O POETA DE CORAÇÃO ÁRIDO - DTRL 34 - POEMAS SOMBRIOS

Estou preparando o teu corpo

Com minhas unhas afiadas

Sangue a gotejar no assoalho

E teus gemidos enfraquecidos

Você não entende que necessito

Do teu grito, do teu pavor

Dos teus olhos engolindo a vida

E da tua dor que me faz sorrir

Não tente fugir do teu destino

Você é oferenda para ele

Teu corpo retorcido e flamejante

Cacto de espinhos invertidos

Eu bem que queria teus lábios

O toque suave na alma tímida

Mas algo me obriga a te servir

A morte para ser degustada

Lentamente como o tempo que ilude

O sonho e a poesia da caatinga

— Cruz credo, Luzinelson. Que coisa horrível! O que você tem na cabeça para escrever umas coisas dessas?

— Ele é que manda. Ele me pede para escrever esses versos.

— Ele quem? — Lenita perguntou arregalando os olhos e se preparando para deixar o colega sozinho em uma das salas de aula da faculdade de letras.

— Um dia você vai conhecê-lo. Eu juro.

As últimas palavras chegaram aos ouvidos de Lenita já a certa distância da carteira do rapaz que estudava em Araripina, mas morava em Bodocó, mais ou menos a 75 km.

Luzinelson parecia não se importar com o isolamento na sala de aula. Ele sabia que todos os seus colegas o considerava estranho. Sempre foi tratado assim, desde os primeiros anos de escola. Ele carregava um sorriso solitário nos seus lábios sertanejos. Trazia em seu peito uma alegria que somente ele conhecia os motivos pelos quais ela se sustentava. Mas ele tinha que mostrar seus versos para alguém. Toda semana escolhia um colega. Naquela noite foi Lenita. Não era a mais bonitinha da turma. Mas ficava, no mínimo, no Top Five.

Lenita ficou impressionada com o horror expresso nos versos de Luzinelson. Ele não era feio, mas transpirava antipatia. Seu jeito caladão e sua mania de escrever aquelas coisas assustavam as pessoas. Ela estava tentando superar o rompimento do seu namoro. Não entendia o motivo pelo qual seu ex-namorado ter de repente a trocado por outra garota menos bonita. Suspirou fundo e pegou o ônibus que a levaria para o aconchego quente do seu travesseiro.

Enquanto vencia os quilômetros da estrada e a escuridão agreste em seu carro, Luzinelson se lembrava do olhar penetrante de Lenita e da sua feição de horror diante dos seus versos.

— O que ele quer de mim? Até onde ele vai me levar? —olhou para o cachorro no banco de trás e recebeu um sorriso do animal em retribuição.

Quando retornou do banheiro após abastecer seu carro em Ouricuri, o sítio em que ele morava se situava a quatro quilômetros antes de Bodocó, Luzinelson encontrou no banco do carona um bilhete. Ele sabia o que era, mas fez o mesmo gesto de sempre, primeiro de curiosidade e depois de reprovação. Olhou firme para o cachorro deitado. O animal balançou a cabeça. O rapaz entendeu o comando, ligou o veículo e partiu para sua casa.

No dia seguinte o poeta tenebroso entregou para Lenita em um dos intervalos um belo poema romântico e seguiu para a sua carteira no fundo da sala. Ela leu maravilhando-se com cada verso. Olhou para trás e sorriu para o rapaz de olhos parados. Ninguém percebeu. Ninguém mais percebe naquela faculdade o que acontece com o sitiante de Bodocó. Ignorá-lo é uma defesa contra seus poemas malditos.

Fim de aula naquela noite. Sexta-feira é sempre dia dos universitários se distribuírem pelos bares, lanchonetes e sorveterias da cidade sob a poeira de gesso.

Lenita resolveu descobrir mais sobre o autor dos versos trevosos de ontem e dos versos românticos de hoje.

— Então você também sabe fazer poemas românticos. Muito bonito. Gostei demais.

— Então, ele me mandou te escrever esse poema romântico como recompensa pela atenção que você me dispensou e por você ainda ter pensado em mim, mesmo me achando antipático.

Lenita se assustou. — Como ele sabia que ela tinha pensado nele?

— E no mais —seguiu o rapaz— você está saindo de um relacionamento com um final traumático para você. Certas coisas na vida são inexplicáveis mesmo. Como pode um rapaz romper um namoro com uma das garotas mais lindas da minha classe e ficar com outra, com todo respeito, menos graciosa. Eu se um dia namorasse uma garota com a tua beleza por nada romperia o relacionamento.

Lenita estava perplexa. Ele parecia ter lido a mente dela. Resolveu indagar.

— Como você sabe dessas coisas sobre mim? Eu não te contei nada sobre esses fatos.

— Honestamente, eu não sei como sei. Eu só sei que sei. E não é filosofia o que eu estou expressando. É a minha angústia sobre ficar sozinho, ser incompreendido, não se encaixar no mecanismo social e não ter ninguém para compartilhar a minha vida.

— Então hoje você terá com quem compartilhar. Vamos tomar um sorvete.

— Milk shake, eu adoro milk shake.

Ao abrir a porta do carona, Lenita deparou com dois olhos curiosos brilhando na escuridão do interior do carro de Luzinelson.

— Que fofo! Você tem um cão de estimação. Como ele fica quietinho aqui enquanto você estuda?

— Ele é tudo para mim. Eu só tenho a ele e mais ninguém. — Lenita sentiu vontade de dizer que agora ele a teria se quisesse. Mas era cedo. Precisava ainda responder algumas dúvidas levantadas pelo seu sistema interno de segurança.

— Sabia que eu também tenho um animal de estimação? Tenho um papagaio. O bicho é bem falante. Ele parece sentir minhas emoções. Quando estou triste ele fica de pescoço caído em seu poleiro e pouco comunicativo. Quando estou alegre ele faz tanta algazarra que minha mãe até me pede para acalmá-lo.

Enquanto ele conversava sobre livros, filmes e músicas de bandas que ela desconhecia, ela tentava arrancar informações sobre a sua vida. Pouco mais foi acrescentado ao que já sabia.

Ela aceitou que ele a levasse para casa, mas desceu dois quarteirões antes. Assim como pouco ela soube dele, achou prudente ele não saber onde ficava a sua casa.

Na semana seguinte Luzinelson não compareceu à faculdade. Nenhum outro estudante de Bodocó sabia o motivo. Havia um ônibus que transportava universitários todo dia, mas o poeta solitário vinha em seu carro. Mais um mistério. Eles não o aceitavam ou ele é que preferia usar sua própria condução?

Na sexta-feira à noite Lenita tomou uma decisão. Sábado ela não tinha que ir ao escritório do seu tio onde trabalhava meio expediente. Acordou cedo e deu falta do seu papagaio quando foi alimentá-lo. Não se preocupou. Já nem usava correntes no pé do pássaro. Ele, toda vez que sumia pela manhã, retornava ao fim da tarde. Ela foi para a rodoviária pegar o primeiro ônibus para Bodocó.

Quando o ônibus fez uma parada em Ouricuri, depois de percorrer 60 km, o seu desconhecido companheiro de poltrona levantou para descer, olhou para ela e disse:

— Cuidado moça, a doçura dos versos pode esconder o veneno da fera maldita.

Como aquele homem que ficou ali, o tempo todo, mais de uma hora ao lado dela, sem lhe dirigir uma palavra sequer, ousava dizer algo tão incompreensível para ela? Com o que ela teria que tomar cuidado? Que recado mais estranho seria aquele? Aquele homem de olhos pequenos como o de seu papagaio devia ser mais um desses velhos delirantes que vivem dizendo coisa com coisa.

Enquanto o ônibus manobrava para pegar a rua, Lenita percebeu que o homem havia esquecido um isqueiro. Tarde demais para devolver. Pegou o objeto e guardou no meu bolso.

Para se distrair e não acreditar que aquele recado do homem estranho fosse profecia, ela resolveu observar a paisagem. Sítios pequenos e igrejas aqui e acolá. Cabras e hortaliças, chácaras bem cuidadas em meio à aridez do sertão. A monotonia da paisagem foi quebrada por um terreno mal cuidado com um casarão, feito fazenda antiga, bem no fundo, ao pé da pequena montanha.

Chegando a Bodocó, afastou-se um pouco do terminal rodoviário e entrou em uma padaria para lanchar e pedir informação. Queria saber onde ficava a localidade mencionada por Luzinelson. A moça da padaria disse que ficava antes de chegar a Bodocó, bem na beira da estrada. Seria mais de uma hora de caminhada voltando para Ouricuri. A moça destinada a encontrar seu colega de faculdade estava disposta a fazer o que fosse preciso. Voltou para o ponto de táxi em frente à rodoviária e ainda encontrou três veículos estacionados.

— Preciso ir para essa localidade. O senhor conhece? — mostrou o nome anotado na agenda do celular.

— Sim, conheço. A minha sogra mora lá.

— Quem sabe o senhor não conhece o rapaz que eu estou procurando. Ele faz faculdade em Araripina e se chama Luzinelson.

O taxista se assustou quando ela mencionou o nome do rapaz. Tomou fôlego e voltou para o diálogo.

— Ah, sim. O poeta maldito. Conhecer, eu até conheço. Se a senhorita for parente dele, deve saber que ele mora em um casarão que dizem ser assombrado. Há mais de um mês que ninguém vê os seus pais. Ele disse para a polícia que foi lá outro dia que eles estão viajando.

— Poeta maldito? Por qual motivo o chama assim?

— Minha filha estudou com ele aqui. Ele sempre foi meio esquisito e por fim escrevia uns poemas falando de morte, sangue, algo estranho que assustava os seus colegas. Todos começaram a chama-lo de poeta maldito. Eu te levo, mas te deixo na porteira da estrada. Tudo bem para você?

— O aviso do homem no ônibus voltou a emergir na sua lembrança. Mas ela estava ali para isso. Ia se arriscar.

O táxi a deixou na porteira conforme o combinado. Ela caminhou pela planície árida até chegar ao casarão. Era realmente sombrio. Velha fazenda com as telhas caindo, o mato nascendo por todos os cantos. As portas pesadas cerrando histórias cotidianas com seus sonhos e angústias. Bateu palmas. Nenhum latido de cachorro. Ela esperava pelo animal de estimação dele e que o cão a reconhecesse. Que se alegrasse com a sua visita.

Depois de três rajadas de palmas, Luzinelson apareceu em uma das janelas. Esboça um sorriso sem jeito, afasta-se e em seguida abriu a porta para recepcionar a moça cansada pela viagem.

— Eu esperava por você. — Lenita mais uma vez achou estranho. Como assim, esperava por ela? Ela não havia combinado nada com ele.

— Você não foi à faculdade essa semana. Achei que você estivesse doente ou qualquer coisa assim. Por isso eu vim.

— Entre, não repare o desarranjo. Meus pais estão viajando.

— Eu sei. Faz mais de um mês. — ela também quis impressioná-lo com informações que ele julgava desconhecidas por ela, e conseguiu.

Ela foi conduzida para a sala e depois para a copa onde ele puxou uma pesada cadeira para que ela se sentasse.

— Vou te servir um chá de camomila. É ótimo depois de uma viagem. Você deve estar cansada. É perto, mas de ônibus, suponho, cansa-se muito. — ela concordou. Enquanto ele preparava o chá ela ficou olhando as fotos emolduradas na parede encardida, supostamente dos antepassados do rapaz. Em alguma delas, o mesmo cachorro aparecia. Atrás dela uma velha escada que levava para o segundo andar teria ficado despercebida se não fosse o barulho inesperado e fraco vindo do andar de cima.

Ele retornou com o chá em uma xícara impecavelmente limpa. Ela começou a tomar calmamente para degustar o sabor da camomila que ela tanto apreciava. Não percebeu que adormecia sob o efeito doce da bebida.

Quando ela acordou contemplou aflita os livros velhos nas prateleiras da biblioteca escura. Tentou se mover e deparou com as correias lhe prendendo naquela mesa enorme onde ela se encontrava deitada com parte de suas roupas removidas. Gritou. Arrependeu-se ao se lembrar do poema —...eu necessito/ do teu grito, do teu pavor. Não iria dar ao psicopata, para quem ela deu bandeira, de ter o que precisava. Mas o sangue pingando, isso não teria como evitar.

— Ah, você acordou. Acho que posso começar. Ele está faminto. — falou Luzinelson entrando no recinto com uma adaga na mão.

— Maldito, desgraçado, o que você está fazendo comigo? Eu te dei confiança, fui legal com você. Vim até aqui para saber o que tinha acontecido e você vai fazer alguma maldade comigo?

— Acredite, eu não quero, mas eu necessito. É preciso que isso seja feito. Sinto muito. — ele enfiou um chumaço de pano com alguma substância na boca dela.

O rapaz, na maior naturalidade, ergueu os braços como se fizesse uma oração, murmurou algumas palavras inaudíveis, e começo a recortar o corpo dela. Dizia ele que cada corte era como um verso das suas poesias. A certa altura beijou a mão da moça e falou que se viu casando com ela em sonhos. Seguiu recortando as coxas e os braços. O corpo dela se contorcia de dor, ele sorria. O poema daquela quinta-feira começou a martelar o cérebro dela. Queria insultá-lo com os piores nomes, ou rezar, pedir para que a tortura parasse, mas as palavras se acotovelavam na garganta. Ele seguia rindo. Dessa vez, quando foi mudar de lado, ele a beijou na testa. Resmungou algo como — que pena que ele quis você. — e ela quase declamou o poema inteiro.

Ela sentia suas forças se esvaindo pelos olhos enquanto ele seguia recortando seu corpo e fazendo o sangue escorrer pela sua pele até começar a gotejar sobre a mesa, e da mesa no chão. Dor intensa. Nenhum órgão vital tinha sido perfurado. Ela entendia que serviria de oferenda e ela tinha que estar ainda com vida. Desejou a morte rápida, o fim de tudo. Pensou na mãe, no pai, no tio que lhe dera emprego e no papagaio. Tudo ficaria para trás. Sentia-se culpada pela sua própria morte. Ideia maluca ter vindo atrás dele. E na faculdade quando o crime fosse elucidado? O aviso do estranho no ônibus. A recusa do taxista. Tudo agora fazia sentido. Ele passou a lâmina pelo peito dela fazendo seu corpo ficar todo ensanguentado. — quase pronta. — sentenciava.

Aquele — quase pronta — se tornaram as últimas palavras que ela ouviu antes que o sangue escorrido do seu rosto começasse a inundar a sua orelha esquerda. Adormeceu.

— Fera maldita, fera maldita, vem buscar a tua oferenda. Fera maldita, teu servo te preparou uma oferenda. Venha, meu senhor. — ela despertava novamente. Seu sangue emergia de todos os cortes ensopando os braços dele, gotejando sobre o velho assoalho. Um urro completou o seu despertar. Seus olhos enfraquecidos visualizaram uma fera descendo os degraus que rangiam. Os olhos que emergiam da semi-escuridão eram o mesmos do cão na poltrona traseira há uma semana.

O papagaio de estimação de Lenita entrou no recinto charleando forte. Bicou profundamente o pescoço de Luzinelson, arranhando o seu rosto até o olho esquerdo que ficou completamente rasgado. O corpo da moça caiu aos pés da escada enquanto o rapaz limpava o sangue da sua face. Ela saiu se arrastando. A dor era tanta que ela ainda não conseguia se erguer. Precisou se firmar na mesa da copa.

A fera avançou em direção à ave que passava por algum tipo de metamorfose. Empurrou com tanta força o seu servo que estava no caminho que ele bateu a cabeça na ponta da mesa da copa e ficou zonzo.

Antes de Lenita chegar até a porta com seu correr cambaleante, o rapaz a alcançou e puxou ela para dentro, jogando-a no chão da copa. Ela pode perceber que o papagaio tinha se transformado em um anjo de braços fortes, asas brancas, travando uma luta corporal com a fera.

Ainda atordoado, Luzinelson se jogou com os olhos esbugalhados e boca babando sobre Lenita, detendo-a de se mover e fugir. Ele começou a pedir desculpas e dizendo que a amava. Ela tentava se arrastar, mas o peso do corpo dele não deixava. Ele falava de alguma maldição da família. Ela precisava acompanhar a luta, torcer pela a vitória do papagaio, ou anjo. Não sabia definir mais o que era aqueles animais em batalha. Eles se esmurravam, se atracavam, rolavam pelo chão e se erguiam.

Luzinelson permanecia balbuciando sobre ela. Agora falava de amor. Dizia que a adorava e que queria morrer ali com ela em seus braços, iria protegê-la da fera. Ela em busca de alguma solução começou a retribuir as declarações dele e a acariciar seu rosto com suas mãos sangrando.

Ele cessou suas declarações e começou a se levantar. Ela conseguiu se firmar, com suas forças de reserva, levantou se rapidamente, pegou o vaso que estava sobre a mesa e o acertou antes que ele a abraçasse. O atordoado rapaz desmaiou. A peleja entre as duas criaturas seguiam. O anjo sangrava na testa e a fera parecia sentir em um dos braços. Lenita foi até a biblioteca, derrubou uma estante de livros e começou a queimá-los com a chama do isqueiro que o homem estanho havia deixado no ônibus. Mesmo cambaleando saiu da casa. Sentia que tinha perdido muito sangue, mas precisaria chegar até a estrada. Assim que passou pela porteira, desmaiou.

Ao ouvir o som do seu papagaio sobre a porteira chamando o seu nome, percebeu que estava sendo socorrida pelo taxista que a havia trago. Sorriu para o papagaio com a testa ferida. Ao fundo as chamas consumia o velho casarão.

TEMA: METAMORFO

P.S. Conforme sugestões e autorização da organização do desafio, mudei o tema do conto. Agradeço as sugestões.

Cláudio Antonio Mendes
Enviado por Cláudio Antonio Mendes em 27/04/2019
Reeditado em 02/05/2019
Código do texto: T6633970
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