A Mulher do Vestido Vermelho

Tudo começou com uma sombra. Eu era criança, agitado, travesso… estava sempre arrumando confusão e incomodando os adultos que precisavam cuidar de mim. Não me orgulho de ter sido uma criança difícil, mas também não é algo que eu me envergonhe. Eu tinha cerca de doze anos quando, em uma noite, estava deitado na cama, aguardando por um sono suficiente para fechar os olhos. Lembro que não chovia, mas era uma noite fria, pois eu usava um lençol grosso e o ventilador não estava ligado. - Talvez seja o motivo de eu nunca mais ter dormido com ele desligado.

Eu estava deitado com a cabeça virada para a parede quando ouvi aquele som. Eram passos, mas não eram como os de alguém que morava comigo, como minha mãe ou meu pai. Eu já os conhecia o bastante para saber que costumavam andar sempre apressados, e os sons que seus pés produziam eram mais fortes e altos do que aquele som quase deslizante de uma pessoa delicada que caminha lentamente. Olhei então para a porta e tudo o que vi foi a sombra de uma pessoa que já havia passado. A sombra nítida de uma mulher, com seus cabelos longos cuja cor me era indecifrável e com um vestido que balançava com seus movimentos calmos.

A mente de uma criança não costuma ser confiável para os adultos, então não contei nada. Não é algo que tenha me assustado muito profundamente, uma vez que ainda existia uma chance daquela sombra pertencer à minha mãe. A verdade é que eu não queria perguntar para ela. Era melhor acreditar que não era nada. Aquela noite foi difícil de dormir, porém nas próximas não voltei a pensar nisso.

Demorou alguns meses para eu vê-la novamente. Dessa vez não ouvi o som dos passos devido ao barulho do ventilador, porém senti rapidamente, olhando para a televisão, minha visão periférica pôde sentir um movimento, desta vez rápido. Ao olhar para o corredor, novamente a sombra dos cabelos longos e do vestido. Dessa vez, com uma diferença. Eu estava sozinho em casa. Uma pessoa normal – leia-se com um nível humano de coragem – levantaria da cama e investigaria, afinal poderia ser um invasor. Eu não levantei. Enquanto eu não a visse, eu não teria certeza se ela era real ou não. E não ter certeza me parecia reconfortante.

Levou um tempo de vultos e sombras do corredor durante as madrugadas até que eu tivesse certeza de sua existência. Nessa noite, chovia. Tenho certeza. O ventilador estava ligado e a janela estava fechada devido aos respingos que teimavam em molhar a cama na qual me deitava. O som das trovoadas era a trilha sonora de uma noite na qual a insônia me torturava cruelmente. Eu rolava na cama e nem mesmo os dois comprimidos de Rivotril me permitiam descansar. Foi quando eu olhei para o corredor e a vi. Ela passava, lentamente, pela altura da minha porta e, diferentemente das outras vezes, parou. Ela ficou ali, encarando o restante do corredor, por alguns segundos. Estática. Imóvel. Eu olhava fixamente para seus longos cabelos pretos que cobriam seu rosto cuja pele branca era visível por entre alguns fios finos que balançavam singelos devido à corrente de ar. Estático. Imóvel. O sangue começou a esquentar a medida que notei o motivo que a fizera parar. Era eu. Assim como eu pude vê-la. Assim como eu pude notá-la, concretamente, pela primeira vez, ela me notou. Mas por que ela não me olhava? Experimentei desviar o olhar, porém com minha visão periférica eu ainda conseguia enxergá-la. Fechei os olhos, ignorando completamente meu ateísmo e rezando a única oração que eu conhecia. Quando abri os olhos novamente, ela não estava lá. Mas uma lembrança me faria nomear aquela que para sempre me visitaria em meu quarto como “A Mulher do Vestido Vermelho.”

Eu a vi outras diversas vezes em minha vida. Já sabia que ela usava sempre aquele vestido, que sua pele era bem branca e que seu vestido estava sempre encharcado. Sabia também que ela usava sandálias brancas. Apenas não sabia a cor de seus olhos. Ela nunca olhou para mim. Pelo menos até hoje.

A estrada que liga Maricá à Niterói a noite é um tanto tenebrosa. A escuridão da qual surgem às árvores que nos cercam de todos os lados banhava o caminho enquanto eu dirigia meu Pálio vermelho por volta das duas da manhã. A chuva fina que caía atrapalhava um pouco a visão, porém não o bastante para me fazer parar em algum estabelecimento e esperá-la ir embora. Eu segui na estrada. Segui por dois quilômetros até perder o controle e colidir com um carro amarelo cujo modelo não consegui perceber.

Sabe quando nos dizem que antes de morrermos conseguimos ver toda nossa vida passando diante de nossos olhos como em um filme? Bem, não foi isso que aconteceu. Não vi meus amigos do colégio, não vi meus familiares, não vi imagens da minha formatura, não vi a mulher com quem me casaria no próximo mês. Porém seria injusto dizer que não vi parte importante da minha vida naquela noite. Ali, diante de mim, no capô do carro que eu acabava de colidir, deitada, estava a mulher do vestido vermelho. Duas descobertas interessantes eu tive naquele momento. A primeira é que o vestido originalmente não era vermelho, e sim branco, mas logo ficaria completamente vermelho. A segunda é que seus olhos, que me encaravam agora com o que restava de vida naquele pobre corpo, eram azuis. A Mulher do Vestido Branco que Ficou Vermelho… assim eu devia tê-la chamado por tanto tempo. Ou… A Mulher do Vestido Branco que Eu Fiz com que Ficasse Vermelho. Agora eu entendo porque, sempre ao parar na minha porta, ela tinha medo de olhar para mim.

– Você é o Homem da Camisa Vermelha. - Ela sussurrou, com o último suspiro que guardava em seus pulmões.

Eu apenas olhei para baixo, com o que ainda me restava de força, e encarei o volante do qual não conseguia levantar meu rosto, até que o sono se tornasse suficiente para fechar os olhos.