O caixão do velho Hersell - DTRL 35 - FAN FICTION

A primeira vez que eu o vi foi na pousada que ficamos antes da grande viagem. Minha mãe, meu pai e eu seguíamos rumo ao norte para visitar minha avó que estava muito doente. Naquela noite eu observava pelas janelas de vidro a neve que caía, foi então que ele apareceu: puxando o cavalo pelas rédeas seguia em direção ao fundo da pousada.

Soube na manhã seguinte pelas conversas paralelas na mesa do café da manhã que ele dormiu na carroça junto a seus pertences, fiquei imaginado o frio que devia ter sentido, mas, no auge de meus dez anos, eu me preocupei mais com minha boneca que perdera um braço na viagem até ali.

Antes da sete da manhã minha diligência seguiu viagem acompanhando as vinte diligências que em fila indiana se afastavam da cidade. Eu apertava Fiona nos braços para ela não sentir o frio que estava fazendo. Ao longe pude ver o velho e apenas ali fui que percebi as enormes marcas que ele tinha no rosto, cicatrizes fundas que desciam da testa até a boca, alguns disseram mais tarde que foi uma briga com um urso, naquela época acreditei. Ele seguia sozinho numa velha carroça puxada por dois burros.

Eu não sei o porquê de eu ter tanto interesse naquele senhor que parecia ter uns cinquenta a sessenta anos, e foi na fogueira feita na primeira noite de acampamento que soube seu nome: Hersell. Um dos viajantes gritou para o velho pedindo que ele se aproximasse da fogueira, Hersell apenas meneou um não com a cabeça e tragou mais fundo o cachimbo soltando em seguida a fumaça.

Talvez ele gostasse do frio, eu pensei. Inclusive ele parou sua carroça mais afastada do acampamento como se saboreasse a solidão que o frio do inverno trazia. Antes de entrar na minha tenda o observei na carroça se aconchegando entre grossas cobertas, mas antes me lançou um olhar penetrante, me escondi rapidamente junto com Fiona.

***

– Cadê Fiona? – indaguei minha mãe, ela disse que não tinha visto, fiquei desesperada. Acabara cochilando com o balançar da diligência, provavelmente deixei cair na neve e agora seria quase impossível encontrá-la. As lágrimas escorreram pelo meu rosto, fiquei cabisbaixa olhando os sulcos deixados na neve pelas rodas da carroça. Foi então que eu ouvi um assovio.

A uns cinquenta metros Hersell acenava com a mão, no colo tinha um objeto: Fiona. Não pensei duas vezes saltei de onde estava, ao tocar na neve meus pequenos pés afundaram e eu acabei caindo, levantei-me e fui até o velho com certa dificuldade.

Com um sorriso amarelo ele tirou o chapéu enquanto fazia uma reverência, estendeu a boneca para mim, receosa peguei Fiona. Percebi que o grande bigode dele falhava onde ficava a cicatriz, disse obrigada, mas antes de me afastar da carroça meu pai me agarrou pela cintura me levando aos seus braços, foi então que eu vi algo brilhando sob uma lona grossa que estava sobre um velho caixote de madeira. Era um braço de um crucifixo prateado, o velho pareceu perceber que eu estava olhando para aquilo e puxou a lona cobrindo o objeto. Meu pai se desculpou pelo incômodo e seguimos de volta à carroça.

Já de volta a nossa diligência fiquei confabulando com Fiona o porquê de ele não vender o crucifixo para comprar uma carroça nova, Fiona também não sabia por quê. As rodas pararam e os homens começaram a levantar as tendas para montar o acampamento.

Naquela noite fria de inverno as pessoas contavam histórias em meio a gargalhadas, eu estava no colo de minha mãe ouvindo. Uma nota soou vinda de um instrumento de cordas ganhando a atenção de todos.

Hersell, pela primeira vez se aproximou da fogueira, trazia consigo um velho violão. Sentou-se próximo a meu pai. Com agilidade os dedos batiam nas cordas, eu fiquei impressionada como aqueles dedos gastos pelo tempo conseguiam realizar movimentos tão complexos. Quando ele começou a cantar todos pararam para ouvir, mas não compreenderam o que ele falava, pois parecia ser outro idioma, o que foi confirmado mais tarde: português.

Mesmo não entendendo nenhuma palavra eu parecia saber o que ele cantava, era uma música triste. Ao terminar ele apoiou o violão na perna e bebeu de uma só vez o copo que acabara de encher. Hersell ergueu o litro e ofereceu ao meu pai.

– Essa vai ser a melhor que você já tomou, eu trago lá da minha terra: a famosa cachaça.

Meio a contragosto meu pai deixou o velho colocar aquele líquido no seu copo, oferecendo em troca um sorriso forçoso.

– Obrigado, mas sobre o que sua música falava, eu não sei que idioma é este – meu pai levou o copo à boca e fez uma careta como se não tivesse aprovado o gosto da cachaça – meio forte isso né?

– Bem – disse enxugando a boca na manga da camisa – fala de um pai que amava muito o seu filho e o perdeu depois para uma besta assassina – nesse momento ele olhou para mim, abracei mais forte minha mãe.

– Hersell toque mais uma para a gente! – gritou um homem do outro lado da fogueira.

Mostrando os dentes desbotados ele pigarreou e voltou a tocar o violão. Era uma música mais alegre e em nosso idioma, eu sorri disfarçadamente para que aquele homem estranho não percebesse. Agora ele tinha uma feição mais gentil, talvez por que estivéssemos chegando ao nosso destino, faltava pouco mais de quarenta quilômetros, pelo menos foi o que meu pai me disse ao me colocar para dormir.

***

Acordei de madrugada, sonolenta sai da tenda para procurar um local onde pudesse fazer xixi. Não quis acordar minha mãe e me achava muito grandinha para pedir a ajuda dela. O céu estava limpo e a luz da lua cheia deixava o branco da neve prateado. Afastei-me um pouco em direção a uns arbustos, então eu o vi: Hersell. Abaixei-me para que ele não notasse minha presença, ele mexia na carroça puxando as lonas. Com um movimento ergueu o velho caixote que eu havia visto há alguns dias, mas agora a luz da lua permitiu reconhecer aquilo: não era um caixote e sim um caixão.

Prendi a respiração e fiquei imóvel atrás dos arbustos, Hersell com o objeto nos ombros se afastou para além de um monte de neve e sumiu no horizonte. Não pensei, corri para minha tenda e apertei ainda mais a Fiona, talvez fosse apenas um sonho, mas sabia que não era. O que Hersell levava naquele caixão? Minha mente infantil não soube responder, antes de o sol erguer-se eu dormi.

***

Não comentei com ninguém sobre o que eu tinha visto e até mesmo Fiona não disse nenhuma palavra sobre o acontecido. Vez ou outra eu lançava um olhar para o velho, mas desviava rapidamente ao perceber que ele me olhava de volta.

Todas as diligências pararam.

Coloquei minha cabeça para fora da carroça para investigar, mas mal fiz isto e minha mãe me agarrou escondendo-me entre as caixas de madeira.

– Fica quieta aí e não faça nenhum barulho! – ela parecia assustada, então eu ouvi um tiro.

Por entre as tábuas da diligência tentava ver o que se passava lá fora. Um homem que não pertencia à caravana passou montado em cavalo ao lado da nossa carroça, levando consigo uma arma apontada para cima. Ele tinha um enorme chapéu na cabeça que chegava a esconder as orelhas.

– Não faça nenhum movimento brusco, velho, se não quiser levar um balaço na testa – Hersell olhava para o homem como se não tivesse medo do perigo que nos cercava.

O bando tinha cerca de quinze homens bem armados, foi fácil para eles dominarem os três vigias que faziam a guarda da caravana. De diligência em diligência passaram em busca de bens de valor. Dois deles chegaram a nossa carroça mandando meu pai descarregar tudo. Eu consegui ver os dois e percebi que eram iguais, até as roupas que vestiam eram iguais: irmãos gêmeos. Soube por sussurros de outros viajantes que eram os irmãos Ford, fugitivos muito perigosos.

Meu pai arrastou o nosso baú para fora de modo que continuei escondida, ele me dizia palavras de conforto, Fiona estava com medo, mas eu não. Ficamos olhando eles mexerem no baú velho, um exibiu cara de descontentamento já que não encontrou nada de grande valia.

Quando terminaram de revirar nossa bagagem se dirigiram até onde Hersell estava, era a última carroça a ser vasculhada, até por que o velho sempre vinha no final da caravana como se quisesse ficar afastado de todos.

A neve começou a cair anunciando a noite que chegaria em breve junto com uma nevasca. Meu pai ficou ao lado de minha mãe enquanto ela chorava baixo apertando um antigo terço, não sei bem se era choro ou alguma reza das que costumava fazer sempre.

– Desça dai velho e me mostre o que tem escondido ai – um dos gêmeos disse apontando o rifle, Hersell parecia inflexível.

– Eu não tenho nada de valor, meus senhores eu estou apenas indo para o norte para buscar uma cura para meu filho, ele ainda está na casa de minha mãe no sul – Hersell falou pausadamente, mas em vão, mal acabou de dizer isso e o homem puxou as lonas deixando o crucifixo à amostra. O brilho parecia maior que antes, a prata tinha detalhes em ouro.

– Olha que belezura! Estava escondendo da gente, miserável? – puxou para si o objeto – Oh! O que temos aqui, hein? – ele se referia ao caixão que agora descoberto não parecia tão assustador como naquela noite. Hersell puxou um revólver que estava escondido dentro de seu sobretudo, mas não foi rápido o suficiente para dar um tiro, ele foi alvejado pelo homem do chapéu que acompanhava tudo em cima do cavalo.

O corpo do velho caiu vagarosamente sobre a neve. Herssell caído berrou:

– Seus canalhas! Vocês não compreendem?! Nós todos vamos morrer! – nesse momento ele ergueu sua cabeça em direção aos meus pais – corram o quanto puderem para longe daqui! – meu pai até tentou, mas temia ser alvejado também, ficaram imóveis.

O homem do chapéu deu um pisão nas costas de Hersell.

– Abram aquilo! – ordenou aos gêmeos.

Os dois homens puxaram sem nenhum zelo o caixão deixando-o cair, com um pé de cabra abriram.

– Que diabos é isso?! – disse um deles arregalando os olhos.

Algo rugiu dentro do caixão, uma fumaça subiu enquanto o homem se afastava tentado engatilhar o revólver, suas mãos tremiam. O homem do chapéu aproximou-se do caixão, seu cavalo relinchava com medo de algo que ninguém ali compreendia. Num movimento repentino, o cavalo derrubou o homem do chapéu surgindo uma cabeça alva. Nesse momento os gêmeos miraram no caixão e abriram fogo. Eu não sei explicar bem o que ocorreu naquele final de dia, pois estava tremendo de medo agarrada com Fiona, apenas fechei os olhos quando algo pulou de dentro do caixão e caiu em cima dos gêmeos. Gritos ecoaram na imensidão daquele deserto gélido que agora parecia querer nos engolir com a nevasca.

Lembro-me que meu pai tomou as rédeas da diligência e tentou fugir dali, mas o caos já tinha se instalado em toda a caravana, gritos e mais gritos, ouviam-se tiros também, não sei o fim daqueles homens, nem mesmo do velho Hersell, que bem provavelmente agora estaria coberto de neve. Minha mãe ficou ao meu lado me abraçando, senti o terço apertando meu braço, Fiona também me abraçava.

Os cavalos espantados fugiram ao controle de meu pai, acabamos nos chocando com algum rochedo o que fez com que a roda se partisse. Com uma roda a menos andamos ainda uns cem metros até os cavalos conseguirem se soltar.

– Vo-vocês estão bem? – perguntou meu pai ainda tremendo. Meneei um sim com a cabeça, minha mãe respondeu com um sim em meio a soluços.

***

De onde estávamos não era mais possível ouvir os gritos, ou todos estariam mortos ou o som sucumbiu à nevasca que impedia o som com seu uivo gelado. A escuridão chegou sorrateira, meu pai conseguiu fazer uma pequena fogueira, mas estava receoso se isso não atrairia aquilo até ali. Mais calmo tentou nos contar o que chegou a ver: um animal pulou de dentro do caixão e matou os gêmeos e o careca que usava o chapéu, depois correu na direção dos outros, as balas não o pararam. O que restou a fazer foi fugir.

Antes de tentar dormir meu pai teve de apagar o fogo, ficamos os três juntos na carroça. O assovio da nevasca era prenúncio de morte, soube mais tarde.

Eu acordei com um grito, estava sozinha debaixo das cobertas, tentei procurar Fiona, mas até ela tinha me abandonado. Gritei por meu pai, por minha mãe, mas nada, nenhuma resposta. Aproximei-me da saída onde o vento balançava violentamente o forro da diligência. Nesse momento olhei para trás e vi olhos vermelhos a me vigiar.

O pequeno lampião pendurado próximo onde eu estava não tinha luz suficiente para iluminar aquele ser, eu sabia do que se tratava: era aquilo que estava no caixão do velho. Eu tentei me mover para fugir, petrificada de medo, minhas juntas pareciam ferrolhos antigos de portão que não se abria nem mesmo com o melhor óleo. Sei que não gritei, também não tinha voz para isso, minha garganta estava seca.

O ser agarrou-me enfiando seus dentes em meu pescoço, eu senti que sugava minha vida, o frio parecia aumentar, a morte me espreitava, o som melancólico da neve caindo foi quebrado com um grito:

– Luke, eu sou seu pai! Deixe a garota!

A besta me soltou e virou-se para seu interlocutor: era Hersell. Eu cai com um sorriso no rosto.

– Pai? Você me trancou naquele caixão por anos, deixou-me com fome até minha pele encostar-se aos meus ossos, agora você quer que eu te chame de pai?

Luke, pelo menos assim foi chamado pelo velho, saltou na direção de Hersell que se esquivou e cravou nas costas, no lado do coração, a cruz de prata, a fera soltou um grunhido estridente e caiu na neve.

Eu adormeci.

***

O balançar da carroça me fez acordar, o dia surgia tímido por entre as árvores cobertas de neve. Hersell sentado à minha frente guiava os cavalos. Sentei-me ao seu lado sem dizer uma palavra, ele sorriu tirando algo do sobretudo: Fiona. Ela agora tinha perdido o outro braço, agarrei-a e apertei-a forte.

Reparei que o velho estava muito ferido devido ao tiro que recebera. O sangue ainda estava em seu sobretudo, sangue, eu senti algo dentro de mim, algo que carrego até hoje.

***

Saiu nos jornais que uma nevasca atingiu uma caravana e no meio da noite, lobos mataram a todos. Também foi encontrado próximo ao povoado um cadáver de um senhor abraçado a uma velha boneca, uma boneca sem os braços.

Fim

TEMA: INVERNO