversamos de Netflix, crise no país, o nome das flores, as técnicas para se fazer isso ou aquilo. Ela, orgulhosa de tomar um café com a mulher do patrão. Ao sairmos, dois pneus do carro dela estavam arriados. Era a minha deixa. Talvez, naquele momento, eu ainda estivesse no piloto automático, afinal quando avancei ainda tinha em mente o meu casamento, mas tudo estava confuso. Ofereci-lhe uma carona. Logo que ela entrou no carro, bem rápido, fechei-lhe a boca e as narinas com lenço umedecido em clorofórmio e a deitei no banco ao meu lado, como se cochilasse. Tinha que dar uma chance para ela se explicar.

          — Vocês estão juntos, não é? Zombam de mim... — acusei-a de ter feito coisas ruins, de que havia roubado meu marido. Argumentava, em atropelo, que eu não havia feito nada para merecer aquilo. — Pensam que essa sonsa não perceberia nada? — Não sei o que passou na minha cabeça de argumentar, sem respostas. O fôlego morria ensandecido na garganta aflita. O silêncio era a confirmação das conclusões a que chegara: a traição era real. Eis que tive a brilhante ideia de lhe dar socos e pontapés no corpo. Agredi-a, com ímpeto, ali mesmo no Corolla. O humor variava rapidamente: resolvi ignorá-la e ir dormir no casarão do sítio, deixando a moça presa no anexo que servia de garagem e oficina. Lugar afastado.

             O dia havia amanhecido. Chovia forte. Levantei, com o corpo cansado e um pouco de dor nos ombros e nos tornozelos. Lembrei-me dos excessos da noite anterior, por isso estava dolorida. Fui até a cozinha, peguei um copo de água e, arrastando-me pesadamente caminhei até o barracão. Abri um pouco a janela para que o ar pudesse circular e sentei num banquinho de madeira, acendendo um cigarro. Fazia muito tempo que eu não fumava, mas aquele era um momento especial. O céu se clareou de repente com um raio forte, e logo em seguida ouvi o estrondo de um trovão. Do outro lado do tabique, ressoaram gemidos. Virei para olhar, através do pano ralo que dissimulava o vazio da porta, a moça se remexia, agitada na cama, incomodada com a mordaça.

           Fiquei então um tempo observando a fumaça, que subia do meu cigarro, até me dar conta de que uma sombra surgia dela. “Sete, oito, comer biscoito...” Meu demônio interior vinha indefinido e assustador; sabia que ele se movia nas sombras. Era muito perigoso.  Espremi-me contra a parede temendo a fusão inevitável. Quando nos unimos, sabia que não era eu só, éramos nós. Quando nossa respiração sincronizou, eu não era mais humana... Carregava um chicote de cabo, próprio para a lida com o gado. Em vão lutei contra a armação que o diabo sugeria. Um frio vivo percorria teso as arestas de meu corpo. O laço envolveu o corpo de Janaína e a arremessou para o chão como uma boneca.

        — Vaca, vaca, você é uma vaca! — minhas mãos estremeciam e minha voz embargava. A moça corcoveava, presa à cinta de crina, com dor e estresse. Amarrei-lhe uma peiteira e sinos ao tronco, causando pressão e desconforto. Chutei-a por todo o corpo com as esporas pontiagudas e serrilhadas inseridas nas botas. Eu era o peão, ela, o animal. O sabor, a excitação e o gosto de ferir alguém que me magoara... Eu necessitava de vingança há muito tempo.

         Cansada do rodeio, mantive um breve silêncio observando a faca que eu manuseava, brincando como se fosse uma criança, que queimava formigas com uma lupa, sorria sem me preocupar se a vítima forçava a voz ou rasgava mais ainda a boca fechada com fita adesiva. Raspei a faca no metal do catre, provocando um zunido amedrontador.

          — Aquelas mãos que me juraram fidelidade a acariciaram assim? Esfregava o metal na coxa mimosa, aprofundando em cortes, vagarosamente, barras verticais. O sangue marcava as feridas, já começando a correr pelas laterais encharcando a cadeira, na medida em que os rasgos aumentavam. Alguns profundos demais. Ela gemia e chorava. Espantava-me o fato de como ela simulava não compreender o que eu queria dela.

              Levantei-me, as esporas marcando o compasso no chão de madeira do barraco. Com uma pá, bati-lhe na cabeça até que ficasse inconsciente. “Nove, dez, comer pastéis...” Devolvi-a para a velha cama, com a barriga para cima, amarrada pelos braços e pés. 

         — Pegue as ferramentas, verifique se funcionam corretamente! — bem no fundo escutava o som calmo e perturbador das instruções de paizinho, misturadas à faixa “Stairway To Heaven” Naquele momento Led Zeppelin adentrava minha cabeça. Imaginava:E haverá um novo dia / Para aqueles que resistirem”. Sim, tudo fazia sentido, eu gostava daquilo.

          Bati com martelo em cada unha... perceber a dor era bom, realizador. — Vaca tem casco, não precisa de dedos! —  Esperei as unhas pretejarem um pouco, enquanto subia para o rosto. Ninguém jamais vai elogiar, novamente, a beleza dela. Amputei as orelhas, desenhei nas bochechas, na testa. Ainda, choquei-lhe um tijolo contra o rosto, tornando-o uma massa disforme de carne, ossos e sangue. Voltei para as unhas, arranquei-as com o alicate.

       — Ninguém vai escutar qualquer grito — papai me orientava. Retirei a fita dos lábios rasgados e roxos... Então veio o mais insano: arranquei dente após dente. Fim do sorriso sensual. Movia o alicate sobre cada um, para frente e para trás, alguns quebravam e não saíam por inteiro. Era tanto sangue que temi chegar a ponto de que ela morresse por hemorragia... Sem uma confissão. O suor a pregava ao colchão. Outro desmaio? Minutos depois ela acordou, eu permanecia ao seu lado limpando faca e alicate.

          — Sabe... algumas pessoas acreditam que podem agir diferentes e assim serem superiores a qualquer um, mas é claro que tudo isso é bobagem, eu sempre vi a morte como um bônus para consertar esses erros — ainda a olhando quase inconsciente. — Felizmente, lido com ela bem diferente. Poderia lhe dar a chance de viver e não fazer novamente o que fez comigo, mas para que correr o risco? E da mesma forma é meio difícil você sair viva daqui sem sequelas, então... você já sabe, tenho que a matar – sorri — você não me conta nada mesmo...

               Janaína virou o rosto para o outro lado, puxei-a pelos cabelos e cortei a garganta, o sangue jorrou... Não demorou muito até que parasse de respirar, ali deitada engolindo o próprio sangue. Tão delicada, tão meiga!

         Pareceu fácil demais, a única coisa ruim era que só poderia fazer aquilo uma vez. O barraco quente, abafado... Com a serra fiz pedaços que juntei em caixas. No lago, ela alimentaria os vorazes e eficientes peixes. Nunca seria descoberta. Não se trata de loucura, nem doença. Meu pai me alertou:

           — Salve seu casamento, remova o empecilho — como as coisas haviam chegado àquele ponto. Não me orgulhava. Eu tinha a mesma sensibilidade de uma pessoa comum. Outro trovão cortou meus pensamentos e então senti a presença de papai fazendo-me um carinho. Os olhos, levemente abertos me fitavam com a mesma ternura de sempre. Sua visão sobre mim era doce. Os cuidados comigo, antes e depois dos trabalhos eram ternos. Preocupação... Mas, quando eu fazia algo que não lhe agradava, ou quando algo dava errado, sua braveza aflorava. Estendi a mão para tocar-lhe o braço. O cigarro já estava no fim, então o abandonei Não existia culpa, não importava que isso tenha sido feito, mas acabaria ali? De costas, adormeci.
 

             Tudo limpo e organizado, enviei uma mensagem para o meu bem: “Venha! Aqui está menos quente. Está chovendo.” Três horas depois o audi estacionava nas raízes agressivas do flamboaiã. Eu não tinha que dizer nada, mas falei para incomodar mesmo:

             — Por que não veio antes? Estava em boa companhia? — irritante, provoquei-o.

            — Você sabe que não tenho ninguém além de você — disse amorosamente, mas para mim eram desculpas que se atropelavam, vexadas.

           — Meu pai não pensa assim. Ele acha que você... — falei com raiva. O facão com que podava as roseiras tremia em minhas mãos.

             — Seu pai não acha nada. Está morto faz doze anos e ainda interfere na nossa vida? — insistia. — Deixe que ele descanse em paz! Já o aturei muito — a voz grossa e áspera, resmungava como uma quase agressão.

          — Mentiroso! Mentira! — mais angustiada. — Papai, venha cá! Mostre-se para este doido! Quer ver quem é que está morto? —  o facão acertou-lhe a jugular. A morte tem uma violência particular em se mostrar. Não tinha essa intenção... Glauco teve tempo apenas de me olhar, sem embate, nem desespero antes de tombar sobre o tapete de flores, agora rubras.
 

          A chuva contínua caía incessante, desde o início da tarde. O vento trazia a chuva e um tanto de frio até o meio do escurecido recinto, molhando o assoalho. Uma chuvinha fina que molhava, molhava sempre e ia penetrando na roupa, na pele, no esqueleto. Coisa chata! Eu me sentia irritada sem saber por quê; a umidade incomodava mais que o frio, pois contra ela não havia defesa. Pior ainda dentro do casarão, na saleta com um banco rústico de tábua irregular encostado contra a parede, voltado para uma imagem desbotada, longos cabelos negros coroados por grinalda brilhante, mãos espalmadas para a frente, apontando para baixo, para os fantasmas invisíveis a olhos comuns. Todos se davam as mãos e dançavam em torno da mesa, uma dança fria, quase gelo. Depois iam se desvanecendo, sumindo.  E, entre eles, eu. “Onze, doze, fazer uma pose...”
 

            Aquela imagem constante: eu-menina outra vez, muito criança, cinco, seis anos?

         — “Um, dois, feijão com arroz...”  Papai, tô cantando direitinho? Viu? Pulo amarelinha cantando assim.

          — Muito bem, filhota! Só cuidado para não chegar é no inferno. Não, não quis assustar... No final, fica mesmo é o céu! E, eu sempre estarei com você, protegendo.
 
         Somente papai e eu. Refugiados. Às vezes, perturbada, penso que realmente ele está morto..., mas os lábios dele em minha testa afastam essa ideia cruel. Vou levar minha história para o túmulo?

        De tudo que aconteceu, lamento uma coisa: Glauco e Janaína ficaram definitivamente juntos. Aos pedaços, no fundo do lago, mas... juntos — até que os peixes comam o último naco.
 
 

 
Temas: psicose e, um pouquinho de “stalker”.