O ESPELHO DO PORÃO - parte 3 e 4

PRIMEIRO REFLEXO

No dia seguinte, os amigos se encontram após a aula para falar sobre se reunirem na casa de Elizabeth para pesquisa. Tomás, Douglas e Adriana não puderam ir por motivos diversos. Apenas Renata se prontificou. Deram a ideia de marcar para outro dia, um que todos pudessem participar, mas Renata insistiu em visitar a casa da amiga, já que nunca foram convidados para lá.

- Vai ser ótimo, amiga! Você vai amar minha casa. – disse Elizabeth.

-Mal posso esperar, Beth.- respondeu Renata, entusiasmada. - Eu serei a primeira a desbravar seu quarto antes de todas as outras meninas.

Ao se despedirem, Tomás foi até a moça e lhe pediu desculpas, mesmo que em sua mente ele não tivesse feito nada de errado. Subitamente, ele ganhou um beijo em seus lábios.

- B.. Be... Bet... Beth... Eu...

- Perdoado, bobinho.

O grupo todo ficou atônito com a cena e, entre rostos que coraram e olhares para o chão, eles se despedem sem mencionar muito o ocorrido.

- Amiga – disse Renata – depois das 18h?

- Isso. Te aguardo lá. Deixa que eu mesma pago seu táxi.

Renata despontava na estrada, onde foi rapidamente atendida pela amiga que a esperava ansiosamente. Após pagar seu táxi, elas foram entrando no pequeno sítio.

-Menina, aqui pega internet?

- Vem – disse sem dar muita atenção à pergunta da amiga – quero te mostrar minha casa. Ah, não ligue se não vir meus pais hoje, está bem?

A entrada da casa era repleta de velas, candeeiros e lampiões, que davam um tom forte às sombras onde as luzes não batiam. Renata percebeu que a casa estava muito silenciosa e sentiu um pequeno desconforto.

A amiga olhou fixo nos olhos dela e, com um sorriso levemente ameaçador, disse:

- Quer ver meu quarto, Rê?

- Ora... Vamos né... Foi pra isso que vim.

Enquanto subiam as escadas, Renata pensava na matéria complexa que precisava estudar e, ao mesmo tempo, absorta com os corredores daquela casa, onde não havia tapete vermelho, o que tirava o aspecto de hotel, mas não removia de sua mente o símbolo assombroso de casa mal assombrada.

- Beth, você nunca nos falou de sua família, de sua casa... Você sempre foi muito reservada quanto a isso. Sinto-me privilegiada de ser a primeira a entrar aqui e...

- Miga! Você já olhou muito tempo pra um espelho? – interrompeu solenemente.

- Já, Beth. É óbvio. Quem nunca se olhou num espelho?

- Mas... – de costas pra Renata, o dialogo prosseguiu –... Já ficou por mais de 5 minutos se olhando no espelho num ambiente fechado e à noite?

Renata imediatamente se perturba com a conversa:

- Amiga? Do que está falando? Você tá bem?

Ela se vira para Renata com uma expressão triste:

- Me sinto só... Me dá um abraço?

Renata abraçou a amiga, que a apertava forte em sua caixa torácica, sentindo suas mãos suarem.

- Desculpe. É que meus pais enfiavam muita coisa na nossa cabeça quando pequena. Vem, quero te mostrar meu quarto.

Elas adentram o quarto, e Renata se jogou na cama grande que havia naquele espaço enorme.

- Mulher, isso é que é vida! Olha, antes que esqueça, eu trouxe os livros pra pesquisarmos, porque vai que não pega internet aqui, né – brincou a amiga.

- Ai que bom. Fica pesquisando aí rapidinho que eu vou preparar alguma coisa pra nós duas comermos.

- Eu vou ficar sozinha aqui?

- Você não está só. Estamos nós duas na casa, ué. – ela fecha a porta e Renata ouve a passar pelo corredor cantando.

Renata sempre foi aplicada aos estudos. O Transtorno Dissociativo de Personalidade foi a matéria que mais chamou sua atenção. Como era possível que uma pessoa tivesse mais de uma identidade ao mesmo tempo? O que gerava essas possibilidades? Quais traumas?

Renata percebeu que no quarto de Elizabeth tinha um espelho no seu guarda-roupa. Ela foi se aproximando lentamente e ficou vendo as maquiagens e algumas coisas bagunçadas de Beth, inclusive fotos com os pais. Podia ver o brilho do seu sorriso em cada uma.

No guarda roupa, uma gaveta com cadeado. Renata se perguntou o que seria. Então, com base nas tantas ideias malucas da amiga, decidiu ficar olhando o espelho. Não tinha nada de mais.

Penteou seus cabelos, tirou uma espinha ou outra, e ficou se admirando diante de seu reflexo juvenil.

De repente, percebeu que o espelho tinha uma moldura frouxa. Quando tocara na moldura, Elizabeth já estava atrás dela, sem que ela percebesse, com um olhar tenso e um sorriso nos lábio. Seus cabelos cacheados caídos no ombro e dois lanches num prato.

- Menina, que susto! Você tem algodão nos pés? Nem percebi que você chegou!

- Eu sei – sorriu – você encontrou alguma coisa de interessante nos livros?

As duas foram até a grande cama de Beth e continuaram a pesquisa. Renata, enquanto explicava o que havia entendido da matéria para a amiga, não deixava de reparar que, de vez em quando, a moça olhava de canto de olho para o espelho do guarda-roupa com um ar de incômodo...

Continua...

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Renata, incomodada com o jeito da amiga, a pergunta:

- Amiga, que tanto você olha para aquele espelho?

- Olha, Rê – falou com voz baixa – você já se olhou no espelho em um lugar escuro?

- De novo essa história? Por que tanto pergunta isso?

- Eu preciso te confessar algo. Promete que não vai rir?

- Dou minha palavra.

- Eu tenho medo de ficar me olhando demais no espelho à noite.

- Ok! Viu, como não doeu me contar? Agora me diz o motivo.

- Por causa do que estou te falando. E essa matéria que estamos estudando já ajuda minha teoria. Que é diferente da dos meus pais.

- Beth! Alguém já te disse que lendas urbanas são apenas o que o nome já diz: lendas?

- Eu sei. Mas isso acontece diferente aqui em casa. Posso te provar.

- O que seus pais diziam?

- O espelho tem acesso a outros universos e etc. Já eu acredito que...

- Fala mulher! Acredita que...?

- Nossa outra personalidade está lá. Mas numa versão maligna.

- Olha, Beth, não sei o que você andou bebendo nesse final de ano, mas me dá que eu quero. Deve ser a maior viagem.

- Se eu puder provar?

- Como?

- Contanto que você prometa que não vai contar pra ninguém.

- Eu juro, amiga – ela cruza os dedos nas costas.

- Para - disse sem rir – eu falo sério. Promete não contar para ninguém?

- Ai. Tá bom. Prometo.

Elas continuam estudando. Uma chuva forte se aproximava e o dia já se escurecia por completo. Renata iria embora dentro do horário marcado com seu namorado que iria buscá-la às 21h00. Ela percebeu que o rosto de sua amiga estava se transfigurando em algo mais sombrio. Um sorriso, de vez em quando, despontava da sua face, cobrindo seu rosto com os cachos negros e vivos:

- Amiga, já está tarde. Vou esperar meu namorado lá na porta da entrada do seu sítio. Muito obrigada por me deixar te visitar. Manda um abraço para seus pais.

- Espera. Você disse que não contaria para ninguém. Quero te mostrar que minha teoria está certa.

Ela pegou a mão de Renata, que começou a ficar receosa. O barulho da chuva fora era forte, os trovões e raios iluminavam todo o céu e terra junto de seus barulhos ensurdecedores, e as velas, que foram apagadas pela força do vento que entrava pelas janelas, revelavam que aquela casa, para Renata, não era o melhor lugar para estar.

Renata, segurada pela mão da amiga que, aos seus olhos, não era a mesma que conheceu na Universidade. Queria questionar, mas a mescla de medo e curiosidade fez com que seu espírito lhe silenciasse os lábios.

Ao descerem os degraus escuros e úmidos daquele lugar inóspito, iluminado apenas pelo candeeiro que seguravam, Renata soltou a mão da amiga:

- Beth! Que lugar é esse? Por que aqui não tem luz nenhuma? Que papo é esse de espelhos? Eu tenho que ir pra casa!

- Calma – disse a amiga com voz baixa e grave – só quero lhe mostrar isso. Preciso superar meu medo de espelhos com você. Ajude-me, por favor.

- Tudo bem – Renata termina de descer os degraus que tinha voltado. – O que quer me mostrar nesse lugar horrível?

O candeeiro aceso foi posto no chão, e Renata viu quando um grande pano branco foi removido daquela parede e o espelho oval e imenso apareceu:

- Consegue se olhar no espelho por dois minutos, Rê? Eu não consigo. Penso que tem alguém me observando.

Renata ficou mais calma quando percebe que é apenas um espelho velho. Se aproximou dele e ficou olhando para seu reflexo:

- É disso que você tem medo? Que boba. Calma, amiga. Está vendo que é só um espelho? Tá com medo do “fantasma do espelho” puxar seu cabelo quando estiver penteando ele?

Ela se aproxima segurando a mão da amiga:

- Veja só. Pode olhar. Não tenha medo. É apenas o seu reflexo nesse ve...

Renata emudeceu quando, num trovejar mais forte, o brilho de um relâmpago iluminou o cômodo e ela percebeu que, além dos dois reflexos, dela e de Elizabeth, surge mais um ser, idêntico a Beth, com as mesmas roupas, mas uma expressão de morte no olhar, e com o rosto mais pálido e magro, cabelos negros cacheados e com as mãos grudadas no espelho como se gritasse por ajuda.

Renata deu um grito, e tropeçou no candeeiro, que estava no chão, ao se afastar de súbito do espelho. Naquele escuro, ouviu-se apenas uma voz antes de desmaiar:

- Vem cá... nos faça companhia... nos ajude...

Continua...

Leandro Severo da Silva e Revisão e edição: Mariel F. Santolia
Enviado por Leandro Severo da Silva em 21/06/2019
Reeditado em 20/08/2019
Código do texto: T6677922
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