Ela abriu os olhos e contemplou a escuridão absoluta à sua volta. Tateou em busca do interruptor do abajur. A luz intensa a cegou por alguns segundos e, quando ela voltou a enxergar, deparou-se com aqueles olhos vítreos e sem vida que a observavam. Sentiu o coração disparar e um calafrio percorreu seu corpo, mas conseguiu segurar o grito.

Aquilo tinha que parar antes que ela enlouquecesse.


 (...)

- Doutora a senhora tem certeza? – insistiu enquanto roía a unha do polegar.

- Como eu disse, não vejo qualquer sinal de distúrbio psicológico – afirmou com convicção.

- Mas essa mania que ela tem... e ela só tem sete anos... – tentou argumentar enquanto observava, através da janela de vidro, a menina sentada há alguns metros fingindo não perceber que falavam sobre ela.

- É apenas uma garotinha com muita imaginação, talvez impressionada com algo que viu na TV. Nada mais. – sentenciou a médica, dando a questão por encerrada.

Ela não discordou, não queria parecer uma daquelas mães histéricas, mas a verdade é que não estava totalmente convencida. Luíza quase nunca via TV, não se interessava pelos programas e desenhos que as outras crianças de sua idade costumavam adorar, além disso, se por acaso tivesse realmente visto algo que a tivesse impressionado o normal não seria ela estar com medo?

Mãe e filha caminharam pelo estacionamento em silêncio sob um céu límpido e brilhante. Luíza agarrada a uma de suas bonecqas, seguia alguns passos atrás da mãe a beira de um ataque de nervos.

Já dentro carro, a mulher respirou fundo, girou a chave e acelerou tentando pensar com calma. Dirigir sempre a ajudava a por os pensamentos em ordem.


- Então Luíza, me conte como foi a conversa com a doutora - pediu empregando à voz toda a tranquilidade que conseguiu reunir.

- Foi bem mamãe - respondeu a menina enquanto acariciava os cabelos loiros da boneca.

- Hum... E sobre o que vocês conversaram?

Não houve resposta.

- Vamos, me diga, sobre o que vocês falaram? - insistiu deixando um pouco da irritação nascente transparecer em sua voz mais do que desejava.

- Sobre várias coisas, mamãe - respondeu a menina lacônica.

- Várias coisas... Como o que, por exemplo?

Depois de um longo silêncio, Luíza respondeu: - Ela disse que poderia ser um segredo entre nós e que eu não preciso falar disso com ninguém se eu não quiser.

Diante daquela resposta, a mãe parou o carro de forma abrupta estacionando no acostamento, os veículos que vinham atrás buzinaram numa cacofonia de sons agudos e xingamentos que ela ignorou enquanto soltava o cinto de segurança e virava-se para a filha, então, agarrou-a pelos ombros e aproximou seu rosto do dela.

- Bom, se você não quer me contar seus segredos então eu vou te explicar uma coisa. A partir de hoje você vai parar com essa mania de espalhar essas malditas bonecas pela casa toda, você me entendendo? Eu não quero mais acordar e dar de cara com uma boneca me olhando, não quero abrir meu guarda-roupas e levar um puta susto porque tem uma maldita boneca lá de dentro... chega disso, você está me entendendo? Chega! - gritou enquanto agitava o pequeno corpo de Luíza com força.

- Mamãe você está me machucando! - choramingou a menina assustada.

- Me responda, você está entendendo? – a mulher gritou ainda mais alto.

- Mas mamãe... – a menina tentou falar engasgando em meio a uma crise de choro.

- Para com isso Luíza! Para! Entenda de uma vez que você não vê através dos olhos das suas bonecas e não há nenhuma sombra, ou seja, lá como você chama, morando em nossa casa! Você me entendeu? Diga que você me entendeu! – seus gritos começaram a atrair a atenção das pessoas que transitavam por ali, mas ela não se importou.

A menina com os olhos cheios de lágrimas concordou com um mover de cabeça e a mulher, num movimento súbito, arrancou a boneca de suas mãos e a jogou com violência no banco de trás do carro.
 

(...)

- Olá minha princesa - ver a filha sempre fazia Otávio sorrir.

- Olá papai! – a menina respondeu assim que viu o pai e, correndo em sua direção, pulou em seu colo e lhe deu um beijo.

- Estava com saudade?

- Muita saudade! - exclamou a menina ainda grudada ao pai. A mãe observando sem dizer nada.

- Vamos Luíza, vá buscar a sua mala, seu pai deve estar com pressa - ordenou a mulher depois de alguns segundos e a menina obediente correu em direção ao quarto.

- Vanessa, era mesmo necessário levá-la a um psiquiatra? – Otávio perguntou sem rodeios.

- Claro que sim - respondeu enquanto acendia um cigarro.

- Ela tem só sete anos, o que pode ser tão assustador? E você não devia fumar dentro de casa - criticou.

- Só lembrando que a casa é minha, certo? E você não vive aqui, não vê o que eu vejo todo dia. Essas malditas bonecas espalhadas pela casa toda, sempre... sempre me vigiando.

- Por Deus Vanessa, são só bonecas!

- Pra você pode parecer que são apenas bonecas, não é você que tem que conviver com uma criança que acredita que vê através dos olhos delas e fica espalhando essas coisas pela casa para que a sombra não nos pegue! - disse isso fazendo sinal de aspas no ar e em seguida apagou o cigarro sem fumá-lo, claramente alterada.

- Crianças tem imaginação Vanessa... – o homem tentou argumentar pressentindo mais uma discussão sem sentido.

- Crianças tem imaginação com fadas, princesas, unicórnios, não com sombras... Sabe o que eu acho de verdade? Eu acho que ela herdou a loucura da sua mãe.

Otávio ia responder à provocação, mas viu que Luíza já estava na porta e ouvia a conversa, então engoliu a resposta e sorriu.

- Vamos princesa, senão vamos nos atrasar para o cinema e não vamos conseguir sentar nas nossas poltronas preferidas.

A menina caminhou até a mãe, esticou-se na ponta dos pés para alcançar seu rosto e lhe deu um beijo de despedida: - Tchau mamãe. Eu te amo.

- Não vai levar uma de suas bonecas, querida? - perguntou o pai, reparando que a filha não tinha nas mãos nenhuma de suas bonecas.

- É que a mamãe guardou todas no sótão - explicou com certa tristeza.

- Então teremos que comprar uma nova no shopping, pode ir para o carro que o papai já te alcança, ? - disse ele observando a menina se afastar e quando teve certeza de que a filha não poderia ouvi-lo falou - Talvez você devesse voltar a trabalhar, o que acha? Eu poderia ficar com a Luíza, não precisa ser apenas nos finais de semana e você poderia retomar sua carreira - sugeriu.

- Trabalhar porque se eu tenho você para me sustentar?
 

(...)

O som de uma gargalhada infantil a despertou. Sentia a cabeça pesada pelo excesso de bebida. A casa estava escura e a única luz vinha da TV ainda ligada e fora do ar. A tela cinza zumbia o som da estática e por um breve momento ela pensou que Luíza ainda estava acordada e que era ela quem havia rido, só então se lembrou de que estava sozinha em casa e disse para si mesma que aquilo havia sido apenas um sonho.

Pegou o controle para mudar o canal, mas a pilha devia estar fraca porque mesmo apertando os botões com força a tela continuou cinza. Levantou-se rápido demais e sentiu uma forte vertigem. Teve que se apoiar no braço do sofá para não cair.

- Estou bêbada - pensou enquanto tentava chegar até o interruptor, mas as luzes não acenderam. Ela sentiu o álcool dançar em seu estomago e um segundo depois vomitou parte do vinho que havia bebido ali mesmo, manchando o tapete de vermelho. O cheiro azedo aumentou a náusea que sentia obrigando-a a correr em direção ao banheiro onde terminou de expulsar tudo que ainda havia em seu estomago.

Com alguma dificuldade e sentindo-se fraca levantou-se e ligou o chuveiro. O jato de água gelada a fez se sentir melhor. Desfrutava do alívio que a água sempre tem para oferecer, quando ouviu novamente o som daquela risada que agora parecia ecoar dentro de sua cabeça.

- Deve ser alguma daquelas malditas bonecas... - disse para si mesma apesar da certeza de que havia guardado todas no sótão. Mas eram tantas as bonecas de Luíza que era bem possível que alguma tivesse ficado para trás.

Mudou a temperatura do chuveiro e os vidros do banheiro logo ficaram embaçados por causa do vapor. A água quente escorria por seu corpo fazendo-a relaxar. Ela tocou a cicatriz no ventre e se lembrou do parto. Tinha sido horrível. Nunca sentira tanta dor na vida e o sonho de ter um parto natural se transformara rapidamente em pesadelo quando os médicos perceberam que ela nunca atingiria a dilatação necessária e que a criança já estava em estado de sofrimento fetal.

Tudo aconteceu rápido demais e Otávio não conseguiu chegar a tempo para lhe fazer companhia, segurar sua mão e lhe dizer que tudo ficaria bem. Quando tiraram a pequena Luíza de dentro dela, a menina não chorou e ela teve a certeza de que o pior havia acontecido. Não sentiu tristeza, na realidade, sentiu-se aliviada, afinal, aquele era o sonho de Otávio, não dela. Após alguns minutos, colocaram a criança em seus braços e, mesmo depois de ver que suas perninhas e bracinhos se agitavam no ar, a ausência do choro tão esperado que anunciava a chegada de uma nova vida foi o ponto final de um momento completamente frustrante.

- Diferente desde o começo – pensou.

Ela sabia que não seria fácil cuidar de um bebê e estava preparada para as noites sem dormir, as mamadeiras, as fraldas e para ficar por um longo tempo longe do escritório e do trabalho que tanto amava. Só não estava preparada para aquilo. Aquela menina que nunca chorava e que passava a noite acordada com seus pequenos olhinhos castanhos a observar tudo. Todos diziam que uma criança tão calma daquele jeito era uma benção, mas ela sentia que havia algo de errado com a menina.

Tentou conversar sobre o assunto com Otávio, mas ele estava tão completamente apaixonado pela filha que não conseguia ver as coisas como ela via. Acabou sendo acusada por ele de estar com ciúmes do amor e carinho que ele e toda a família dedicavam à menina e aquilo foi o que mais lhe doeu.

Não demorou para que começasse a se afastar da filha. Já não a amamentava, não trocava suas fraldas, não acordava durante a noite para ver como ela estava e acabou por deixar tudo a cargo da babá, de sua sogra Francisca que, apesar daquele jeitinho angelical, sempre fora uma intrometida dissimulada se fingindo de depressiva para chamar a atenção do filho, e de Otávio.

Luíza ainda não havia completado três meses quando ela decidiu voltar ao trabalho. Todos os dias, ficava até muito tarde no escritório, apesar de não conseguir mais desenvolver os projetos arquitetônicos tão originais que tinham feito seu nome conhecido pelas construções elegantes e sofisticadas. Foi então que começou a beber antes de voltar para casa. Vinho era a única coisa que a fazia se sentir bem e a ajudava a esquecer daquela pequena criatura que parecia ter quebrado algo dentro dela e arruinado a sua vida de uma forma irreversível.

Seu casamento começou a esfriar até que certa noite, após beber demais, chegou em casa muito tarde e encontrou Otávio e Francisca sentados no sofá, os olhos inquisitivos e acusadores voltados para ela.

- Hoje era seu dia de ficar com a Luíza - disse Otávio sem sequer cumprimenta-la, a voz calma apesar de toda a raiva que sentia.

- Ah... eu me esqueci, mas tenho certeza de que Francisca estava aqui o tempo todo, não estava? - Respondeu sem disfarçar o cinismo enquanto se jogava no sofá tirando os sapatos de salto alto.

- Minha mãe tinha consulta hoje. Eu te avisei faz uma semana e tenho te lembrado disso todos os dias, inclusive hoje pela manhã e você confirmou que não se atrasaria – explicou com a voz calma tentando se controlar.

- Ah! Francisca, me perdoe por fazer você perder sua visita rotineira ao psiquiatra – declarou de forma afetada e fingindo arrependimento. Francisca não respondeu. Apenas se levantou, desejou boa noite à nora, beijou o filho na testa e caminhou em direção à porta.

- Você poderia ter levado a Luíza junto com você na consulta Francisca, assim talvez o médico descobrisse o que essa criaturinha tem, talvez seja genético, não acha?

Aquilo foi demais para Otávio. Ele nunca tinha sido violento, nunca tinha perdido a paciência, mas naquela hora ele se levantou e se lançou em direção à esposa dando-lhe um tapa com força no rosto. Aquele foi o fim do casamento e a garantia de que ela ficaria com a guarda da menina e com a gorda pensão que a mantinha agora.

A lembrança daquela noite foi interrompida pelo som persistente da risada infantil e artificial que vinha de algum lugar na casa. Era assustador e Vanessa sabia que não conseguiria passar a noite com aquele som em sua mente. Tinha que achar a maldita boneca e trancá-la no sótão juntamente com todas as outras.

(...)

Aquilo tinha começado há poucos meses. Luiza sempre havia gostado de bonecas e desde que seus bracinhos tiveram força suficiente para carregar aqueles bebês artificiais, o pai e a Avó não se cansavam de enchê-la de bonecas de todos os tipos. Isso nunca havia incomodado Vanessa que via naquilo apenas mais um sinal de que ela e a filha nada tinham em comum. A menina obviamente cresceria para um dia se tornar mãe e ela não poderia fazer nada para mudar aquele instinto maternal que havia aflorado desde muito cedo. Então a menina começou com aquela mania irritante de deixar suas bonecas – que ela conhecia pelo nome -, espalhadas pela casa, estragando a decoração,. Vanessa determinou que as bonecas não saíssem mais do quarto e foi a primeira vez que Luíza desobedeceu uma ordem sua. Não importava o quanto Vanessa gritasse ou ameaçasse, ela continuava encontrando as malditas bonecas em lugares cada vez mais inusitados, até que, certa manhã, quase teve um colapso nervoso ao abrir o baú onde guardava seus grossos casacos de inverno e dar de cara com aqueles olhos pequenos e brilhantes que pareciam ver dentro dela, como se pudessem enxergar algo que ninguém mais via.

Dede então, a situação saiu totalmente de seu controle, e quando Vanessa tentou tomar medidas drásticas foi à vez de Luíza ter uma crise de nervos gritando e implorando para que a mãe não levasse suas bonecas. Em meio ao choro descontrolado, a menina explicou que ela precisava das bonecas para manter a mãe em segurança, para poder vigiá-la e protegê-la da Sombra que vivia na casa e que estava prestes a atacá-la. Vanessa não teve reação diante da atitude da filha sempre tão calma e contida e, para piorar a situação, Otávio e Francisca chegaram no extado momento em que a menina chorava como se tivesse levado uma surra. Enquanto Francisca levava a menina para o carro, Otávio tentava entender o que havia acontecido, mas naquele momento, Vanessa não soube o que dizer.


Nunca se acostumaria com os olhos daquelas malditas bonecas espalhadas por todos os lados, mas, como Otávio mesmo havia dito, eram apenas bonecas e ela não podia ficar ali sentada durante a noite toda esperando o silêncio voltar.

Vestiu o roupão macio e encarou a casa completamente escura. Testou todos os interruptores que encontrou, mas, por algum motivo, as luzes se recusavam a acender. Ainda assim, continuou em direção ao quarto de Luíza e, quanto mais se aproximava, mais certa ficava de que o som vinha lá de dentro. A espertinha tinha conseguido manter alguma de suas bonecas escondida.

Segurou a maçaneta da porta com força e assim que sentiu o trinco girando o som da risada estridente ecoou alto e, em seguida, silenciou. Repentinamente, todas as luzes da casa se acenderam ao mesmo tempo em que as TVs, aparelhos de som, micro-ondas, liquidificador, batedeira e todos os demais equipamentos eletrônicos foram acionados, produzindo uma algazarra ainda mais perturbadora do que aquela risada maldita.

- Mas que merda é essa? – gritou enquanto tapava os ouvidos com as mãos.
 

(...)

Após a inércia inicial provocada pelo susto, Vanessa começou a andar pela casa desligando todos aqueles equipamentos e se perguntando o que diabos poderia ter acontecido. Conhecia cada canto daquela casa assim como conhecia seu próprio corpo, afinal, ela mesma a havia projetado em seus anos de maior inspiração, e não se lembrava de alguma vez ter tido problemas na rede elétrica ou em qualquer outro aspecto daquela construção imponente.

Aquela casa era seu orgulho. Sua obra-prima. Tinha sido projetada para a vida que ela havia sonhado e ocupava um enorme terreno na parte mais alta do melhor bairro da cidade. À noite, quando todas as suas luzes estavam acessas, a casa podia ser vista de longe.

Suas paredes eram, na maioria, feitas de vidro temperado, o que levou Otávio a questionar se aquilo não comprometeria a privacidade da família, mas, quando com um toque de dedos, ela acionou o equipamento que fez a cortina descer, o noivo aplaudiu e assobiou aprovando o espetáculo. Sempre imaginou que os vizinhos olhariam com inveja para aquela casa e para sua família, agora, no entanto, sabia que a olhavam com desdém e que ela era alvo de fofocas e comentários maldosos, o que a deixava profundamente frustrada. Sempre que pensava sobre o assunto tinha certeza de que de alguma forma Luíza era a responsável por tudo aquilo.

A risada sonora voltou a ecoar pelos corredores da casa. Aquilo estava começando a abalar seu estado de espírito. Foi até o banheiro e tomou dois comprimidos para relaxar. Ah! Aqueles calmantes e as garrafas de vinho eram sua única fonte de prazer. Não havia conseguido se relacionar com outros homens após o fim de seu casamento e, apesar da raiva que ainda a consumia, sentia saudades de Otávio, do seu sorriso fácil, da sua voz encantadora, do seu jeito gentil e do seu bom gosto. Se não fosse por Luíza, sua vida teria sido perfeita e agora aquela risada absurda fazia com que a menina, mesmo estando longe, conseguisse atormentá-la.

Foi novamente até o quarto e hesitou por um instante antes de abrir a porta temendo que todos os aparelhos enlouquecessem outra vez como se houvesse alguma absurda ligação entre a maçaneta e a rede elétrica da casa, mas, quando a porta se abriu, a casa continuou em silêncio.

Ela revirou cada canto do quarto, armários, cama, ursos de pelúcia, roupas, em busca da boneca que gargalhava, sem a encontrar. Saiu dalli e a
ndou por todos os cômodos, abriu armários, guarda-roupas, olhou embaixo das mesas e dos sofás. Cansada daquele joguinho de gato e rato resolveu abrir outra garrafa de vinho e jogar-se novamente no sofá para ver TV.

O ambiente ainda cheirava à vômito e a TV contiuava fora do ar, então ela pegou o controle e postou-se em pé em frente à enorme tela, deu algumas batidinhas de leve até que o equipamento voltou a funcionar. Escolheu um canal com programas sobre moda, serviu uma taça de vinho, sentou-se no sofá e puxou a manta sobre os pés. Mas sua paz durou poucos minutos. Seu coração falhou por alguns instantes quando, ao ouvir a risada tão próxima a seu ouvido, virou-se para se deparar com uma boneca sentada ao seu lado, a cabeça voltada para ela olhando fixamente em sua direção.
 

(...)

Passado o primeiro momento de pavor, Vanessa agarrou a boneca pelos cabelos e seguiu em direção ao sótão, não sabia explicar como Luíza havia conseguido deixar uma daquelas malditas bonecas ali para vigiá-la, a menina era mesmo um diabinho disfarçado de anjo, talvez quisesse enlouquece-la ou convencer a mãe a deixar que ela fosse viver com o pai e a avó, que faziam todas as suas vontades. Mas ela não deixaria aquilo acontecer, perder a pensão que recebia pela guarda da filha estava fora de cogitação.

Enquanto caminhava, percebeu que seus reflexos estavam mais lentos do que o normal, talvez fosse culpa de todo o vinho que havia tomado. Com certa dificuldade conseguiu puxar o alçapão que levava ao cômodo sobre a garagem, a escada presa à pequena porta deslizou rápido chocando-se ao chão com estrondo e por poucos centímetros não atingiu os pés de Vanessa. Ela galgou os degraus com pressa e ao chegar ao topo sentiu-se estranha, o peito ofegante por aquele pequeno esforço era desmedido. Tateou a parede em busca do interruptor e quando a claridade amarelo-pálida inundou o ambiente ela sentiu-se congelar.

Não havia nada ali, apenas um quarto espaçoso e vazio. Nenhuma das dezenas de bonecas de Luíza que ela havia guardado ali no dia anterior estava lá. Aquela cena a atordoou. Foi dominada por uma forte vertigem que a obrigou a sentar-se e só se deu conta de que ainda trazia uma boneca em suas mãos quando a gargalhada sonora explodiu no ar. Assustada, lançou a boneca com força em direção à parede, fazendo com que braços, pernas e cabeça se separassem e, no momento em que aquela que parecia ser a única boneca de Luíza que restara na casa se desmanchou, Vanessa viu uma sombra grotesca e disforme se formado em uma das paredes.

A sombra de um negror profundo e opaco cresceu até alcançar o teto e então deslizou em sua direção.

Apavorada, Vanessa tentou descer os degraus o mais rápido que podia, suas pernas se embaralharam fazendo-a perder o equilíbrio e cair pelos dois metros que separavam o pé direito do chão. A cabeça bateu com força no chão e o mundo inclinou-se para a direita, voltou ao prumo e novamente inclinou-se para a esquerda, perdendo todas as suas cores. O silêncio se tornou absoluto e, antes de perder a cosnciência, Vanessa viu que a Sombra havia se desprendido da parede e a observava do alto da escada.

Quando voltou a si, lágrimas quentes e salgadas brotaram de seus olhos, sentiu a dor que se espalhava por todo seu corpo. Em sua mente aprisionada, pensamentos desconexos brincavam como crianças barulhentas. Ela gritou por socorro quando viu que a Sombra se aproximava, mas nenhum som saiu de sua garganta enquanto a escuridão envolvia seu corpo e invadia sua alma.
 

(...)

Vanessa foi encontrada por Otávio na manhã seguinte, caída no chão da cozinha. Pela casa, garrafas de vinho vazias estavam espalhadas por todos os cantos, assim como as dezenas de bonecas de Luíza, todas elas com os olhos perfurados.

Enquanto os paramédicos levavam a mulher em coma, Luiza soltou a mão de Otávio e aproximou-se da mãe desacordada, tocou seus cabelos com carinho e sussurrou algumas palavras em seu ouvido.

À distância, Otávio não pode ouvir o que a menina falou, porém teve a nítida impressão de que seus pequenos lábios disseram: “Eu te avisei, mamãe”.









 
 
Fefa Rodrigues
Enviado por Fefa Rodrigues em 08/07/2019
Reeditado em 09/08/2019
Código do texto: T6691372
Classificação de conteúdo: seguro
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