Pare. Desligue os faróis. Acenda a luz interna. Identifique-se

O que vou contar para vocês ocorreu há alguns anos atrás quando eu cumpria serviço militar obrigatório. Naquela época eu estava muito mais interessado em tentar vestibular para engenharia elétrica, mas terminei tendo que servir ao exército. Fiquei servindo em um Batalhão de Caçadores localizado no Nordeste Brasileiro.

Certa noite estávamos eu e Oliveira tirando serviço novamente. Todo mundo no quartel falava que éramos como Batman e Robin. Somos muito amigos de fato e sempre procurávamos ajudar um ao outro. Lembro que era o mês de novembro e estávamos os dois na guarita de segurança da entrada para a vila militar. Tarefa tranquila, nada além de checar alguns automóveis que entravam e saiam ou as vezes prestar atenção no estado de embriaguez com que chegavam alguns filhos de oficiais. A única coisa chata disso tudo é que não dormíamos em casa. Nada de mais.

O exército impunha silêncio a partir das vinte horas na vila militar e tudo seguia tranquilo. Da guarita de segurança podíamos ver a quadra de esportes, a capela e algumas das casas. Seria só mais uma tarefa a cumprir. Acho que nós dois conversávamos sobre o que iríamos fazer após o período no exército quando Oliveira alertou para um carro preto que chegava. Já passavam de três horas da madrugada.

- Olha isso aí, parceiro. Alguém chegando a essa hora ...

- Deve ser gente de fora da vila, não lembro de alguém ter saído desde que começamos a tirar serviço.

Neste momento aconteceu algo inesperado. O carro preto parou antes de aproximar-se totalmente da cancela da guarita.

- Hum ... o que foi agora? O cara parou ...

O estranho carro preto desligou os faróis mas continuou parado.

Ninguém desceu do veículo. Dois longos minutos passaram e nada de alguém descer do carro.

- O cara não vai descer? Que porra essa agora? – Oliveira falava isso e já saia da guarita.

- Calma aí, soldado. Isso está estranho. Reparou que esse carro não tem placa? E posso lhe garantir que nunca vi esse tipo de modelo na vida.

- Puta que pariu! É verdade, nunca vi um carro como esse também. Ele pode ser estrangeiro.

- Estrangeiro? Cara, pode até ser, mas é um carro danado de feio. Não estou gostando disso ...

Tirávamos serviço sempre armados com pistolas automáticas Beretta-Taurus de 9 mm ou as vezes com fuzis IA2. Hoje estávamos com pistolas. Resolvemos os dois sairmos e ir abordar o estranho veículo.

- Vamos verificar qual é a desse cara. – Falei tentando armar-me de coragem e agradecendo a Deus por ser Oliveira quem estava comigo ali.

- Ele não fez nada. Fica só parado. Ainda não está no perímetro da vila. Vamos aguardar ...

- Negativo! Ele está em atitude suspeita e não se identificou. Vamos abordar ele sim.

Sacamos as pistolas e fomos até o veículo. Cautelosamente nos aproximamos pela lateral do carro.

Senti algo estranho em mim quando percebi que as linhas que compunham o carro eram esquisitas. Reparei que ele não tinha maçanetas nas portas, aliás, não havia sequer portas. O carro era completamente preto e sem reentrância alguma em sua lataria. Não sei dizer, mas ele passava algo de maligno. O que mais nos chamava a atenção era um estranho cheiro adocicado que emanava do carro. Senti um medo correndo pela espinha. Havia algo de ruim ali ...

- Oliveira, tem algo muito errado aqui ... que merda de cheiro é esse?

- Quem está aí? Saia e identifique-se! – Falei isso e me afastei do carro – Percebi que meu companheiro já estava com sua pistola apontada para o lugar onde estaria o suposto motorista.

- Saia e identifique-se!

Mais um enervante minuto passou e nada. O medo fazia o suor colar em meu uniforme. Sentia minha respiração em suspensão quando decidimos voltar para trás da cancela da guarita e acionar o oficial da noite pelo telefone.

O carro parecia olhar para nós. Se havia alguém lá dentro ele sabia que lá fora estavam dois soldados muito assustados. O cheiro que sentíramos perto do carro pareceu espalhar-se e passou de adocicado a podre. Até hoje ainda me lembro daquele cheiro horrível.

Peguei meu celular. Era proibido tirar serviço estando com um celular, mas contava com a cumplicidade de Oliveira para que ninguém soubesse dessa pequena infração. Imediatamente fotografei e filmei o estranho carro preto. Quando estava fazendo isso passamos a ouvir o ronco do motor do carro. Ele deu uma ré de uns vinte metros e avançou repentinamente para a guarita, tão rápido que mal tivemos tempo de nós prepararmos para um impacto. Não houve um choque. Ele parou subitamente e ficou apenas ameaçando avançar. Dava uma ré, avançava e freava. Fazia isso seguidas vezes.

Um barulho diferente saia do motor daquele carro ...

- Vou dar um tiro nesse filho da puta – Falei com o medo já impregnando a minha voz.

Dei um tiro para o alto. E nada. O carro preto continuava ameaçando invadir o espaço da vila. Dei dois tiros. Um na lataria e outro no para-brisas. Nada aconteceu.

- Essa porra é blindada! – Um medo grande agora dominava-me - Oliveira, a porra desse carro é blindado.

Achava que se fosse um tiro de fuzil também não faria a menor diferença na lataria daquele carro. Recordo que na hora me dei conta de que se fosse blindado o tiro no para-brisa teria pelo menos deixado uma marca no vidro...

O carro nos encarava do outro lado da cancela. Oliveira e eu ficamos em posição de tiro há uns trinta metros dele. Demos mais uns cinco ou seis tiros nele e nada. Juro por Deus que aquele maldito estava nos desafiando.

Estávamos já há uma eternidade e nada do carro preto fazer alguma coisa. O medo corroía nossas almas. Será que alguém na vila havia escutado os tiros? Ainda nem havíamos acionado o oficial de serviço.

Não sei o que aconteceria se aquela coisa resolvesse avançar com o carro para dentro da vila militar. Em vez disso ele desligou o motor e ficou lá parado. Então de uma maneira que até hoje eu não compreendo ele sumiu de nossas vistas. Em algum momento ele simplesmente desapareceu como se nunca tivesse estado ali.

Todo esse tempo eu fico me perguntando o que era aquilo. Porque ele não invadiu a vila? O que ele queria? Acho que nunca terei uma resposta.

Meu período no exercito acabou dois meses depois e fui fazer engenharia em outra cidade. Ainda mantenho contatos esporádicos com meu antigo parceiro.

Nunca comentamos nada com ninguém sobre o ocorrido naquela noite estranha, principalmente quando descobrirmos que o filme e as fotos que havíamos feito com o celular nada mostravam além da conhecida paisagem de uma guarita de segurança.

* Conto republicado

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 28/08/2019
Código do texto: T6731538
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