A ESCRAVIDÃO MENTAL É O PIOR DOS DEMÔNIOS

Os calafrios percorriam não só o meu corpo castigado e cansado, mas, sobretudo minha alma, àquela altura fatigada de forma brutal pela perda de tantos irmãos de sangue.

O odor pútrido a nossa volta emanava uma mistura de excrementos humanos, corpos em decomposição e alguns ratos gordos que não tinham para onde ir, também prisioneiros, lançados a própria sorte. Já não sabia ao certo quem aplicava o próprio mal em sua essência de forma mais eficaz, o ser humano ou a própria natureza.

Havia perdido a noção de tempo, aquela espécie de poço de sofrimento que nos abrigava deixava irradiar apenas um pouco de luz solar pela superfície emadeirada. Acho que devia estar ali há algumas semanas. No começo foi mais duro suportar aquelas ondulações causadas pelas águas enfurecidas dos mares, pois minha tribo estava acostumada ao calor escaldante e a vegetação peculiar que nos proporcionava tudo que precisávamos.

Certa noite, os raios lunares que adentravam pelas pequenas brechas começaram a ser entrecortadas por uma correria fora do normal. As pessoas que nos aprisionaram corriam freneticamente em busca de algo. Ouvi lâminas de espadas sendo manejadas. A maioria de nós estava cansada até mesmo para sentir medo, alguns suplicavam ao grande deus da floresta que acabasse de vez com nosso sofrimento, levando para o fundo oceânico aquela prisão de caos sangrenta. Nossos espíritos estavam prontos para encontrar os antepassados.

Logo ouvimos disparos como se fossem pequenos trovões. Algo se chocou e as correntes que nos prendiam tilintavam de forma medonha e apocalíptica. Não demorou até que sangue começasse a escorrer para dentro da nossa morada forçada. Seja lá o que tivesse ocorrido, se deu de forma rápida e brutal. Ouvimos sons em uma língua diferente, não sabia distinguir o que era. No meio do caos ouvimos as correntes que trancavam a entrada do poço serem dilaceradas, talvez pelo metal frio das espadas dos nossos algozes.

As trancas foram puxadas por uma força descomunal, indo parar provavelmente no fundo do oceano. A claridade parcial proporcionada pelo luar fez com que pudesse ver os rostos tristes e assustados dos meus irmãos e irmãs, alguns olhavam com curiosidade, outros com uma mistura de aceitação e pavor. Não há nada que fira mais o espírito humano do que ser privado da sua liberdade. Chorei ao ver que muitos deles estavam vivos apenas por fora, mas, já tinham perdido a sua alma.

Passos descomunais pararam de repente. Um homem de pele pálida mostrou sua face, sorriu como se fosse uma divindade prestes a acatar algum desejo mundano. Suas vestimentas eram estranhas, bastante diferente das dos piratas que haviam nos aprisionados. Ele desceu lentamente as escadas que davam para o fundo do poço, pareceu ficar admirado em nos ver. Pela brancura de sua pele eu pensei que talvez ele nunca antes tenha visto uma pessoa de pele escura como a minha. Um dos líderes da nossa tribo chamado Mabeng tentou tocar em suas pernas, em um gesto que na nossa cultura significa submissão. O estranho viajante ficou de joelhos e com um movimento rápido, colocou as mãos em seu pescoço, puxando-a com força. A cabeça foi cortada com a mesma facilidade que se corta um graveto.

O estranho ser segurou o membro decepado de Mabeng, como se examinando e tentando entender do que se tratava, depois, colocou sua boca e sugou o sangue que escorria. A criatura tinha dentes protuberantes como leões. Ele sorriu e sumiu velozmente da minha linha de visão. Ouvia apenas gritos e o que parecia ser ossos sendo quebrados, sangue jorrava por todos os lados. Era o mais distante da entrada, desta forma, pressenti que seria a última vítima daquela criatura infernal. Não havia mais nada a ser feito. Lembrei de uma antiga melodia entoada pelos meus ancestrais em noites de lua cheia, que falava sobre liberdade e que sem ela, o melhor seria padecer lutando.

Cantei enquanto a criatura se aproximava e até o último segundo antes do ataque fatal eu cantei, pois, às vezes, canções de liberdade são tudo o que podemos ter.

Lord Shakiro
Enviado por Lord Shakiro em 27/05/2019
Código do texto: T6658024
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