O DEVORADOR DE ALMAS

Um homem num bar. O copo sempre cheio, que rápido se esvaziava para que tornasse a enche-lo. Nada surpreendente. Um, entre tantos milhares, até milhões que perambulam por bares, com diferentes e conhecidos motivos. Talvez em particular esse não seja melhor ou mereça ser mencionado mais que qualquer outro. Mas por algum motivo me interessou e virou objeto de minhas observações nos últimos meses. Eu tenho mais tempo pra me dedicar a certos assuntos do que a maioria das pessoas, ou do que todas elas. Sabe, como um velho aposentado que descobriu na jardinagem um passatempo agradável? Cuidando do seu orquidário ou da sua estufa e vendo aquelas belas flores brotarem e explodirem em beleza e graça pra logo morrerem? É, eu bem que poderia fazer isso para sempre. As pessoas são como flores. As semelhanças são notáveis. Um botânico e um antropologista poderiam passar uma noite inteira descrevendo e fazendo considerações sobre essas duas espécies. Mas eu não sei se eu disponho deste tempo. Tenho, mas prefiro usá-lo de uma forma mais ... como posso dizer, divertida! Isso! E a vida das pessoas oferece tanta diversão. Se fossem perfeitos como seriam tediosos. Sabe, foi a perfeição que me fez cansar logo. Na verdade, a história toda é bem mais complicada, mas também não quero falar sobre isso.

Ele, nosso personagem, tem essa beleza, como uma flor. Sim, é belo como uma flor, mas exala a mesma fragilidade das flores, o mesmo receio de atrair tanto abelhas como vespas para suas vibrantes e vivas pétalas. Ezequiel é o moço politizado. Tem uma estampa fina, é um sujeito de classe. Sabe se comportar em todas as ocasiões. Tem boas maneiras e é um verdadeiro cavalheiro. E o motivo para desperdiçar seu tempo num moquifo como aquele não poderia ser outro a não ser esse: Quer pescar determinado tipo de peixe tem que ir em seu hábitat e usar a isca certa. Então, ele estava onde deveria estar para seu propósito e ao ouvir a sineta soar quando abriram a porta, ele sabia, sentiu prontamente que sua presa acabava de chegar e aproveitou aquele momento com discrição e oportunismo. Observava atento, mas de forma sutil, sem ser percebido inspirava profundamente toda a beleza e o perfume. Conseguia captar muito mais sensações do que qualquer outro, pois de alguma forma, que não quero explicar, ele não era como qualquer um. Podia deduzir com margem mínima de erros, minucias sobre ela, coisas tão íntimas que até ela se surpreenderia se lhes fossem descritas por outra pessoa, mesmo que por sua melhor amiga. E de forma misteriosa ela passou a sentir-se observada. Sentia isso como uma presença incorpórea, que instigantemente a olhava, como um predador, que sem ser visto analisa os movimentos da caça, para então dar o bote. Ainda assim sentiu desejo por essa sobrenatural e provocadora presença sentida. Passando a mão pelo pescoço até o colo, sentia um calor que lhe subia e lhe inflamava. Algo incomodo e provocador, que estava lhe causando um prazer incontrolável. Foi quando fechou as pernas envergonhada. Era como se descobrisse de uma hora para outra que estava naquele bar, no meio daqueles homens só usando roupas íntimas e passou a olhar para todos desconcertada. Pareceu que o véu que lhe obstruía a visão havia caído e que agora, ela nua naquele bar na frente de todos aqueles homens, sempre fora a realidade. Tudo antes é que era um sonho, uma fantasia. As atenções todas voltadas para ela. Mas aquele homem não. O homem que causara seu frenesi, que lhe provocara daquela maneira inconsciente ou consciente, ela não sabia, pois acreditava em certas circunstancias inexplicáveis da vida.

O homem misterioso mantinha-se indiferente com seu copo e sua tristeza e o seu chapéu. Limpou a boca, suspirou, baixou a cabeça e ficou assim cabisbaixo por um tempo. Cruzou os braços sobre a mesa, batia com os dedos sobre a madeira, vacilante, como se a dúvida o consumisse. Esperando ou buscando no álcool a coragem que não encontrava em si para decidir. E ela via os outros todos ali na sua frente. Homens desconjuntados, suados e sem modos. Todos sobre ela como cachorros babando em cima de um osso. Tão impressionados com o que viam como adolescentes ao descobrirem a nudez feminina pela primeira vez. A jovem passou a se sentir mal, zonza, sufocada. Aqueles abutres a cercando. Cada um com seus pensamentos sujos todos sobre ela. Pensamentos que só de imaginar reviravam seu estomago. Aqueles velhos porcos, desdentados, carecas, enrugados. Até os jovens tinham aparência repugnante. Imaginou-se cercada, encurralada por eles até um canto. Se aproximavam e se amontoavam como hienas disputando um pedaço de carne. Garras, músculos, força, testosterona. Tocando seus seios, suas pernas, seu sexo. A angustia, o nojo, o horror. E depois disso viu o homem, sentada ainda esperando sua água e percebeu que o homem continuava ali frio, distante, como se fizesse parte daquele ambiente tanto quanto a cadeira em que ela sentava ou o balcão em que se apoiava. E ai veio o calafrio cortante rasgando sua pele como navalha ou um inseto ligeiro e gelado correndo desde a ponta do pé até a nuca, passando sob o vestido preto e suado. E foi isso, mais do que estar nua entre bêbados num bar que a fez sair correndo dali. Depois de um tempo se ouviu alguém gritar "Eu, heim! Tem cada louca!" Uma crescente gargalhada tomou conta do bar e os comentários, deboches e numa só fiada muitos assuntos se desenrolam e foram tomando outros rumos, uma coisa emendando na outra como afluentes de um mesmo rio. Em cinco minutos era como se ela nunca tivesse estado ali. E nosso camarada Ezequiel disfarçadamente seguiu seu caminho sem muito esperar de coisa nenhuma. O cheiro deixava sua marca. Uma forte presença, tão marcante como o sabor dos melhores vinhos quando bem apreciados. Cada partícula que se misturava era capturada, absorvida. Levantava a cabeça, girando-a sobre o pescoço em movimentos deliciosamente vagarosos, para sentir o ar e a vida de coisas e os pensamentos e os sons.

Depois de uma boa caminhada, cerca de cinco quilômetros, parou sob uma janela e ficou ali embaixo a observar. Quando passou a fazer movimentos estrambólicos e de forma sobrenatural os acontecimentos pareciam proceder desses movimentos. Como a luz do quarto se acender e depois a moça do bar, que tão leve quanto cisne sobre a água parecia deslizar naquela direção. E naquele mais brusco movimento a súbita presença de Ezequiel na janela, agora na sacada para ser mais exato. Uma transposição tão inesperada, repentina, que mal pode ser sentida ou vista por olhos humanos.

E ela estava se entregando para ele. Sentia desejos incontroláveis e despejava sobre ele todo o seu amor e todos os seus dotes e suas alegrias. Nessa intensidade sentia purificação e invés de suja sentia-se limpa, cada vez mais. Enquanto Ezequiel absorvia toda aquela energia sexual ela parecia também querer absorvê-lo. Nua e completamente dominada agora sentia-se fraca. Começava a definhar e uma repulsa e uma ânsia brotavam tão vertiginosamente quanto o desejo expelido no início.

Agora lutava para se desvencilhar e não conseguia. Ezequiel usava tanto a força bruta quanto a força psicológica que o fazia se apoderar dela. Só mais poucos minutos e estava tudo terminado. Ela desmaiada em seus braços e depois a sua simples transferência física para o etéreo. Seu corpo mole, solto, estatelou-se sobre o piso duro e frio da sacada e caída como morta ela desfaleceu.

Ezequiel, nutrido de todos os pensamentos felizes da pobre vítima mortal, elevava-se por sobre montanhas e rios, não num voo estabanado qualquer, mas num tranquilo planar. Dormiria pela manhã. O vampiro de almas fez mais uma vítima. Geralmente as que não comentem suicídio são consumidas por ele até o desespero. Mas essa história acaba aqui. Eu mesmo que gosto do entretenimento é que venho contar. Boas histórias divertem e passam o tempo. E vocês que insistem e querer passa-lo depressa mesmo tendo tão pouco tempo é que tornam minhas histórias mais divertidas. Eu estarei sempre por aqui. Como o bom comerciante faço sempre a oferta irrecusável. Comigo não se barganha, nem se negocia. Em breve virei buscar o troco e o amargo preço que vocês pagaram pela minha generosa oferta. E vocês sempre me verão por aí. Saudações do seu maior fã. E não se enganem, eu estou sim do lado de vocês.

Anderson Roberto do Rosário
Enviado por Anderson Roberto do Rosário em 23/03/2019
Reeditado em 26/03/2019
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