O ÚLTIMO OLHAR

A família Carplim sempre gostava de viajar para além das montanhas afim de esbanjar o seu grande poderio econômico para os vizinhos. O padeiro já não passava mais na porta dr casa, o carteiro já nem fazia mais questão de entregar as suaa cartas e os empregados domésticos já sabiam quando e exatamente a hora que os patrões voltariam. Era uma casa quase morta na época das férias, e mesmo com um casal com três filhos, aquela família raramente era vista em ocasiões da vizinhança. Naquele mês tudo havia sido programado para ir ao Canadá; Mary Carplim, a mãe da família e quem decidia as viagens, acomodava seus filhos no avião particular enquanto seu marido resolvia todos os negócios pendentes da empresa familiar pelo laptop. No colo da grande mãe havia duas crianças de cabelos avermelhados dormindo encolhidos em uma manta; a face deles era bem diferente do terceiro filho, eram bonitos de pele pálida, roupas bem feitas, cabelos bem penteado e até os seus roncares eram elegantes. O terceiro filho vestia roupas pretas feita por suas próprias mãos, seu cabelo era loiro e seu rosto com marcas. Tinha um olhar para a mãe de compaixão e sentava afastado dos dois prediletos filhos.

Tim só descobriu que era adotado quando aos doze anos perguntou a uma de suas empregadas a explicação de seus irmãos serem tão diferentes dele. Claro, ela contou e contou do início ao fim. Sua mãe biológica havia sido atropelada pelo seu atual pai quando atravessava uma avenida, por remorso foi adotado na família para pagar as ações feitas, mas nunca fora aceito pela mãe da adotiva, e o pai possuía rancor toda vez que olhava o menino adotado. Foi alarmante a descoberta na época, e Tim fora obrigado a participar de horas e horas de seções psiquiátricas, alegando os pais que o mesmo fantasiava histórias. E mesmo depois de toda descoberta, o garoto olhava com ternura para os seus irmãos adotivos dormindo no colo de Mary; mesmo depois de toda tortura que a família o impõem lhe obrigando a dormir em uma cama minúscula num quarto abafado fechado com grade, Tim desejava no fundo, ter o amor de todos eles. O garoto se perdia em pensamentos bobos enquanto o avião pousava em uma terrível tempestade. Seu pai encarava Mary silenciosamente como se estivesse se preparando para uma guerra, e o piloto abriria lentamente a porta da aeronave.

Era tudo branco e nada mais podia satisfazer os olhos de Tim do que a visão de um lugar novo. O garoto ao ver a porta abrindo saiu em desparada sentindo o cheiro do ar (algo nele o chamava para a libertadade), e sentindo toda neve no rosto ao cair no chão, passou a gargalhar como se estivesse no paraíso. Seus pais nunca o deixava correr muito pra longe, nem mesmo rir alto, mas Tim não podia se conter, era a primeira vez que sentira toda aquela neve no seu rosto congelando a não ser ter visto nas televisões. Era sem dúvidas momentos que desejava de toda maneira compartilhar com sua família inteira… mas Tim não podia mas ouvi-los.

Ao virar o rosto para avistar a seu pai, o garoto sente uma dor aguda na nuca e um pedaço de corda passando por sua boca. Se debatia como um desesperado, mas seu agressor estava por cima de seu corpo puxando seu cabelo e travando sua fala com uma corda. O peso sobre si era extremamente grande e Tim achava que estava em algum tipo de brincadeira dos seus pais. Mas Mary, seu marido e os dois filhos de cabelos avermelhados não eram achados pelos olhos do garoto. Nem mesmo eles nem mesmo o avião (como se um avião simisse sem nenhum barulho). O menino não acreditava no que via, estava imobilizado na neve por um homem que tapava a sua boca r algemava suas mãos enquanto tentava desesperadamente procurar por ajuda; seus pais haviam sumido! Seus irmãos haviam sumido! O avião havia evaporado daquele lugar, e apenas tinha ele ali… uma criança preste a ser levada por um estranho do Canadá.

– Calma boneca, você não é a única que eles jogam fora – Tim ouvia aquela voz grosseira enquanto era carregado nas costas de um homem dotado de músculos, não podia pensar em nada ou sequer prestar atenção no que ele dizia. No fundo se perguntava: a onde estava todo mundo? O que havia acontecido? Que lugar era aquele?

— Hoje é meu dia de sorte. Um Carplim por incomenda.

Então era isso? O garoto bastardo da família, aquele qual nunca foi amado como os outros filhos, havia sido vendido? A imagem de Mary fazendo carinho nos seus irmãos fazia Tim chorar em silêncio. No fundo estava claro pra ele que era apenas questão de tempo de o abandonarem, e todas as viagens, o garoto sentia que esse momento iria chegar. E por fim, havia chegado.

Depois de passos e passos com o menino se debatendo em seu ombro, o homem todo coberto de neve parou em baixo de um túnel qual passava um esgoto. O cheiro era fétido e ao lado tinha uma cabana improvisada com madeiras; poderia ser facilmente visto como um monte de entulhos, mas o seu sequestrador havia feito um acabamento ao redor da casa com cercas e arames que fazia aquela residência se tornar uma fortaleça assustadora. Tim avistava pelo canto do olho que não havia nenhum edifício ou pessoas por perto. Era simplesmente um local deserto onde apenas o seu sequestrador e aquela casa dos horrores emitia um sinal de vida. Um Carplim nunca admitiria uma local nojento como aquele, mas Tim estava longe de pensar desta maneira; ao ser jogado no chão com os pés e mãos amarrados e a boca tampada com um lenço, o garoto sentiu a fraqueza pelas tentativas brutais de gritar por ajuda. Sua garganta estava machucada e seca, e sua respiração estava forte e pesada. Claro que isso não fazia o garoto parar, mesmo cansado secretamente tentava desamarrar as cordas de seus pulsos, o seu sequestrador estava tão confiante de sua compra que ao menos havia trancado a porta da casa. Essa era a sua chance.

– Sabe garoto – o homem abriu sua geladeira pegando uma garrafa de conhaque – não é nada pessoal. O patrão sempre me envia garotos jovens para o trabalho braçal. Mas quando ele me ligou dizendo que queria se livrar de um fardo – sua saliva voava para o ar enquanto se aproximava do rosto de Tim – não imaginei que seria o filho do famoso acidente de carro do patrão.

O garoto rugiu e cuspiu nos olhos daquele monstro e imediatamente foi lançado contra a parede. Suas mãos ainda estavam amarradas e por pouco não deixara o nó escapar de seus dedos. Tim estava determinado a fugir, mas não sabia pra onde, não sabia o porquê nem ao menos se conseguiria. A sua vontade emergia da força que depositava na forte convicção de que todas aquelas palavras eram mentiras. Seja o que for, precisava ir atrás da verdade.

O monstro pegou sua caixa de primeiros socorros, e nela havia um saco plástico pronto a ser lacrado. Pegou o plástico e jogou na direção de Tim.

– Este saco é onde ficará o seu coração. Há muitas pessoas querendo um coração novinho por aí. Você vai servir de uma boa fonte renda e pelo menos... – o homem não houve tempo para terminar a sua fala, Tim havia soltado os nós de seus pulsos e pulara em seu pescoço com todo ódio. Não possuía força o suficiente para impedir que seu agressor o jogasse longe, mas a sorte contava com ele. Havia caído exatamente onde uma faca de cozinha estava, e no momento em que seu sequestrador pulara em cima do garoto, Tim pegou a faca a colocando entre o seu corpo e o do agressor. A saliva daquele homem escorrera para seu rosto enquanto estava por cima. Seu corpo era pesado e cheirava a bebida, a faca estava cravada em sua garganta e o sangue negro sujava as roupas esfarrapadas de Tim. Naquele momento, os olhos daquele garoto haviam mudado; era o olhar de satisfação e desejo. O garoto tirou o corpo de cima de si e limpou o rosto espalhando sem querer o sangue por sua bochecha. Caminhou até a porta arrastando o corpo pela casa com dificuldades e depositou no fundo do esgoto.

Tim não pensava em nada enquanto olhava o esgoto caminhar para fora da ponte; seus olhos eram frios e inertes ao que seu presente relatava. Sua realidade era imutável; Tim havia sido vendido, e agora iria vender os queridos irmãos de cabelos avermelhados. A casa fora destruída pelo tempo dias depois, e Tim nunca mais fora visto, mas os jornais estavam ocupados relatando os assassinatos brutais de dois jovens irmãos. Neles, seus peitos foram rasgados e seus corações roubados. E em suas bochechas, havia uma frase escrita com o corte de uma faca de cozinha: EU SÓ FUI ABANDONADO.

Murilo Feliciano
Enviado por Murilo Feliciano em 21/07/2019
Código do texto: T6701188
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