SONHO E SACRIFÍCIO - DTRL 32

Lú é feia porque eu sei que ela matou um menino. Na noite eu desenhava a lua. Um círculo no papel. Fiquei apertando dentro dele. Me deu medo porque ela olhava pra mim. Tinha sangue na boca. Ela explicou que era preciso. Eu não entendo, disse assim mesmo, disse sim, e disse não entendo. Lú tinha um caderninho, anotava tudo nele, depois guardava debaixo do colchão. Ela me disse que um dia seria uma cantora famosa. Que a vida iria melhorar. Eu acreditei nela. Ela era a estrela e eu a lua. Peguei o Cidinho, meu rato que perdeu a cabeça, e me meti na cama, dormi agarrada nele.

Com um pouco de esforço conseguia ver no espelho as marcas das mordidas dela nas minhas costas. Ela disse que era pro meu próprio bem. Ajudava a esquecer a fome. Ela virou e me pediu pra fazer o mesmo. Eu mordi as costas dela e ela explicou que precisava ser bem mais forte. Mas eu tinha medo. Ela mandou eu parar de ser bebê. Então mordi com vontade mesmo, senti o gosto salgado, esperei ela reclamar como eu sempre faço, mas não reclamou, ainda mandou eu sugar o máximo que pudesse.

A voz dela era tão bonita. Gostava de ficar ouvindo Lú falar no meu ouvido naquelas noites em que eu não conseguia fazer o sono entrar. E ela me contava um monte de histórias. Contos de fadas, sempre tinham festas em salões enormes onde sempre, sempre, sempre aconteciam banquetes. E ela descrevia as janelas e as cortinas e os portais. Fazia eu ver as pessoas dançando, servindo os pratos com pedaços de carne, batata, salada. E tinha princesas e reis e rainhas. As festas eram de noite, com a lua redonda, brilhante, no céu salpicado de estrelas. De vez em quando eu pegava no sono, mas tinha medo, sentia os dentes nas minhas costas, eu reclamava, queria saber o resto da história, ela mandava eu voltar a dormir.

Lú vivia sendo expulsa dos bares. Por pouco não quebravam seu violão. Ela falava que era tudo minha culpa, que eu não ajudava com a dieta dela. Ela disse que estava imensa, como uma baleia, um hipopótamo! Eu deixava escapar uma risada e ela me acertava um tapa na cara. Não doía, os braços magros, Lú era fraquinha, os dentes eram fortes. Assim pensava eu até aquele dia em que ela me mordeu com tanta força que deixou escapar um grito.

– Que foi? – perguntei assustada.

– Meu dente... porra! – segurava a boca.

Disse que perdeu o dente. Levantei, desengonçada, como uma boba, comecei a procurar seu dente.

– Idiota! Ficou preso nas suas costas.

Nas minhas costas? Ah, entendi! Olhei no espelho e lá estava o dente, cravado na pele, um fio vermelho maravilhoso alongava-se como um tapete. Era um presságio, pensei, um dia minha irmã seria famosa, uma estrela de Roli... roliudi!

– Sua imbecil, se não abaixar não consigo alcançar.

Me agachei e ela pegou o dente de volta. Ficou olhando pra ele com uma expressão desolada. Fiquei triste, disse pra ela que iria desenhar um desenho bonito, com cores. Abria a gaveta, arranquei três páginas da lista telefônica, deitei no chão e comecei a desenhar círculos e estrelas pequenas. Eu era as luas e a Lú as estrelas.

Era noite de lua cheia. Lú saiu com a fantasia de enfermeira. Só assim conseguia trazer nosso jantar. Esperei, ansiosa, sentia a barriga doer de tanta fome. Balancei minha pele flácida, escondia Cidinho dentro dela, tentando me distrair. Ela ia demorar, sempre demorava um... Como? Já voltou? Trouxe uma coisa numa cadeira de rodas.

– O que é isso?

– Cansei dos velhos. Anda, hora do jantar.

Ela me passou a faca. Minha fome me impedia de raciocinar. Era menor do que os de costume. A pele parecia mais difícil de ser penetrada. O mais diferente eram os olhos que... que tinham um brilho parecido com as estrelas. Não gostei dos olhos, preferia os olhos dos outros, eram olhos normais. Aquele era diferente. Comecei pelos olhos, o resto foi fácil.

– Não desperdice a comida, limpe o prato, tem gente passando fome no mundo, muita fome...

Quando a Lú falava desse jeito era porque estava prestes a desmaiar. Então terminei de comer o quanto antes. Eu disse pra ela que era a vez dela. Ofereci minhas costas. Mas ela não conseguia tirar os olhos dos restos na cadeira de rodas. Então avançou com os dentes podres na batata que eu tinha deixado. Ficou com a boca suja, vermelha. De noite mordeu minhas costas, de dia reclamou que eu não contribuía com a sua dieta.

temas: Anorexia, Psicose.

Alexandre Royg Machado
Enviado por Alexandre Royg Machado em 15/02/2019
Código do texto: T6575256
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