A coisa no meio da praça

É uma cidade comum. Não é muito grande e nem mais pacata ou agitada que as outras. Como ela existem muitas e não há nada nela que chame a atenção.

No centro desta cidade existe uma pequena praça. Muitas pessoas passam diariamente por ela, algumas sentam-se corriqueiramente em seus bancos, outras montam suas pequenas barracas para vender bugigangas de todos os tipos. Muitas crianças brincam nela, namorados marcam encontros em suas imediações.

É apenas uma praça sem nenhum atrativo, mas algo muito antigo e maligno resolveu fazer dela a sua morada.

Após muitas eras dormindo no fundo de uma antiga caverna aquilo decidiu pousar bem no meio daquela pequena praça.

*****

Muito antes dos homens se espalharem pela face do planeta aquela entidade já existia. Alimentando-se de animais e da seiva das árvores ela levava uma existência à margem do que ocorria naquele mundo. Um dia fartou-se daquilo tudo e decidiu buscar refúgio na noite dos tempos.

Ao acordar deparou-se com um mundo totalmente diferente daquele que existia quando se retirou para o seu longo sono.

Uma grande surpresa aguardava a estranha criatura. Um daqueles animais que lhe servia de alimento agora dominava toda a planície até perder de vista. Curiosamente andavam com estranhas coberturas sobre seus frágeis corpos, muitos movimentavam-se utilizando-se de artefatos que ela não sabia dizer o que eram. Percebeu que agora eles emitiam sons e comunicavam-se uns com os outros.

Um mundo muito diferente encontrava-se a sua frente. Estruturas altas erguiam-se ao seu redor, cores, sons e texturas que ele desconhecia enchiam-lhe os sentidos das mais diversas impressões.

Achou tudo muito estranho, mas também sentiu a curiosidade invadir o seu espírito antigo.

Movimentou-se entre aqueles animais e viu que estes, exatamente como antes, não percebiam a sua existência. Nem tudo havia mudado e isso atiçou sua malignidade.

Caminhando invisível pelas ruas da cidade viu, com um misto de medo e raiva no olhar, que entre aqueles seres havia um certo animal que convivia harmonicamente com estes. Um dos poucos que não fazia parte do seu cardápio e, justamente, o único que podia ver-lhe e enfrentar-lhe.

Por um motivo que ele nunca soube explicar, talvez um mero capricho da natureza, aquele animal representava uma barreira a sua hegemonia total sobre todas as criaturas. Um medo ancestral e inexplicável surgia quando se defrontava com aqueles malditos. Mais de uma vez matou e foi gravemente ferido por aqueles animais.

Seus olhos estreitaram-se de ódio ao divisarem aqueles mamíferos que latiam, uivavam e que não demonstravam ter medo dele.

*****

A primeira morte não chamou a atenção de ninguém na cidade. Era apenas um bêbado que perambulava pelas ruas e que dormia nos bancos da praça. Seu corpo foi encontrado pela manhã com a pele estranhamente amarelada e ressequida. Seu rosto muito encovado causava medo naqueles que arriscassem um olhar mais detalhado sobre ele.

Quando os corpos de uma jovem mulher e seu filho de sete anos foram encontrados todos na cidade se interrogaram sobre as estranhas mortes.

Aos poucos o medo começou a se insinuar entre os moradores da cidade.

O terror instalou-se de vez entre os habitantes quando o padre da igreja matriz foi encontrado morto aos pés da cruz. Algo sugou a vida de um homem alto e vigoroso deixando apenas uma carcaça ressequida e amarelada em seu lugar.

Alguma coisa maligna circulava pela cidade. Boataria de todos os tipos surgiram para explicar os maléficos acontecimentos.

O medo enfiava as suas garras lentamente em cada habitante daquela cidade.

As mortes acumulavam-se e o desespero tomava conta de todos. Nenhum lugar parecia ser seguro. Um policial morreu enquanto tirava um plantão noturno, um outro cidadão foi encontrado morto nos fundos da sua loja meia hora após se ausentar e isso em horário comercial.

Não havia um único dia em que alguém não morresse apresentando aqueles estranhos sinais. Em qualquer lugar, em qualquer hora do dia ou da noite alguém era morto.

Muitos fugiram da cidade. A maioria permaneceu, talvez acreditando na força de um milagre qualquer que afastasse aquele mal que se abatera sobre eles.

*****

Do alto da estátua que dominava o centro da praça a coisa viu a mulher gorda que andava apressadamente. Divertiu-se com o medo que exalava dela e que fazia esta virar-se constantemente na esperança de ver alguma coisa.

Sentiu novamente aquele prazer antigo e malévolo lhe invadir o corpo. O medo que aquelas criaturas exalavam fornecia-lhe sensações morbidamente agradáveis.

Ali estava a sua próxima refeição.

Esgueirou-se com facilidade para dentro da casa de sua presa. Viu quando esta trancou desesperadamente todas as portas e janelas. Saboreou cada movimento que sua vítima fazia. Muitas eras haviam transcorrido, mas seu prazer mortal continuava. Sentiu sua afiada língua mover-se sequiosa em sua boca.

Uma maravilhosa sensação de ansiedade pelo alimento suculento martelava em seu peito quando, para sua surpresa, viu a mulher gorda abrir uma porta e fazer entrar quatro grandes animais.

Seu corpo invisível tremeu de medo ao se ver frente a frente com seu ancestral inimigo. Não havia para onde fugir. Ele tinha que lutar.

A mulher gorda gritou aterrorizada quando seus cães rosnaram e atacaram enlouquecidamente algo que ela não via.

*****

Como se fosse um atendimento a todos os tipos de preces e orações as mortes cessaram.

Ninguém acreditou na mulher gorda que vivia dizendo para todo mundo que seus cachorros atacaram algo que ela não conseguia ver.

O tempo passou e os estranhos acontecimentos foram aos poucos caindo no esquecimento.

Plutarco
Enviado por Plutarco em 30/03/2019
Reeditado em 31/03/2019
Código do texto: T6611640
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