AQUELES SEM CORAÇÃO

A cidade o desanimava, deprimia. Era suja, casas esparsas, quilômetros de fazendas improdutivas às margens da estrada. Além disso a angustia que sentia, um aperto que comprimia sua garganta e a fazia secar, os constantes arrepios.

No posto de gasolina que abasteceu assim que chegou na cidade, teve a primeira impressão de seus moradores. O velho atendente no balcão, um senhor apático, aparência frágil, como se um sopro fosse derrubá-lo, era desanimador e nada receptivo. Um menino que saiu de trás do balcão e passou a espioná-lo, fê-lo rir. Observando através das prateleiras, pelas frestas, o rapazola parecia certificar-se de que o forasteiro não furtasse nada. Mas Maurício não parecia com saco pra esse tipo de comportamento mesquinho de cidade pequena e deixou pra lá, parou de se preocupar com o jovem espião. Quando percebeu duas novas figuras que observavam pela janela do lado de fora da loja de conveniências. Um homem de meia idade, usando chapéu de palha e que mascava algo, quem sabe fumo e ao lado dele um menino que usava um boné vermelho e que tinha um sorriso bobo na cara. Depois de notarem serem flagrados os dois disfarçaram olhando pro chão e girando sobre seus calcanhares deram meia volta. Maurício olhou pro velho no balcão pra ver se ele tinha percebido os dois curiosos, mas o velho parecia do mesmo jeito desde que ele tinha entrado. Cabisbaixo, os olhos em algum ponto do balcão. Os braços soltos, inanimados, como um boneco. Agora Maurício estava certo de que já permanecera tempo demais naquele estabelecimento e se tudo desse certo e conseguisse fechar o negócio antes de anoitecer não precisaria mais voltar. Pagou o combustível, o cigarro e um chicletes sem açúcar. O velho, num ritmo arrastado, passava os produtos no scanner enquanto gritava com o menino que o ajudava na loja, para que fosse atender lá fora nas bombas alguém que acabava de chegar. O forasteiro visivelmente estressado, que o velho encarava agora com desdém, batia com os dedos na mesa e bufava. Olhando pro relógio na parede e comparando com o do pulso ele pegou as coisas, recebeu o troco e ia saindo, quando o velho o chamou:

– Viajante, siga seu caminho logo. Essa cidade não recebe muito bem visitantes, como já pôde perceber. Os que passam devem seguir o caminho, não ficar. É só um conselho. – Ameaçou o velho. Agora que o velho olhava pra ele diretamente, sem desviar o olhar, ele podia perceber alguns detalhes asquerosos como sua pele áspera e enrugada, mais que uma pele enrugada de velho, parecia de uma rigidez e aspereza diferentes da pele humana e os lábios eram tão grossos e secos como que revestidos por couro surrado e os olhos, até aquele momento ele não percebera os olhos piscarem nenhuma vez. Maurício não conseguiu dar uma resposta ao velho, porque sentiu um receio estranho de estar na frente dele e então saiu sem dizer nada.

A estrada mesmo asfaltada era poeirenta. Ventava forte e o solo arenoso do lugar desmanchava-se arremessado contra o carro de Maurício. Uma tempestade se formava. Mais uma vez teria que parar. Não tinha como prosseguir com as rajadas de areia e pedras atingindo o carro naquela intensidade. Parou o carro depois de avistar uma placa que anunciava: “Quartos vagos”.

Protegendo o rosto ele correu para a recepção da hospedaria. Tocou a campainha sobre a mesa e esperou. Não aparecia ninguém. Chamou uma, duas, três vezes e nada. Lá fora a tempestade já se precipitara sendo anunciada por um mensageiro dos ventos enfurecido e uma placa de zinco que balançava batendo na madeira de onde estava encostada. Olhando da janela os redemoinhos que se formavam e a nuvem de areia que se erguia e avançava para retroceder e girar levada pelo impetuoso vento, via alguma última esperança em sair logo daquele lugar deprimente se acabar.

– O que você quer? Ei, você ai?! – Chamava um homem gordo, desajeitado, que colocava a camisa por dentro da calça. Maurício distraído não ouviu chamar e ao se virar e encarar o sujeito sentiu alívio. O cara era um belo exemplar dos tipos que atendem em estabelecimentos de beira de estrada. Alguém normal, o primeiro que viu até agora naquela cidade.

– É, desculpa, eu não ouvi, tava distraído. Quero um quarto pra passar a noite.

– Você não é daqui, né?

– Não. Tô aqui a negócios. Sou corretor de imóveis. Vou vender uma casa, assim espero.

– Vai vender casa aqui? Que Deus lhe ajude. Ou você deve ser um corretor muito bom ou muito burro! – Concluiu o sujeito. Chamava-se Mário, era dono do lugar. No momento que Maurício chegou fazia sexo num dos quartos com a atendente que deveria estar atrás daquele balcão, por isso demorou pra vir. Era mesmo, segundo supôs Maurício, um cara normal: Parvo, comilão e inconveniente, além de mal-educado.

– Sim, eu entendo o que quer dizer. Essa cidade está bem fora das rotas dos imóveis mais valorizados. Entre lugar nenhum e quem liga. Já vi gente muito esquisita por aqui. Qual é o problema desse lugar, afinal? – Perguntou Maurício. Mário recebeu pela hospedagem e apontou para o livro de registro, para que Maurício assinasse, antes de entrega-lo a chave.

– Espero que você não descubra qual o problema deste lugar. Só feche seu negócio e vá embora. Esta cidade já foi um bom lugar até um forasteiro como você aparecer. É por isso que ninguém gosta de forasteiros por aqui. As histórias sobre ele são contadas de várias maneiras mas acabam do mesmo jeito. Ele trouxe a doença e com ele vieram outros e em pouco tempo a cidade herdou sua maldição, passando para todos que tivessem contato com a coisa. – Marcos desfiava sua história orgulhoso. Tinha a intenção de assustar o forasteiro e percebeu a mudança na expressão dele. O olhar incrédulo transformou-se em olhar assustado e perdeu aquele sorriso debochado ganhando no lugar a boca aberta de pavor. Mas tinha sua reputação e demonstrar que acreditava naquela história inventada para assustar criancinhas era no mínimo um insulto a ela.

– Sei – disse e depois bocejou, – eu vou pro quarto agora, mas olha, gostei. Vocês são mesmo criativos pra enxotar as pessoas daqui. Podem ficar com a cidade e a maldição dela. Mas eu tenho que terminar o que vim fazer aqui. Não quero ter que voltar, entendeu? Boa noite! – Enfatizou Maurício, mostrando não estar interessado nas histórias da cidade e muito menos na cidade. Marcos, que já lhe via como condenado, deu de ombros, torcendo a boca numa confirmação de desdém.

Às dez horas da manhã Maurício já pegava a estrada. Tinha fechado o negócio com a casa e seu rumo agora era qualquer lugar bem longe dali. Aquele pesadelo enfim acabaria. Foi como entrar num filme de terror e conseguir sair vivo. Cantarolava Streets of Philadelphia de Bruce Springsteen, que tocava na rádio. No seu inglês ruim soltava um desabafo. Gritava à todas as sombras do seu passado, gritava ao estranho, às aberrações, àquela cidade de gente maluca, tudo. E foi literalmente um grito que o despertou para a realidade. Ele pode ouvir, mesmo com o som do rádio alto, um grito estridente de desesperada súplica, um grito por socorro. Uma garota aparentando seus dezoito anos, pele branca que contrastava com os cabelos pretos até a altura dos ombros. Vinha correndo em direção à estrada. Acenava pedindo ajuda. Maurício parou o carro no acostamento e saiu espavorido, corria pra um lado, pra outro, procurava alguém, um perseguidor, talvez um estuprador, um ladrão, não sabia o que. Mas não via nada. Então esperou a moça se acalmar, chorava muito e quase sem folego tentava controlar a respiração, porque soluçava e se sufocava.

– Moço, me ajuda. Me tira daqui, por favor! Me leva pra longe desse lugar. Só peço isso!

Maurício arrancou com o carro. Foram calados por um tempo. Ela parecia desconfiada, sempre olhando, o estudando. Ele sentia-se empolgado com a situação. Ter salvo uma garota indefesa das garras do perigo parecia heroico e ela era uma linda garota. Olhos verdes, mesmo que aquela maquiagem pesada escondesse sua beleza mais natural.

– O que houve lá? Quer contar?

– Foram eles. Aqueles malditos. Os sem-coração. Queriam roubá-lo de mim. Não, eu não sou como eles. Não quero ser.

– Você está bem? Isso não parece fazer sentido. – Retrucou Maurício. A moça, que tinha se acalmado até então, só em falar começou a tremer e gaguejar.

– O forasteiro trouxe a doença pra cá. Chegou aqui doente e contaminou a cidade. O nome dele é Jezael. Com um beijo a maldição é passada. Quem é beijado fica sem coração. Acredite, volte à cidade se quiser. Eu mesma senti. Pegou meu namorado. Estava estranho, frio, a pele azulada. Quando encostei a cabeça no seu peito não ouvi seu coração. – A moça fez o gesto colocando a mão no peito de Maurício, dramatizando um pouco o que dizia.

– Foi assim que soube. Por isso corri. Eu corria dele. E parece que de você também. – Disse ela mudando de fisionomia. Pasma, boquiaberta, ela acabava de constatar o improvável: o coração de Maurício não batia. Ele reagiu buscando sentir seus batimentos com a mão, da mesma forma que ela fizera e atônito pôde perceber que não, aquele peito não tinha vida, sem batimentos, frio. Então fora de controle, agiu impulsivamente. Acelerando o carro, puxando o freio de mão, fazendo-o derrapar. Rodopiando na pista perdeu o controle do veículo, que veio encontrar um poste de madeira. O impacto foi forte o suficiente para deixá-los inconscientes, não para matá-los. Ao erguer a cabeça, Maurício sentindo fortes dores nas pernas e no peito tentava abrir os olhos. O sangue embaralhava a visão, mas ele percebia vultos. Eram os sem coração. Vinham para pegá-los. Eram muitos, lutar seria inútil.

Anderson Roberto do Rosário
Enviado por Anderson Roberto do Rosário em 24/03/2019
Reeditado em 21/11/2021
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