Morte no paiol - CLTS 07

Pelas frestas da janela corroída por cupins, penetrava um gelado vento vindo do Sul, trazendo consigo um inconfundível cheiro de arroz maduro, denunciando, portanto, que a plantação estava pronta para a colheita. De dentro do paiol ele observava a flutuante fumaça do cigarro que navegava saltitante até confundir-se com a luz que invadia o recinto pelas brechas das paredes, dissipando finalmente no ar.

Sabia que não poderia permanecer eternamente naquele paiol. Em algum momento deveria abrir a porta e encarar o mundo lá fora. Lembrou-se da primeira vez em que falou em público, na verdade da primeira vez em que tentou falar. Apresentação do trabalho de história. Suas mãos ficaram trêmulas e molhadas, uma pedra de gelo percorria seu estômago e o coração batia incontrolavelmente acelerado. Ele travou, não conseguiu pronunciar uma mísera palavra sequer. Saiu da escola em disparada e aos prantos, ficando consequentemente, três dias trancado no quarto. Não entendia porque tinha essa estranha mania de fugir das peleias da vida. Fora, inclusive, o medo de encarar as pessoas que o levou a mudar-se da cidade para a zona rural.

Quando criança sempre ouvira de seu genitor: “você deve ser macho igual a mim”. No entanto, seu pai partira cedo, em uma das tantas brigas de bar que se envolvera ao longo da vida, portanto, o infeliz não tivera tempo de ensiná-lo a ser “macho”, e ele, obviamente, não tivera tempo para aprender o que seria ser “macho”. A única coisa que herdara do pai foi o cigarro e a loucura como disse um dia sua mãe. Nada disso, obviamente, importava mais, ou pelo menos não deveria importar. Agora ele era homem feito capaz de resolver por si mesmo seus próprios conflitos.

Escolheu a maior dentre as espigas de milho armazenadas no paiol, selecionou a parte mais fina da palha e tornou a bolar outro cigarro. Espiou pela greta da janela e viu uma pequena luz azul ao longe que vinha sem atalhos em sua direção. A princípio assemelhava-se a uma lanterna, no entanto, na medida em que se aproximava ficava cada vez mais forte e grande. Quando o flash de luz finalmente irradiou o paiol, invadindo-o pelas inúmeras gretas que possuía, deixando-o todo azulado, Phillipe Lima pode concluir que não se tratava de uma lanterna, mas de algo muito maior. “São eles, definitivamente, são eles” pensou consigo mesmo, atirando-se ao solo. Deitado viu o flash de luz dando meia volta, passando pela casa e voltando para trás.

Inerte sobre o assoalho, vasculhou a memória no intuito de refletir acerca dos eventos que o levaram até ali.

Era uma manhã nublada e de clima aparentemente hostil de segunda-feira. Costumeiramente como fazia durante alguns dias da semana, pegou o bodoque pendurado em um prego qualquer da cozinha, sacou as boletas de barro, secadas cuidadosamente sobre a chapa do fogão a lenha, colocou-as no embornal, feito a partir dos panos de alguma calça jeans inutilizada e costurou a plantação de arroz à procura de perdizes que lhe fornecessem a carne do almoço. Era uma atividade um tanto quanto infantil é bem verdade, no entanto, como podemos julgar as ações de um homem perdido em meio a um deserto verde de arroz que precisava constantemente não deixar que lhe consumisse o tédio.

Foi nessa caçada que avistou no meio da plantação, próximo à uma torre de alta tensão que cruzava a propriedade ao meio, pequenas manchas de arroz amassadas que iam aumentado de tamanho gradativamente. Intrigado, escalou a torre e observou de cima que aquelas manchas formavam quatro círculos perfeitos, ligados entre si por uma grande linha reta vertical. Não lhe sobreveio o medo naquele exato momento. Era do seu conhecimento as brincadeiras realizadas em plantações pelas pessoas ao redor do mundo com o fito de relacioná-las a presença alienígena na terra. Contudo, tal fato foi o suficiente para que abortasse a caça de perdizes e voltasse para casa pensativo.

O que de fato obrigou-o a trancar-se no paiol foi o que aconteceu à tarde. Estava ele fumando o costumeiro cigarro de palha, sentado sobre o imenso banco de cerejeira que ficava debaixo de uma centenária mangueira no quintal da fazenda. O arroz disputava o espaço com o quintal, pois quando se vive da atividade agrícola cada palmo de terra é importante, de tal sorte que a plantação estava a poucos metros de onde Phillipe estava.

O inexistente proporcionado a cada puxada no cigarro foi interrompido pelas latidas do cachorro Sudão atrás da casa. Phillipe jogou as vistas em direção a latida e nada observou, apenas a velha cadeira de balaço que se movia para frente e para trás, embora ninguém nela estivesse sentado, talvez tal balançar fosse em razão da ação do vento que há algumas semanas já anunciava a chegada do inverno.

Tudo isso deixou-o em silêncio, de tal maneira que podia sentir sua pulsação, bem como o vento que tocava o arrozal e o sibilo provocado quando cada cacho de arroz tocava o outro. O velho cata-vento produzia um som melancólico e ao mesmo tempo aterrorizante. Quando todos esses sons se somavam aos círculos vistos na plantação naquela manhã, geravam nele uma certeza sensação de que estava sendo vigiado. De repente um vulto negro, seguido por Sudão, rasgou na lateral e se embrenhou no meio da plantação. Podia-se ver apenas um trio, pelo balançar dos pés de arroz, feito pela criatura e pelo cachorro. Um uivado foi a última coisa que ouviu do cachorro e desde então se trancou no paiol, pois o mesmo estava mais próximo dele do que a própria casa.

Phillipe levantou-se, olhou pela janela novamente e observou que a luz já ia ao longe. Talvez as criaturas estivessem vasculhando a região em busca de humanos que pudessem ser cobaias para os seus projetos de ETs. Não fazia nenhum sentido ele ficar trancado no paiol enquanto o mundo lá fora, certamente, estaria em uma ininterrupta guerra contra os alienígenas e seus tenebrosos planos de dominação da terra. Talvez deveria aproveitar que a luz tinha se afastado para ir até a casa procurar alguma arma que lhe auxiliasse no confronto contra os visitantes intergalácticos. Talvez devesse avisar a população de que a terra estava sendo invadida por seres de outro planeta, no entanto, no isolamento da área rural em que estava não existia sinal de telefone, internet ou qualquer coisa que o valha.

Riu de si mesmo, de como ironicamente o medo das pessoas levou-o a dar de frente com os alienígenas. Os humanos com suas múltiplas facetas, decerto, seriam melhores de se enfrentar do que as criaturas que rondavam a fazenda.

Foi até a janela oposta para espiar a casa. Congelou a espinha ao notar que estranhamente a luz da sala estava acesa. Na janela uma senhora lhe chamava com as mãos. Atirou-se ao solo novamente. Os alienígenas deveriam ter acessado a casa, afinal. Correu até a outra janela e observou que a mesma luz retornava ao longe. Estava perdido, condenado a ser cobaia de algum experimento Extraterrestre tal qual Sudão.

Deparar-se com o desconhecido não é uma experiência que renda emoções racionais. Phillipe não conseguia administrar as suas. Olhou no canto do paiol e observou o diesel que abastecia as máquinas da fazenda. As luzes de tão próximas invadiam o paiol pelas gretas e frestas. O sentimento que sempre lhe perseguiu a vida tomava-lhe agora as rédeas do discernimento. Abriu alguns galões de diesel e jogou-os sobre o paiol. Ascendeu o último cigarro. O paiol já estava todo azulado quando jogou o cigarro sobre o assoalho e tudo voou pelos ares.

***

Uma viatura policial chegou na fazenda na manhã seguinte, dela desceram o cabo Farias e o soldado Leite. Podia-se ver algumas estruturas de madeiras ao longo do quintal, uma velha sentada na cadeira de balaço na frente da casa, uma máquina colheitadeira que fazia a colheita do arroz e muita cinza no lugar do que um dia fora o paiol.

- Bom dia senhora! – Cumprimentou o cabo. Chegaram relatos até a nossa delegacia, por pilotos que realizavam uma pulverização aérea em uma fazenda vizinha, de terem visto algo parecido com uma explosão por essas localidades. O que vocês podem nos dizer?

- Ah seu policial – disse a velha em prantos. Meu filho sofria da cabeça e às vezes ficava meio abobado. Ontem ele teve uma crise dessas bem feia e deu de se trancar no paiol. Enquanto meu outro filho fazia a colheita de arroz a noite – disse ela apontando para o filho que consentia com a cabeça – ele incendiou o paiol onde estava todo diesel para a colheita e explodiu tudo.

O cabo tirou a boina e cuspiu no chão. Ele e o soldado foram até onde era o paiol e examinando as cinzas e disse:

- Vamos até a cidade chamar a perícia técnica para que seu filho possa ter um enterro digno.

Enquanto o cabo e o soldado partiam na estrada de chão, levantando uma poeira avermelhada, a velha olhou para o rapaz e o canto de sua boca ensaiou um sorriso mútuo. Um flash de luz azul cortou o horizonte.

Tema: Conspiração alienígena.

bily anov
Enviado por bily anov em 13/05/2019
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