Duplo - CLTS 06

ANDRZEJ

Eu estava decidido a passar a noite de sexta-feira como passava todas as minhas noites de sextas-feiras ultimamente: perdendo tempo na internet. Desde que voltei ao Brasil tenho estudado e trabalhado muito, de forma que tiro essa folga semanal; mas não faço isso, como os brasileiros gostam tanto, indo para a “farra”. Eu relaxo simplesmente ficando no notebook navegando inutilmente em redes sociais, vendo memes, assistindo vídeos engraçados, etc.

De repente eu ouvi um estalo em algum lugar, e o meu celular acendeu. Ele estava carregando, e a luz brilhou para avisar que não estava mais. Só aí percebi que a energia havia acabado. Como tudo já estava escuro mesmo, exceto pela luz do notebook, não teria...

- Ah, droga, esqueci de colocar o Notebook pra carregar... – Lamentei, e imediatamente fui verificar o celular. Dez por cento de carga. Também não temos nenhum lanterna no apartamento. Ou seja, brevemente eu ficaria na mais completa escuridão. Não que eu tivesse medo do escuro, o que me incomodava era o tédio que viria a seguir. Não pude deixar de pensar, de imediato, que se houvesse um apagão de três dias, metade da população da cidade morreria!

- Hei, está escuro. – Disse meu companheiro de quarto, Antônio, da sua cama, três segundos depois de eu ter fechado o notebook quando este apagou. Pensei em dar os parabéns por conseguir perceber que estávamos na mais absoluta escuridão, mas achei melhor não debochar.

- Sim, estamos sem energia.

- Você tem uma lanterna ou vela?

- Só o celular, que já vai descarregar.

- E o meu já está morto...

Ficamos em silêncio alguns instantes. Antônio era um cara legal, sempre dava a sua metade do aluguel em dia, não fazia bagunça, nem usava minhas coisas sem permissão. Se eu dissesse para ele para parar de fazer alguma coisa (como deixar a toalha molhada em qualquer lugar) ele parava de fazer. Um pouco burro às vezes, é verdade, mas um cara legal. O que me irritava nele é que às vezes me fazia sentir papai dele, embora tivéssemos quase a mesma idade. Isso e a sua mania de me chamar de “alemão”, porque não conseguia pronunciar meu nome direito, especialmente porque EU NÃO SOU ALEMÃO.

- E agora? Eu perdi o sono... – ele lamentou.

- Alguém do prédio vai ligar para a Light. É só esperar. Já está um pouco tarde, mas eles costumam atender rápido. Pelo menos nesses dois anos que moro aqui.

- Tomara. Que tal darmos uma volta? Está escuro...

Novamente, era difícil não responder mal o Antônio por afirmar o óbvio, mas era verdade que não havia realmente nada a fazer até que a energia voltasse, e eu também estava sem sono.

- Lá fora também está escuro. – Tentei não imprimir deboche na minha voz, mas não sei se tive êxito. – Podemos só... sei lá... ficar conversando?

- Ótima ideia! – Me assustei ao ouvir a voz dele bem ao meu lado dessa vez, sentado na minha cama.

- Eita!

- Que foi?

- Não ouvi você vindo.

- Ah... desculpa.

- É... bem... – após alguns instantes de silêncio, fiquei olhando para a escuridão, tentando encontrar alguma coisa para dizer. – Por que você não saiu com a Mariane hoje? Quando eu cheguei você já estava até deitado... Aliás, você costuma ter sono bem pesado, o que houve? Por que acordou tão fácil?

Mariane era a namorada dele. Toda sexta à noite eles saiam juntos, religiosamente, e ele só voltava bem tarde ou na manhã seguinte. Como Antônio ela era meio... hum... limitada, mas doce e muito dedicada a ele. Com certeza uma boa namorada e ele nunca havia reclamado dela. Tanto é que eu temia o dia em que ele diria que os dois estavam indo morar juntos, o que significa que eu teria que procurar um novo companheiro de apartamento. Eu não sou a pessoa mais simpática do mundo; embora não costume ter conflito com ninguém, também não me amigo tão fácil. Com o Antônio, pelo menos, eu já estava acostumado.

- Eu acordei porque estava escuro.

- Han? Como assim?

- Eu acordei por causa do escuro.

Ainda bem que ele não podia ver a cara que eu fiz, pois certamente ficaria chateado. Quem é que acorda por causa do escuro? Para mim foi a gota de água. Aquele dia o Antônio estava particularmente irritante.

- Olha, acho melhor você tentar voltar a dormir. Amanhã você trabalha, não?

- Não, Andrzej, por favor, vamos continuar conversando.

Seu tom de voz era de uma súplica angustiante. Antônio geralmente era descontraído e relaxado, então vê-lo falando desse modo me assustou. Mas o que mais me causou estranheza foi ele me chamar pelo nome. Há mais de um ano eu vivo com Antônio e ele NUNCA me chamou pelo nome. E ainda pronunciou perfeitamente bem. Naquela escuridão total, sob tais circunstâncias estranhas, comecei a desconfiar que, talvez, a pessoa ao meu lado na cama não fosse mesmo meu companheiro de quarto.

- Por que você me chamou pelo nome, Antônio?

Houve um momento de silêncio, como se meu companheiro pensasse no que dizer.

- Ora, mas não é o seu nome, alemão? – Ele riu, a exata risada que sempre dava quando falava alguma gracinha. – Agora você vê, sempre me olha de cara feia quanto te chamo de alemão, daí eu te chamo pelo nome e você não gosta? O que você quer, afinal?

Mas aquilo não me convenceu. Alguma coisa errada estava acontecendo. Pode chamar de intuição, mas tinha certeza que Antônio não sabia pronunciar meu nome. Eu estava em uma situação complicada. Meu celular provavelmente ainda não havia morrido, podia pegá-lo e apontar para o rosto dele para ter certeza que era mesmo Antônio. Mas se isso tudo fosse coisa da minha cabeça, eu faria uma cena ridícula. E se não fosse, se realmente fosse um impostor, demonstrar que eu percebi o truque poderia torná-lo agressivo.

- O que foi? Por que ficou calado de repente? – Senti hesitação novamente na sua voz. Com certeza não era ele. Finalmente não suportei, levantei-me em um salto e peguei meu celular, mirando a luz nele. Era Antônio.

- O que houve, cara? – Ele perguntou, apreensivo? – Você está meio estranho hoje.

Suspirei e, envergonhado, tentei achar palavras para me explicar. Providencialmente, senti o celular vibrando na minha mão. Era Antônio. Incrédulo, olhei para a figura na minha frente, olhei para o celular. Fiz um movimento no touch para atender e coloquei a ligação no viva voz, para conseguir falar e ouvir sem tirar a luz do rosto da pessoa que estava comigo no quarto.

- Alô?

- Oi, te acordei? – A voz de Antônio soou pelo aparelho.

- Não, não, já estava acordado. – Respondi bem devagar.

- Estou aqui fora. Não quis bater na porta para não acordar os vizinhos. Acho que esqueci minha chave de novo. Pode abrir para mim?

Então me lembrei dos contos de fadas da terra ancestral da nossa família que minha vó contava quando passei minha infância no Brasil. A criatura diante de mim certamente era aquilo que as lendas chamavam de Doppelgänger. Ele basicamente era capaz de se transformar em quase qualquer coisa, inclusive no vento, o que o permitia se mover muito rápido.

O celular descarregou de repente, mergulhando-nos novamente na escuridão.

MARIANE

Deixa eu te contar como conheci o Andrzej. Já ouviu falar na brincadeira do copo? Senão, filhão, se mata, porque todo mundo conhece. Enfim, era uma vez uma menina chamada Mariane. Ela e os irmãos gostavam de brincar disso. Em geral, a brincadeira dava algumas respostas engraçadas. Certo dia, porém, uma coisa maligna resolveu atrapalhar a brincadeira. Mariane e os dois irmãos estavam com o dedo no copo sobre o tabuleiro de papel, quando um deles perguntou:

- Espírito, você vai mover esse copo?

Eles riram com a pergunta besta, e o menino esperava empurrar gentilmente o objeto até a resposta “não”. Entretanto, para sua surpresa, o copo fez um movimento diferente:

C

O

M

I

D

A

Então, após soletrar essa palavra, o copo começou a emitir um rosnado ameaçador. As crianças obviamente largaram tudo e saíram correndo, gritando. Algumas semanas depois, entretanto, eles quiseram tentar de novo. Depois que descobriram que realmente havia o sobrenatural, não conseguiam resistir à tentação de viver uma experiência de filme de terror ao vivo.

- Não se esqueçam. – Orientou Mariane, com o tabuleiro e o copo no meio deles, que faziam uma rodinha no chão. Eles aproveitaram um dia em que estavam sozinhos em casa. – Aconteça o que acontecer, não podemos sair correndo como fizemos da última vez. Precisamos mandar o espírito embora quando terminarmos, senão ele fica preso aqui em casa com a gente, entendido?

- Sim. – Os outros dois responderam, apavorados. Começaram a brincadeira. Colocaram os dedos sobre o copo e chamaram qualquer espírito que estivesse presente. Imediatamente a energia acabou. Eles gritaram, apavorados.

- Ele está aqui! – Gritou William, o irmão do meio.

- Corre, vai pegar a vela pra gente continuar! – Mandou Mariane.

O menino foi correndo pegar as velas. Os dois que ficaram podiam ouvi-lo remexendo nos armários em um ritmo frenético. Eles acenderam duas velas e deixaram ao lado do tabuleiro de papel, colocando os dedos novamente sobre o copo.

- Espírito, se você está aqui, por favor, mova esse copo.

Em um instante, o copo obedeceu e começou a soletrar:

F

O

M

E

As lágrimas já corriam pelos olhos do mais novo.

- O que você quer comer? – Perguntou Mariane.

C

A

R

N

E

- Eu... Eu vou pegar carne para ele. – William se levantou, pegou uma das velas acesas e foi em direção à cozinha.

- Espere! – A menina disse após pensar um momento. – Não dê a ele o que ele quer.

William, como era de se esperar, não deu ouvidos. Pegou um pacote de carne moída enrolada em plástico e voltou correndo. Antes que ele pudesse tocar novamente no copo, entretanto, este se moveu.

H

U

M

A

N

A

Apavorado, William pegou o copo e tentou jogar longe. Mas, antes que ele se chocasse contra a parede, aparentemente se teletransportou de volta ao tabuleiro sobre a palavra “NÃO”. Mariane tentou chutar o copo, e foi quando eu me transformei de copo em um grande cão negro. Ela congelou de terror, enquanto seus irmãos, mais espertos, saíram correndo. Eles não viram o que aconteceu depois disso, apenas os gritos da menina enquanto eu a trucidava mais rápido do que ela podia soletrar Doppelgänger.

Quando a luz e os pais voltaram, os meninos tentaram contar o que aconteceu, mas eu sumi com todos os rastros e me transformei na Mariane. Eles ficaram sem entender nada e acharam que foi algum tipo de alucinação. Após algumas semanas observando, eu já podia imitá-la perfeitamente, então ninguém nunca desconfiou que Mariane, na verdade, fosse uma réplica, por todos esses anos. Então eu conheci Antônio, depois Andrzej, e o resto você já sabe.

Tentei me passar por Antônio, e teria dado certo, se não fosse por um detalhe. Antônio disse que não podia sair comigo naquela sexta porque pediram para ele trocar de turno no trabalho e ficar de madrugada, então ele só chegaria em casa de manhã. Eu, acreditando piamente, resolvi aproveitar a oportunidade única para brincar com Andrzej, mas eu jamais ia imaginar que o filho da mãe do Antônio estava me engando para me trair com uma quenga qualquer.

Mas ele vai me pagar. Ah, vai...

TEMA: CONTOS DE FADAS