C20H25N3O -DTRL 32

Passava da meia noite quando Bárbara saiu de casa. Animada, desceu

de dois em dois os degraus úmidos de sereno que conduziam à garagem, sem se importar muito com um possível escorregão. Seu coração batia forte no peito, tão forte que parecia ecoar como uma zabumba no ar frio da noite.

No trecho de cascalho ladeado por flores, clúsias e dasilírios que levava ao portão, ela olhou para o céu e sorriu para a lua. Sabia que não era um horário adequado para uma jovem mulher se aventurar sozinha por aí, mas sentia-se confiante. Quase invencível. De forma que atravessou o portão e passou a caminhar pela rua.

    Bárbara andou a esmo por quinze minutos nas ruas escuras do bairro. Durante todo o tempo, não avistou ninguém, nem mesmo os rapazes que costumavam fumar maconha escorados em uma banca de jornal sucateada. O silêncio era impressionante para um sábado à noite, e era a única coisa que atravessava a sua bolha de excitação e a deixava um pouco desconfortável. Ela não gostava do silêncio. Nunca gostou. O silêncio sempre a acompanhou em seus piores momentos.

   Para quebrá-lo, pensou em uma canção e começou a cantarolá-la entredentes. Hopelessly Devoted to You, da Olivia Newton-John. Perdera a conta das vezes que assistiu Grease quando mais nova, na época em que era a pária da escola e que Hollywood ainda exercia seu feitiço sobre ela. Fora o filme preferido da mãe até a morte, e por extensão, seu também. Cantarolava alegremente o refrão quando ouviu um som atrás de si.

Foi um ruído curto e farfalhante, como folhas ou plástico sendo agitados. No primeiro momento, mesmo com os pensamentos buliçosos, imaginou tratar-se de um dos cachorros raquíticos que perambulavam por ali revirando lixo. Olhou para trás, ainda sorrindo, mas não viu nada exceto a calçada vazia e esburacada estendendo-se indefinidamente na escuridão.

    Deixa de ser tola, pensou, voltando a caminhar. Você é uma leoa ou uma ratazana, afinal? Esse pensamento a fez rir alto, gargalhar. Seguiu por mais algumas quadras, agora cantarolando a música tema de Ratatouille em homenagem ao próprio bom humor.

Quando atravessou uma avenida sombria mais adiante, entretanto, o som farfalhante ressurgiu, desta vez mais perto. Bárbara virou-se novamente, esperando encontrar a calçada deserta como antes, mas...

...havia alguém ali.

Uma figura encapuzada se encontrava a cerca de 10 metros, andando a passos lentos mas firmes em sua direção, as mãos enfiadas nos bolsos de um grosso casaco de peluche. Não era possível divisar seu rosto, oculto no capuz, tampouco identificar seu gênero devido à grossura do casaco.

Surpreendentemente, a jovem não teve medo. Na verdade, apreciou a sensação de perigo e a textura que ele imprimia à situação. Limitou-se a virar-se e continuar seu trajeto errante.

Após alguns minutos, os passos às suas costas começaram a acelerar. Ao olhar para trás, Bárbara percebeu que a distância entre ela e a figura diminuíra consideravelmente, e agora, mais de perto, conseguia distinguir seu rosto através das sombras. Foi quando subitamente entendeu no que estava metida. Sorriu. A figura retribuiu o mesmo sorriso.

Como em toda grande noite - o Oscar e o Globo de Ouro, por exemplo-, havia um roteiro minucioso a ser seguido. Bárbara percebeu, sem surpresa, que vinha seguindo um desde que acordara cedo naquela manhã; desde que fizera torradas com geleia de amora e depois ligara para Antônio, seu vendilhão. Todos os seus passos a trouxeram até ali, um a um, e agora restava apenas o encerramento oficial da cerimônia.

Impulsionada pela nova percepção, começou a correr desabalada pela rua, sentindo o vento frio fustigar a pele. Passou pelo centro comercial do bairro, pela pracinha na qual certa vez desejou assistir o desabrochar da Lua Vermelha e por um posto de saúde decrépito. Seu algoz continuava em seu encalço, constante, inexorável, até que ela finalmente avistou o muro branco coberto de pichação que delimitava o destino daquela noite. Era um muro relativamente alto, mas ela sabia que conseguiria escalá-lo. Estava no roteiro, não estava? Ainda no embalo da corrida, abriu um amplo semicírculo para a esquerda para pegar impulso e pulou, as mãos agarrando sem dificuldade a borda do muro. Içou-se com dificuldade e então pulou para o outro lado, quase torcendo o tornozelo na queda.

Endireitando-se, olhou ao redor, intrigada e fascinada ao mesmo tempo. Depois de uns bons anos, estava de volta à sua velha escola!

Uma torrente de lembranças atingiu Bárbara com um impacto quase físico. Como uma bofetada bem dada no rosto. A escola. O lugar em que passara boa parte dos melhores e dos piores momentos da sua vida. O lugar em que fora rejeitada e escorraçada, e onde vivera sua única e malfadada história de amor...

Enlevada, Bárbara andou pelo páteo escuro, revivendo dramas e tragédias de seu eu adolescente. Àquela altura, esquecera-se da figura que a perseguira -ela não era mais importante, agora que cumprira seu desígnio de conduzi-la até ali. Em determinado momento, aprumou-se e tateou até a lateral do prédio, onde as janelas do refeitório se perfilavam até a quadra ao fundo. Escolheu uma.

Com uma pedra grande retirada de um vaso próximo, quebrou um dos vidros da janela, um quadrado pequeno mas suficiente para dar acesso ao local da primeira sessão. Esgueirou-se por ele e adentrou no refeitório sombrio e deserto.

Solenemente, a jovem rumou até a mesa que costumava utilizar na época da escola -a que ficava entre o banheiro e uma máquina de bebidas pré-histórica. Olhou ao redor, excitada.

Chegara na hora exata para a estreia do primeiro filme. Estrelando, Bundão.

   ...O filme começou a rolar na sua cabeça. Ele se passava em seu segundo ano do colegial, no fim de um verão quente e abafado. Naquela época, durante os intervalos, Bárbara costumava sentar-se sozinha em uma mesa no fundo do refeitório, chupando bala de hortelã e fazendo testes bobos de revistas adolescentes. “Qual vestido você usaria no Oscar?”. “Descubra a princesa da Disney que você seria!”. “Saiba como conquistar o garoto dos seus sonhos”. De todos os testes, esse último era o mais gozado. Como ela poderia pensar em um namorado -um namorado de verdade, que a beijasse e a levasse para ver as estrelas no topo de um prédio- se ela sequer tinha um amigo? Bárbara estava acostumada com a solidão, de forma que não esperava qualquer mudança em seu quadro deprimente até a formatura. Mas então, um dia, aconteceu. Bundão, o garoto novo da turma (um menino bonito e introvertido como ela), apareceu no refeitório em seu primeiro dia, puxou uma cadeira, sacou um livro grosso de uma pasta de plástico e começou a ler, mordiscando uma Ana Maria de chocolate. Por alguns minutos, ela ficou olhando para ele, paralisada, sentindo o coração acelerar e as bochechas corarem. Por um momento, as meninas más que lhe apontavam o dedo e riam desapareceram dos seus pensamentos, e foi quando soube que não poderia mais viver sem aquele rapaz. Observou-o até o final do intervalo, as mãos suadas molhando as páginas da revista, pensando absurdamente que precisava falar com ele. Mas como? Bárbara era terrível em interações sociais, e o pior de tudo, não tinha um bom pretexto. Ele acabaria achando-a estranha, que era a ideia geral dos garotos sobre ela. O sinal tocou. Resignada, andou em direção à saída, passando pela mesa onde o garoto se sentara. Foi nessa hora que o viu, parcialmente escondido debaixo da perna única da mesa: um marcador de página azul de papel couchê, certamente caído do livro do garoto. Tremendo, abaixou e pegou o marcador, agradecendo ao universo pela inesperada boa sorte, e ao voltar para a classe entregou-o a Bundão, enviesando um sorriso nervoso. Já se preparava para voltar à própria carteira quando ele tocou a sua mão...

Os créditos subiram, e Bárbara ouviu o lanterninha em algum lugar na escuridão indicar que ela precisava mudar de sala para a próxima sessão. Tranquilamente, saiu do refeitório e seguiu pelos corredores conhecidos até a última paragem da noite. Girou a maçaneta do laboratório de biologia e abriu a porta com um clique. Com exceção de uma prateleira nova cheia de frascos contendo animais submersos em formol, a sala não mudara muito desde a sua época.

Escolheu uma das carteiras duplas ao lado do esqueleto de plástico chamado Pitt, sentou-se e o segundo e último filme da noite teve início.

...O filme se passava no mesmo semestre em que conheceu Bundão, pouco mais de dois meses após começarem a namorar. Bárbara ainda não conseguia acreditar que eles estavam juntos, e frequentemente se beliscava com medo de acordar de um sonho. Bundão não era exatamente o gentleman que imaginara (um efeito colateral de assistir tantos filmes românticos); sequer a havia levado para ver o eclipse da Lua de Sangue na pracinha perto da escola, como ela tanto havia pedido. Mas ele beijava bem, e não se importava em segurar a sua mão no páteo durante o intervalo (era delicioso observar as meninas más e solteironas encarando-a à distância com descrença). O namoro foi sobretudo interessante para as suas notas. Bundão era ótimo em português e história, e ela, em química -era a melhor de todas as turmas. Durante a semana de provas, passavam o dia inteiro na biblioteca, trocando beijos e dicas sobre as matérias. Ao fim do semestre, Bundão passou em tudo, mas Bárbara reprovou em história. E foi exatamente na primeira aula de recuperação que conheceu Vadia. Vadia conversava com a professora quando Bárbara se aproximou, com uma dúvida. Ela era uma garota linda, de olhos verdes e cabelo loiro vasto e cacheado; Bárbara costumava vê-la transitando tranquilamente por todas as panelinhas da turma, e sua simpatia conquistava até mesmo as garotas arrogantes e populares. Portanto, ficou surpresa quando a garota a convidou para se sentar na carteira ao lado. Começaram a conversar sobre história, mas logo o assunto tomou outros rumos e travaram uma animada discussão sobre os indicados ao Oscar -Bárbara confessou que seu maior sonho era ser cineastra- e o tipo de vestido que usariam na cerimônia se fossem convidadas. (“Eu usaria um vestido rosa de mangas bufantes, Bá, e você?”) Naquele dia, trocaram MSN e conversaram até tarde; assim começou aquela breve e trágica amizade de verão. No dia seguinte, empolgada, apresentou Vadia à Bundão; eles se deram bem, e rapidamente a dupla virou um trio inseparável. Durante os intervalos, enquanto Bundão lia seus clássicos, as garotas preenchiam testes da Capricho aos risinhos e analisavam os filmes em cartaz no cinema. Algum tempo depois, Vadia realizou um sonho: tornou-se ajudante do laboratório de Biologia. Como Bárbara não tinha muito o que fazer depois da aula, ficou mais do que satisfeita com a possibilidade de passar mais tempo com a amiga, papeando enquanto ela organizava os materiais para as aulas seguintes. Antes de apagar a luz e sair da sala, a amiga dava um beijo no esqueleto de plástico ao lado da lousa, que apelidou de Pitt. Bárbara ria gostosamente, mal imaginando o que aconteceria ainda no final daquele mês...

E o que aconteceu foi que Bárbara resolveu surpreender a amiga com um bolo de chocolate em seu aniversário (um bolo completo, feito com as próprias mãos). No momento em que chegou no laboratório, porém, percebeu que havia algo errado. Primeiro, porque a porta não estava fechada como de costume. Segundo, porque pôde ouvir a voz de Bundão através do vão da porta, abafada e temerosa. Ele dizia:

-Você tem certeza que ela não vai aparecer hoje, né?

-Claro que tenho. -Era a Vadia.- Eu disse que hoje teria reunião com a professora, e você sabe como a Bá é bobinha. Ela acredita em qualquer coisa.

-Bom, isso é verdade. Ela nem me questionou quando eu disse que visitaria uma tia no outro lado da cidade com a minha mãe. E olha que eu já contei a ela que só tenho parentes no interior.

-É bom ter um tempinho longe dela. Ela gruda como uma sanguessuga e não solta mais, credo. Pelo menos ela serviu de ponte para nós, querido. Vem cá, encosta a cabeça, me deixa fazer cafuné...

O silêncio que se seguiu certamente foi o pior que Bárbara já presenciou. Ele ressoou pelo seu crânio como ondas de baixa frequência, pulsante, e naquele momento ela teve certeza de que havia morrido por dentro e que nada mais importava.

Quer dizer, havia algo...

Pois daquela vez ela não deixaria barato, como fizera durante a vida toda. Se o mundo era vil e só as meninas más tinham vez, então estava na hora de se tornar uma.

Secretamente, começou a elaborar o seu plano de vingança. Nesse meio tempo, continuou fingindo ser a boboca de sempre, mas de noite, após terminar os deveres e assistir ao filme depois da novela, passava horas na cama encarando o teto, cercada pelo intangível silêncio, imaginando os mais diversos cenários onde aqueles dois traidores seriam punidos. No começo, foi difícil maginar coisas cruéis assim, mas logo ela se acostumou com a coisa. Na verdade, não conseguia ver a hora de encontrar um bom plano para pôr em prática.

O plano surgiu pouco depois, durante uma aula de revisão de química. Um estalo, PUF!, e tudo se tornou claro em sua mente, como se a resposta sempre tivesse estado ali, em algum canto obscuro, apenas aguardando a oportunidade certa para vir à tona. Ela era a melhor aluna de química; tinha amizade com a professora o suficiente para conversar com ela depois da aula no laboratório. Bastaria esperar a velha ir ao banheiro como frequentemente fazia, ou se distrair, e então teria a sua chance. Um frasco. A fórmula perfeita. H2SO4...

Créditos. A imagem piscou. O filme havia chegado ao fim.

(Tinha continuação, mas Bárbara sabia o desfecho.)

Levantou-se, aplaudindo entusiasticamente. Bravo!, Bravo! Que espetáculo primoroso! Era uma história triste e revoltante, mas era uma boa história.

Com um chiado, as lâmpadas halógenas do laboratório acenderam, e os dois astros da noite entraram e caminharam em sua direção. (Ou se arrastaram?) Uma visão e tanto: igualmente fascinante e aterradora.

Bárbara sorriu e estendeu a mão para cumprimentá-los, mas eles não a pegaram. Pareciam furiosos. Ei, aquilo não estava no roteiro!

Em uma cacofonia macabra, desataram então a cuspir frases acusadoras em sua direção:

-Você é uma cadela escrota, Bá. Viu o que fez com os nossos rostos?

-E com as nossas gargantas!

-Ah, bobinha, você achou mesmo que sairia impune dessa? Pode ter acabado com a gente uma vez, mas sempre vamos voltar. Porque nós vivemos aí dentro agora. Dentro dessa sua cabecinha podre.

As vozes foram se avolumando mais e mais, um coro inumano, impossível de ser evitado. Bárbara tampou os ouvidos, mesmo sabendo que seria inútil, que as vozes vinham de dentro do próprio crânio. Ainda assim, gritou. Gritou o mais alto que pôde. Gritou por ela e por cada menina boa que o mundo já corrompera. Quando terminou, sentia-se bem, quase aliviada.

As vozes haviam sumido. Os fantasmas também -ao menos por ora.

Na escola vazia, o único que lhe fazia companhia era seu eterno e inseparável companheiro, o silêncio.

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Tema: Psicose.

Felipe Lundgreen
Enviado por Felipe Lundgreen em 15/02/2019
Reeditado em 27/02/2019
Código do texto: T6575257
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