Sem Sol - DTRL 34

“O negrume da noite avançou definitivamente.

Dourada, a esbranquiçada vegetação, rendia-se aos

tempos cinzentos.

Não tivera tempo...

Não colhera

Plantara

De fato, houvera plantado, mas não colhera o que plantara

e jamais haveria de plantar de novo

O negrume da noite havia avançado, definitivamente,

isso é tudo.

O último dia deveria ser como outro qualquer,

fora,

realmente fora como um dia qualquer

No entanto, como todo último dia, nunca é um dia qualquer

ainda que seja.

Escravo do costume,

Manhãs, iguais manhãs, sempre as mesmas manhãs,

Imutáveis!

Maldizia todas elas

À exceção dela, claro! A última manhã.

Não blasfemou, não maldisse aquela igual a todas as

mesmas desgraçadas manhãs de sempre.

Acaso seria poupado?

Tolice!

O negrume da noite avançou sobre todos e jamais

devolveu as manhãs que sempre vinham

Para todos

Quista ou não quista, exaltada ou maldita.

- O dia, cadê o dia?

- Alvo e estático na companhia de um rubro sol

escaldante?

Não importa

Era o dia com tudo que nele existe

Agora é noite,

Só noite e nada mais.

Haviam semanas em que o negrume da noite avançara

sobre a Caatinga

Ela (a noite) chegou, como de costume, calmamente fria

e nunca mais saiu

Simples assim!

Ela (a noite)

Tinha estrelas, tinha lua,

às vezes.

Ele (o dia)

Escuridão!

Sem estrelas, sem lua, sem sol,

Nem dó.

Não, não era um tempo de guerra, ainda

mas era um tempo sem sol

Impiedoso

Tal qual todo tempo sem sol”.

A verdade é que todos deveriam ter desconfiado. Coisas estranham repousavam naquele vale seco esquecido em algum ponto do sertão baiano. Na trovoada houvera chovido como nunca, encharcando toda a região mais plana, formando-se, consequentemente, um imenso alagado.

Joaquim que habitava o vale desde sempre, tal qual seus ascendentes que forjaram o povoado quando fugiram da escravidão, sabia que aquelas chuvas eram anormais. No entanto, ele, como qualquer outro campesino, não estava preocupado em discutir as mudanças climáticas, estava, isso sim, transbordando em alegria por saber que poderia plantar com a certeza inequívoca da colheita. Fato raro na vida de um agricultor do sertão.

A medida em que os dias passavam a planície, vista de cima, transformava-se em um imenso estepe verde. Porém, embora o milho desse uma nova coloração ao vale, a série de eventos estranhos fazia parte do cotidiano dos moradores que habitavam o vale. As armadilhas dos preás estavam sempre vazias. Apesar das chuvas terem enchido os açudes, em suas águas não fecundaram os peixes. Os patos selvagens que se alimentavam de pitus nas margens dos açudes quando os mesmos estavam cheios, jamais chegaram como de costume. Nem as lagartas atacaram as folhagens dos pés de milho. Por alguma razão os animais desapareceram. No boteco alguém dizia que havia visto uma “ruma de aves migrando para o litoral”, mas eram só conversas de boteco.

Quando o milho floriu, trazendo consigo bonecas de cabelos coloridos, o sol se escondeu pela última vez na montanha que ficava a oeste do vale. Estranhamente anoiteceu e não amanheceu. A princípio creram ser algum fenômeno climático. Entretanto, os dias avançavam e a noite teimava em permanecer. A plantação que era colheita certa, sucumbiu. Os pés de milho secaram e as bonecas não granaram, devolvendo a coloração original ao vale que, sob a luz da lua, deixava tudo dourado.

Diante do sinistro os habitantes do vale resolveram enviar os seus mais corajosos moradores para buscar respostas ou mesmo o sol em algum povoado vizinho. Partiram Joaquim, baleia sua cachorrinha e fiel escudeira e outros quatro.

Caminharam incansavelmente. Naquele breu infinito a única coisa que diferenciava o dia da noite era a lua. Haveriam de inverter, portanto, a lógica que sempre guiou a humanidade: caminhando à noite e repousando durante o dia. No primeiro quarto minguante, porém, um dos viajantes enfiou o pé em um cacto de espinho e tal fato o impedia de caminhar perfeitamente. Um mau cheiro invadia o ambiente, contudo, diante da escuridão pouco se sabia o que estava acontecendo.

O silêncio administrava as informações necessárias para aquilo que deveriam saber. Uma dor desatinada percorria o lado direito do corpo do enfermo e pelo orifício aberto em seu calcanhar pelo espinho de cacto, salivava uma secreção de coloração incerta devido a escuridão da lua minguante. Às vezes, baleia vinha lamber sua ferida em uma certa relação de reciprocidade, pois a morna língua da cadela amenizava a dor do moribundo ao passo que a secreção lubrificava sua garganta que tivera a água negada pelos humanos há algum tempo.

Quando a lua nova forneceu uma brecha de claridade, revelou que a perna do infeliz que houvera pisado no cacto, havia gangrenado. Bastou, portanto, que um olhasse para o outro para que todos entendessem o que aconteceria ali. Joaquim, que herdou dos avós o conhecimento das propriedades medicinais das ervas da Caatinga, logo trouxe um amontoado de folhas espremidas por suas grossas mãos de debulhar o milho e deu-as para que o doente as ingerisse.

A comida já havia acabado desde a outra lua e a água não duraria muito enquanto a escuridão reinava absoluta sem nenhuma luz no horizonte. Ainda assim eles caminhavam, sabiam que detrás de algum monte haveriam de encontrar um sol vermelho escaldante. Aonde teriam terras férteis, cortadas por rios e lagos nas quais todos teriam a oportunidade de cultiva-las e colheriam exatamente o que plantassem, nem mais nem menos.

Àquela altura do caminho a fome deixava-os lentos e a sede calados. Baleia, em contrapartida, entre um sumiço e outro com os lábios ensanguentados, mantinha a forma física, embora não habitassem uma viva alma naquele sertão consumido pelo breu. Enquanto o cão adormecia sobre os pés do dono, bastou, portanto, que um olhassem para o outro - aquele mesmo olhar que selou o destino do amigo há três dias - para que todos soubessem o que aconteceria ali. Uma pequena gota d’água, há muito economizada, rolou pelo rosto enrugado e carcomido pelo tempo de Joaquim. Contudo, no alto de sua experiência, ele sabia que não restava nenhum outro caminho. Sentiu mais pela cadela do que pelo amigo é verdade, mas foi um segredo que soube disfarçar em meio a sua costumeira rabugice.

Baleia não durou até o raiar o dia como talvez tivessem desejado. Talvez como tenha desejado Joaquim ao aceitar tamanho sacrifício. Durou, entretanto, o bastante para prolongar o sofrimento de todos. O mais novo daqueles quatro que acompanhou Joaquim para a jornada designada pelo povoado, apresentava sinais de desesperança que só se via a noite. O velho rabugento acompanhava a angústia do rapaz em silêncio. Queria consolar suas dores, mas sabia que haveria de poupar saliva para suportar os incertos dias sem água que deveria atravessar até encontrar o que beber. Não poupou, entretanto, palavras que encomendassem a alma do rapaz quando o mesmo deu cabo à vida em uma ribanceira qualquer.

Restava agora apenas dois. Eles talvez encontrassem o sol que certamente estava escondido em algum horizonte não alcançado ainda. Antes, porém, deveriam contornar a sede que lhes roubavam a mente de forma gradativa, provocando frequentes episódios de delírio.

“O silêncio da noite calava-os

Mórbido silêncio que levou o último dos quatro

Eram cinco no início

Agora era só Joaquim

Na última noite, portanto, era só Joaquim

Maldisse o sertão, a noite e todas as manhãs que não

tivera a oportunidade de maldizer.

Acordou com o sol beijando-lhe o rosto

E um estranho barulho de cachoeira

Correu...

Miragem?

Afogou-se!

Na poeira que o redemoinho levantou.

O negrume da noite havia avançado, definitivamente,

isso é tudo”.

Tema: Sertão Nordestino; e por que não Àgua.

bily anov
Enviado por bily anov em 25/04/2019
Reeditado em 25/04/2019
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