Ventura

Primeiro conto aqui galera. Sou leitora voraz, mas me aventurei pouco na escrita.

Ventura

Minha saudosa avó, nascida e criada nos sertões, neta de mineiro com uma bugre (que diziam ter sido capturada á laço para se casar), fascinava os netos quando nos reuníamos em sua chácara para ouvir, ora apreensivos, ora extasiados, mas sempre apavorados, seus "causos", que hoje nada mais são do que uma recordação feliz, apesar de assustadora, e que contribuíram para esta que vos escreve ser apaixonada por esse mundo sombrio, porém fascinante.

Hoje vou relatar um de seus contos, que durante muito tempo rendeu noites mal dormidas, ou fugas para a cama dos pais na madrugada. Apresento a triste sina da mentirosa e ardilosa "Ventura".

Ventura, 14 anos, garota bonita e ligeira, "assanhada", como dizia minha avó, morava com sua mãe e uma irmã mais nova, Vivian, em remoto vilarejo, lá pelas bandas de onde Judas perdeu as botas, terra que os mais velhos muitas vezes diziam "esquecida por Deus". As três viviam em modesto casebre, onde uma cerca de madeira descascada e arame enferrujado delimitavam o terreno poeirento, e mantinha a salvo de gatunos uma pequena horta, que apesar de modesta, sempre fornecia abóboras, maxixes e vez ou outra alguns tomates cereja.

Após dona Marta, mãe de Ventura, pegar o marido em sua própria cama com a funcionária da mercearia da esquina, expulsou-lhe com a peixeira em mãos, pois se havia uma mulher "cabra da peste" essa era dona Marta. As três passaram a viver sozinhas, sustentadas com alguns bicos que a mãe fazia, pois Vivian era muito novinha, e Ventura desde cedo era expert na arte de fugir de qualquer tipo de trabalho.

O passatempo preferido de Ventura era zombar de tudo e de todos, reuniam em grande turma de adolescentes, e todos adoravam ouvir Ventura criando "causos", afirmando serem verdadeiros, e zombando das pessoas do vilarejo. Nem as autoridades e defuntos escapavam de seus deboches, dizia não temer vivos e muito menos mortos.

A mãe, mulher valente, porém temente a Deus e Nossa Senhora, vivia lhe pegando pelas orelhas, dizendo que um dia encontraria alguém, vivo ou morto, que a faria se arrepender de toda essa zoada. Ocasião esta, que Ventura debochava da própria mãe.

Logo que as férias escolares tiveram início, haveria uma festividade na vila, onde comemoravam o padroeiro, grande festa que reunia, além dos munícipes, pessoas de outras cidade, que vinham em busca de diversão, e é claro, muita paquera. Ventura e sua turma estavam contando os dias, as garotas atrás de vestidos, sapatos e perfumes, competindo para ver quem seduziria o forasteiro mais charmoso. Ventura não queria ficar para trás, porém a escassa situação financeira da família não lhe permitia que comprasse um perfume, pois o sapato havia economizado o ano todo e comprado, e o vestido, uma tia da capital havia lhe dado de presente.

Faltando apenas dois dias para a grande festa, dona Marta entregou á Ventura dinheiro para que fosse ao açougue e trouxesse carne, geralmente miúdos de porco ou vaca, que são mais baratos. Ventura, muito a contragosto, aceitou ir, e no meio do caminho, passou defronte á vitrine de uma das únicas lojas da vila, onde podia-se comprar tecidos finos, aviamentos, calçados, chapéus e perfumes.

Duas de suas amigas estavam lá, escolhendo qual perfume levariam, e gabando-se de qual seria o cheiro mais sedutor. Viram Ventura ao longe e chamaram, para que a garota ajudasse a escolher, e quando souberam que ela não tinha dinheiro para adquirir o novo "amor de jasmim", debocharam, assim como ela o fazia com todos.

Mas Ventura nunca aceitaria ficar para trás, ainda mais ser debochada sem poder retrucar á altura. Pegou o dinheiro que deveria usar no açougue para as provisões da família e comprou o desejado perfume. Saiu inebriada pelo aroma e pela chance que agora tinha, de conquistar um bom partido.

Mas assim que virou a esquina, com o perfume na sacola e sem o dinheiro de sua mãe, começou a se apavorar. A mãe com certeza acabaria com ela, e ganharia um castigo que a impediria de ir á festa, além de levar uma coça que a deixaria marcada.

Andou sem rumo um bom tempo, pensando no que faria, maldizendo á Deus e cia pela sua condição, até que parou, no portão do único cemitério do vilarejo, que era incrivelmente grande apesar do vilarejo pequeno, pois recebia os defuntos de três outras vilas circunvizinhas, já que estas não possuíam um campo santo para o descanso eterno de seus pobres defuntos.

O sol dava seus últimos suspiros, e a noite avizinhava-se, nublada e escura, Ventura, num arroubo de insanidade, entrou no cemitério, e não se sabe até hoje, de onde diabos uma garota aparentemente sã, tirou uma ideia tão estapafúrdia. Andou por entre os túmulos, não sem antes pegar uma faca que repousava no meio das ferramentas do coveiro, e rumou para a parte mais nova do campo santo, onde eram enterrados os falecidos recentes. Torceu para que a fama de preguiçoso do coveiro se confirmasse, pois se um enterro chegasse após as 16:00 (horário em que ele já haveria secado seu corote de pinga e rumado para o buteco do Zé feio), ele apenas cobria a entrada do túmulo com pedaços de madeira e lona, para apenas no outro dia, assentar os tijolos e rebocar a morada final do infeliz.

A sorte (ou azar) estava ao seu lado naquela noite agourenta, pois andou pouco até encontrar um túmulo cheio de flores frescas, e tapado apenas com a "gambiarra" do coveiro preguiçoso.

Ventura, talvez manifestando algum transtorno psiquiátrico não diagnosticado, afastou a lona e retirou o pedaço de madeira que deveria servir para fechar o túmulo, e tentou rapidamente, pois escurecia cada vez mais, puxar o caixão, tarefa que se revelou mais fácil do que imaginava, o caixão era leve e deslizou raspando para fora.

Alguns flashs de sanidade passavam pela cabeça da garota, como se fossem fotos, ela se sentia confusa, mas desatarrachou os parafusos do caixão, e no auge de uma loucura, ainda incompreensível, o abriu e deitou a tampa ao lado.

Seus sentidos estavam embotados, não sentiu medo, compaixão, não sentiu nada, quando viu aquela garota, aparentando ter morrido hoje e ter no máximo 13 anos de idade. Desabotoou o vestido preto florido da pobre finada, e tendo por testemunha apenas uma coruja agourenta que piava como se tentasse advertir da sandice cometida, cortou-lhe a barriga, expondo os órgãos, um pouco rígidos, mas ainda frescos. Retirou aqueles que julgou parecidos com os de animais, e usando a sacola, que antes guardava seu precioso "amor de jasmim", acomodou os órgãos, miúdos, ou "fissura", como também eram denominados na época.

Sem remorso algum, a recém profanadora de cadáveres fechou novamente o caixão, e com esforço empurrou-o para dentro do túmulo, tapando a entrada com a gambiarra do coveiro butequeiro, que provavelmente nunca notaria que alguém estivera ali, praticando ato tão nefasto.

Rumou assim, com a sacola de "fissura" em uma das mãos, e o "amor de jasmim" na outra, cantarolando despretensiosamente, sem notar que a coruja agourenta lhe acompanhava, assim como um leve vento frio, mais do que o normal para uma noite de verão.

Já em casa, escondeu o perfume em uma de suas gavetas, e entregou a "encomenda" para sua mãe, que foi logo ralhando com Ventura pela demora, estavam só esperando os miúdos para preparar a mistura e não comer apenas arroz com maxixe, como no jantar do dia anterior. A garota foi ao seu quarto, totalmente indiferente á loucura que havia cometido, apenas ficava admirando seu vestido novo no espelho, e imaginando o quanto seria cortejada na festa de amanhã.

-Ventura! Vem jantar! - seus devaneios foram interrompidos pela mãe, automaticamente foi até a cozinha, mas ao se deparar com a panela fumegante de fissura, um flash de consciência lhe atingiu, disse á mãe que estava sem fome, pois havia comido muitas mangas no pé da casa da amiga á tardezinha, pediu licença e foi se deitar.

Acordou com a irmã lhe cutucando, pedindo ajuda, pois não estava se sentindo bem. Ventura levantou e acendeu o lampião, ao mesmo tempo em que a mãe abriu a porta do quarto das garotas, suando frio e pálida, queixando-se de fortes dores estomacais, assim como a irmãzinha.

Ventura, a única que não fora atingida pela "desconhecida" indisposição, saiu noite adentro, até a residência de uma enfermeira, vizinha apenas duas casas dobrando a esquina, e pediu ajuda.

Após breve exame, a profissional disse ás duas desafortunadas que provavelmente haviam comido algo que fizera mal, perguntou sobre o jantar, e dona Marta mostrou-lhe os restos de fissura na panela. A enfermeira, com muitos anos de prática, mas sem sequer sonhar com a procedência da iguaria, realmente afirmou que a comida parecia estranha, deveria estar contaminada ou coisa que o valha. Sendo assim, levou as duas para sua casa, onde poderia acompanhar de perto até amanhecer, quando o doutor Abreu estaria no postinho de saúde e as examinaria melhor.

Assim Ventura ficou sozinha em casa, trancou as portas e deitou-se novamente, pedindo para sonhar com o galã que a cortejaria e a levaria para um castelo, sonhar não custa nada afinal... Acordou assustada, com o ribombar de trovões, e raios que clareavam a escuridão do quarto simples. Falava consigo mesma "-É apenas chuva, deixa de bestage, chuva com trovões, trovões que é quando Deus arrasta os móveis pra limpar a casa..."

Estava quase adormecendo novamente, quando ouviu, nítido e claro, porém distante

"-Ventuuuuura...

A garota debochada sentou-se, tateando pra achar o lampião, já apavorada, pois além do medo da chuva, jurava ter ouvido seu nome.

"-Ventuuuura....

Valhei-me Deus, não tô louca, a voz é nítida, escondeu-se sob o cobertor, e começou as orações que conhecia, mas que, por sempre estar debochando até durante a missa, não se lembrava ao certo.

"-Ventuura, vou comer tua fissura..."

A voz distante, porém firme, que a garota não conseguia identificar de onde vinha, parece que vinha de muito longe, mas então como poderia estar ouvindo?

"-Ventuura, vou comer tua fissura..."

Agora morro mesmo, não queria pensar, mas a voz lhe remetia á insanidade profana que havia cometido, "-Perdão Deus, perdão, perdão, nunca mais faço qualquer sandice assim, perdão, perdã...

"-Ventuura, estou saindo da minha cova..."

Trovões colossais e raios que clareavam todos os cantos da casa cruzavam o céu e apavoravam ainda mais Ventura, que não sabia para onde correr.

"-Ventuura, estou no portão do cemitério..."

Maldita voz sobrenatural, parece que saía de dentro de sua própria cabeça, pois não via ninguém, apenas tentava achar uma fuga. Correu á porta do quarto, porém, para sua surpresa, estava emperrada.

-Diachoooo, esta joça tava aberta agorinha! Meu Deus!! Socorro!!

Correu para o vão entre o guarda roupas e a parede, abaixou-se e rezava, em meio á lágrimas de desespero.

"-Ventuura, estou na rua da tua casa..."

Deus, Deus, Deus, perdão meu pai, prometo que se isso passar, eu vou pro convento, viro freira e faço caridade, me ajuda meu pai!!-balbuciava em meio á lágrimas de desespero.

"-Ventuura, estou na porta da tua casa..."

Três batidas firmes na porta foram o prenúncio de um estrondo, que arrancou a porta da entrada das dobradiças, deixando entrar chuva, vento e aquele cheiro de cemitério, inconfundível para Ventura, que lá estivera horas antes.

A antes ardilosa garota esgueirou-se para dentro do grande guarda roupas de madeira maciça, onde fechou-se, e continuou suas promessas desesperadas, sob a luz do lampião, que levou consigo.

"-Ventuura, estou na porta do teu quarto..."

Novamente três batidas antecederam o estrondo da porta sendo arrancada e jogada longe. Agora, além do cheiro de cemitério, Ventura conseguia ver pelo vão da porta, uma silhueta escura, magra, mas de onde se destacavam dois olhos vermelhos incandescentes.

Ventura fechou os olhos, pediu perdão, prometeu mundos e fundos á Deus e a todos os santos que conhecia. Quando abriu-os novamente, e olhou pelo vão, não havia mais nada lá fora.

Seu coração encheu-se de alívio, lágrimas escorriam pela sua face, e a única palavra que balbuciava era "-Obrigada, obrigada, obrigada..." quase que como um mantra.

Quando sentiu uma mão gelada em seu ombro, não pôde mais se mover, apenas virou levemente os olhos, para conseguir ver o cadáver da moça profanada, junto de si, dentro do guarda roupas.

Aproximando o rosto devagar do lampião, a falecida assoprou e apagou a chama, e a ardilosa/arrependida garota ouviu as últimas palavras de sua vida, agora sussurradas no ouvido.

"-Ventuura, vou comer tua fissura..."

No dia seguinte, ao retornar á casa, já recuperada da intoxicação alimentar, dona Marta encontrou Ventura morta, com a barriga rasgada e as vísceras retiradas.

Já a pobre defunta profanada, que aliás, chamava-se Diana e contava 13 anos de idade, conseguiu enfim descanso eterno, após recolocar seus órgãos afanados.

Nat_Vader
Enviado por Nat_Vader em 20/02/2019
Código do texto: T6579643
Classificação de conteúdo: seguro