O LANCEIRO DOS PAMPAS - CLTS 08

Desfiz-me de todas as minhas posses, amealhei um bom quinhão, comprei uma mula, separei um tanto para viagem e o resto, dividi igualmente entre minhas duas mulheres, uma de casa e outra do puteiro, era injusto, eu sei, mas amava aquela rameira.

Não parti em busca de fortuna. Desejava bravatas, queria bater a mão sobre a mesa, deixar de lado a peixeira, pedir uma pinga e ver os matutos se afastando.

A viagem foi demorada. Cheguei aos pampas magro e sem a mula. O dinheiro se esvaiu nos bordeis pelo caminho. Eu me tornei um estrangeiro em meio à milícia desconfiada, porém nada iria me impedir de pelejar contra os legalistas desaforados. O governo regencial tiranizava os humildes, a república salvaria a nação. Quando ouvi dizer que aquela gente pegou em armas para romper com o Império, não pensei, segui meu coração.

Os primeiros dias não foram como imaginei, era quase um prisioneiro sob o olhar desconfiado dos farrapos, vindo do centro do país, poderia ser um espião.

Juntou-se uns duzentos voluntários, além de brasileiros não gaúchos tínhamos mestiços, paraguaios, uruguaios, bugres de toda sorte, todos muito mal preparados e eu achando que era só chegar e partir para luta. Marchamos a uma estância próxima à fronteira.

Além do treinamento básico, devíamos merecer a confiança dos companheiros, foram algumas semanas salgando carne, defumando e preparando o charque que alimentaria as tropas.

O tempo e a decepção me fez afeiçoar a um mestiço paraguaio. Pepe Ambrósio, bugre curioso, cabelos longos presos por uma faixa vermelha, ostentava um sorriso farto numa cara redonda. Excelente esgrimista, foi quem me ensinou a manejar o facão.

O general Bento havia escapado da prisão nos levando para reforçar a investida contra Porto Alegre. A cidade resistia bravamente ao cerco. Finalmente mostraria meu valor. O cheiro do sangue passou a me seduzir.

Foram meses naquele impasse. Atacávamos, recuávamos. Tomávamos uma trincheira e eles a recuperavam. O Império sempre se reforçando, nossas tropas mantidas pelos recursos dos fazendeiros locais já não tinham como crescer. Os mortos não pelejavam.

Sofremos muito com o inverno daquele ano. Vendo nossa penúria, as forças do Capitão Netto vieram nos render, eles manteriam o cerco. O pelotão estrangeiro, com muitas baixas rumou para estância Dona Prudência, teríamos uns dias de paz antes da próxima investida.

Os voluntários se ajeitaram como deu. Havia além da sede, um grande galpão ao lado do curral, estava bem melhor que na lama do combate. Numa certa manhã juntou-se a nós um grupo de lanceiros negros. Todos antigos escravos, libertos apenas para lutar. Eles não eram pessoas comuns, o resto da tropa mantinha certa distância, diziam que praticavam rituais sinistros em honra a deuses pagãos, outros falavam que adoravam apenas o diabo. Em algumas batalhas eu mesmo os vi em ação, a bestialidades daquelas criaturas poderia ser comparada a ferocidade dos leões acuados, a ausência do temor à morte, o desapego da sua própria vida impeliam sua investida, sabiam que já estavam condenados. Avançavam sobre a infantaria alheia rompendo sua linha de frente, sob o fogo dos trabucos empalavam os inimigos.

Estavam ali não pelo soldo ou pela glória, lutavam pela liberdade de sua gente. Se todos morressem e a guerra fosse vencida estariam felizes, teriam a certeza que seus filhos caminhariam pelos pampas sem grilhões, isto era mais que o bastante, no momento uma refeição e a cuia de chimarrão os satisfaziam.

Os homens chegaram feridos, uns sessenta e três cavaleiros famintos ávidos por sua ração. Os negros se ajuntaram próximos ao curral, um cuidava do outro a medida do possível. Minha curiosidade era grande, fui aproximando ignorando os avisos do amigo Pepe. Separado da turba um dos guerreiros contemplava o horizonte. Saldei-o ainda receoso. Ele retribuiu com um meneio de cabeça seguido por um sorriso extremamente branco que se contrastou com a pele molhada pelo suor que reluzia banhada pelo sol.

Ele não comia como os outros, da minha parte, já odiava aquela porção de arroz e charque, sentia falta do feijão. Estendi-lhe minha ração.

Agradeceu chamando-me de senhor. Engraçado perceber que até aquele instante ninguém havia me tratado com o respeito que eu desejava. Ele não tomou para si a refeição, passou a outro mais necessitado.

Tenório era seu nome cristão, filho de bantus, antes nunca havia saído da estância onde nasceu, ainda moleque já transportava uma banda de carne salgada no lombo. Quando o capitão convocou os negros para o embate, foi um dos primeiros a se engajar.

Passamos alguns dias lambendo nossas feridas. Éramos os indesejáveis da campanha. Negros, mestiços e estrangeiros, nossas vidas nada valiam para os fazendeiros que sustentavam a rebelião, se cada um tirasse a vida de um legalista, já teríamos cumprido nossa tarefa, e estas que tirávamos certamente tinham mais valor.

A sorte mudou quando, aos poucos, figuras importantes chegaram. Para nós, capitão Antônio Netto era o mais conhecido, muitos pela primeira vez tiveram a oportunidade de ver de perto o general Bento Gonçalves, e além dele, também Canabarro e um italiano de nome esquisito.

Os lideres da revolução farroupilha estavam reunidos numa estância onde os mais indesejados patriotas foram confinados para descanso. Ignorantes, nem sabiam o quanto importante era aquela junta de homens.

Era noite alta e fria, uma rés mugia sem saber que breves seriam seus dias. O urutau piou na margem oposta do pequeno regato. O sono ainda não chegava, Pepe dormia ao lado da fogueira, Tenório como sempre olhava para o horizonte, eu virava de um lado para o outro, os murmúrios distantes não foram capaz de me embalar.

De sobressalto o negro gritou:

_ Carga!!!

Tenório correu para junto dos cavalos, estávamos desesperados, não era possível saber de onde e nem quantos nos atacavam. Dos soldados que estavam ao relento, muitos tombarão sem chances de revide. Pepe apagou a fogueira, buscamos refugio nas sombras. Da casa grande tiros retumbaram em direção ao campo. Eram respondidos em franca vantagem. Os lanceiros que conseguiram montar galoparam em direção ao brilho do estampido da pólvora, enquanto os estrangeiros recuavam guarnecendo a construção.

Reagrupados, nos dividiram em duas seções, segui sob o comando de Canabarro. Avançamos noite adentro com a pouca munição e o facão na cintura.

O combate era tenso, ouvíamos os gritos de avance dos inimigos, o trote dos cavalos dos lanceiros indicava a proximidade dos legalistas.

A tristeza tomou conta do meu peito. A cinco passos à frente, Tenório de joelhos trespassado por uma lamina imperial tinha ao alcance de sua mão a lança que tão bem manipulava.

Não sabia o que fazer. Tomado pelo desespero segurei firme o punho da espada arrancando-a do corpo do infeliz. Meus olhos cheios de lágrimas arregalaram-se ao perceber que mesmo ferido o negro se ergueu, olhou agradecido em meu rosto e sem palavras percebi que de sua boca escapava um filete de sangue.

Tenório ignorou a dor, saltou sobre o primeiro cavalo que viu e voltou ferrenho ao combate. Com tamanha demonstração de coragem me imbui daquele sentimento perdido e parti para a ofensiva.

Pela manhã, o sol iluminava o céu avermelhado, os galos não cantavam. Canabarro ordenou o recuo. Voltamos para as trincheiras da estância. Passamos o dia respondendo ao fogo. Sabíamos que não tencionavam invadir, estavam em maior número porém em campo aberto tinham desvantagem. A escuridão lhes favoreciam. Durante aquele primeiro dia me juntei a Pepe. Os lanceiros descansavam sem ter notícias do irmão.

A noite caiu. Um novo ataque se rompeu, o pasto baixo permitia ver o movimento dos homens, as ordens eram para atirar apenas se estivéssemos certos do alvo ou ficaríamos dependentes de nossas lâminas.

Um pelotão inteiro se esgueirava pelo lado sul. Comandante Netto deu a ordem. Os lanceiros partiram para o combate, um pequeno grupo com arma de fogo dava cobertura.

Em meio à batalha encontrei novamente meu amigo. Vigoroso em sua montaria girava a lança em torno de si. Vários tombaram com a garganta perfurada.

Foram horas de terror até que o sol voltou para apaziguar os ânimos.

Após uma semana de cerco estávamos prestes a cair, noite após noite via perícia de Tenório com sua lança, em momento algum consegui trocar uma palavra com aquele a quem aprendi a admirar. Com um trapo vermelho ocultava seu sorriso mais dos olhos brotava a chama da liberdade.

Os suprimentos esgotavam-se apesar do racionamento, certamente os legalistas não sabiam quais eram os ocupantes da estância, acreditavam estar debelando só mais um reduto revolucionário, senão dariam o golpe de misericórdia, reforçariam o cerco, sufocando o levante. Mesmo assim, a derrota envolvia nossas gargantas com seus longos dedos. A rendição seria lograda com a morte.

Mais uma noite de suplício teve início, Canabarro se feriu levemente, Netto propôs a retirada. Foi difícil convencer o coronel Bento deixar a posição batendo em recuo, sua honra não permitia abandonar seus camaradas.

A pedido da milícia rebelde, pesaroso entendeu que aqueles bravos morreriam felizes se a revolução tivesse êxito. Bento era seu líder, seu exemplo.

Alguns soldados escoltariam a comitiva pelos campos inimigos. As habilidades em combate corpo a corpo de Pepe lhe garantiu uma vaga na escolta, seu apego por minha pessoa me inseriu no grupo.

Bento Gonçalves, Antônio Netto, David Canabarro, Giuseppe Garibaldi junto com alguns voluntários usariam a noite como cobertura, sorrateiros estariam distantes ao raiar do dia. Os sobreviventes resistiriam a todo custo, fariam o possível para ganhar um pouco mais de tempo.

Esgueiramos-nos pelas linhas inimigas, o facão em punho nos resguardava do inimigo. O capim baixo diminuía dando lugar à fuligem da queimada provocada pelo fogo da batalha, às vezes ficava difícil nos ocultar. Arrastamos-nos desviando das posições de combate, vez por outra ouvíamos as conversas do inimigo. Seguíamos na direção oposta aos estampidos dos trabucos, os sons da luta dava lugar a latidos de cães. Seguíamos rumo ao sul, buscávamos guarida entre os simpatizantes da causa.

Sem saber como, caímos no meio de um grupamento imperial. Doze homens quase desarmados entre oitenta cavaleiros imperiais.

Estávamos condenados apesar do sacrifício de nossos companheiros.

As armas inimigas se viraram em nossa direção. Montados, a quarta parte daquele esquadrão acabaria conosco sem esforço algum. O fim estava próximo, nossas armas em punho, sem esperanças lutaríamos sem temor.

Como um leão entre presas indefesas, Tenório saltou atiçando seu cavalo, rodopiava sua lança girando-a no ar, abrindo um rombo entre os adversários. Os animais relinchavam derrubando seus cavaleiros, o sangue salpicava a grama com um vermelho vivido. Tomados por uma coragem sobre-humana nos atiramos à luta.

Naquele momento, coberto pelo sangue inimigo, eu tinha a certeza, fazíamos parte da história, aquele grupo de soldados rejeitados mantinha viva a chama da liberdade. Se aqueles homens caíssem, a revolução teria fim.

Quando o dia quis aparecer, nosso amigo lanceiro acenou com um gesto de despedida. No coração, sabia que jamais voltaríamos a nos ver, estava grato por tudo que passamos, satisfeito por conhecer tão nobre alma.

Ainda não estávamos livres, o sol agora nos expunha, ao perceber a morte do pelotão de cavalaria seriamos caçados como animais.

Apertamos o passo apesar das dificuldades. No céu, um grupo de urubus circulavam voando baixo. Passaríamos por eles em nossa fuga, poderia ser um animal morto em batalha.

A guerra não vem acompanhada pela honra. Tão longe da estância, um dos nossos havia caído cativo. Amarrado a um mourão de cerca foi usado como alvo de tiros. O corpo podre não possuía pernas, arrancadas por cães famintos, era apenas mais um dos negros.

Engano.

Apodrecendo, alimentando os animais, estávamos diante de nosso salvador. Tenório que horas antes combatia ao nosso lado parecia estar ali há vários dias.

Estávamos loucos, Pepe e eu sabíamos quem era, porém nossos companheiros nunca acreditaram.

Foi minha última luta, abandonei os campos gaúchos, voltei para casa. Pepe me enviou algumas cartas. O lanceiro negro ainda foi visto em algumas batalhas, ao estarem prestes a morrer alguns soldados juraram ser salvos por um habilidoso guerreiro, eram relatos sem consistência, mas sabíamos ser ele.

Tempos depois recebi a notícia que numa aventura acompanhando Garibaldi, num estranho naufrágio, Pepe perdeu a vida, seu corpo não foi encontrado. Me consolava pensando que os dois ainda cavalgavam junto aos farrapos sustentando a esperança de dias melhores. Quanto a mim. Assombrado com tanta barbárie voltei a minha terra, não alcancei a glória, porém na bagagem levei parte da história.

Tema: Lendas Locais e Assombração

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 04/08/2019
Reeditado em 04/08/2019
Código do texto: T6711956
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