Me Deixem em Paz, Quero Fechar os Olhos

É quente aqui. Desesperadoramente quente. A sensação do suor escorrendo pela minha pele enquanto tento respirar o mais próxima da janela possível para que qualquer fragmento de ar fresco possa me tocar é minha única companhia para ver o sol se pôr por aquela fresta maldita. Eu choro. Todo. Santo. Dia. Eu sinto, no fundo da minha alma penada em vida, que eles nunca vão embora. Nunca vão me deixar em paz. Nem mesmo aqui, onde apenas a caneta, o papel e a angustia me fazem companhia.

Tudo começou quando me mudei para Niterói. Passei no vestibular para cursar Psicologia na Universidade Federal Fluminense. Como eu morava em Nova Iguaçu, era praticamente inviável continuar pagando mais de dez reais por dia para frequentar as aulas, então resolvi alugar um pequeno quarto no morro do Palácio para ficar durante a semana. Eu dividia a casa com a minha amiga Paula e, apesar das dificuldades financeiras, ainda era mais fácil do que as horas torturantes no trânsito da Avenida Brasil.

Paula e eu nos dávamos incrivelmente bem. Combinávamos como nunca antes havia experienciado em meus dezenove anos de vida. Tudo ia perfeitamente bem, e eu consigo dizer com exatidão o dia que isto mudou. Começou lentamente, sútil, mas logo tudo se transformaria em pavor.

Era início de setembro, e o tempo frio tinha chegado ao Rio de Janeiro. O sol e a alegria comuns nos feriados e finais de semana, os ônibus lotados em direção às praias da região oceânica, tudo era gradualmente substituído pela melancolia da garoa e pelo som do asfalto se molhando durante a tarde. Eu não tinha aula naquele dia, mas resolvi ir até a universidade para estudar. Levei meu computador para conectar na internet aberta de lá e conseguir ler alguns artigos online, e para isso sentei-me próxima ao bloco N, onde eu estudava. O vento balançava as folhas das árvores produzindo a única e mais desejável trilha sonora para aquele breve momento de paz. O campus, geralmente tomado pela correria cotidiana da vida estudantil, agora se apresentava como um bosque de silêncio e calmaria, com algumas poucas almas que não haviam voltado para casa no feriado. Entre estas almas, um rapaz.

Ele estava sentado em um banco na minha frente. O local em que estávamos tinha quatro bancos dispostos um de frente para o outro de modo a formar uma espécie de quadrado, e ele sentava-se diretamente à minha frente. Eu estava lendo quando comecei a notar seus olhares. Sutis no início, sua fixação em mim começou a me assustar conforme deixava de tratar-se apenas de passadas de olho ocasionais. Notei, em um dado momento, que ele esquecera completamente o que estava fazendo e concentrava toda sua energia em mim. Olhava-me como se me investigasse a partir de seus sentidos. Encarei-o de volta para ver se ele sentia vergonha e desviava os olhos, porém não. Na verdade, ele parecia até me desafiar a fazê-lo parar de me fitar. Como o campus estava vazio, fiquei com receio e resolvi ir embora. Um pouco assustada, caminhei até minha casa e tentei esquecer daquela experiência estranha que acabara de vivenciar.

Alguns dias se passaram e eu já não mais pensava naquele homem estranho. Tinha aula com Paula naquela terça-feira, e fomos caminhando juntas até a universidade. Na aula, novamente senti-me observada. Inicialmente eu não conseguia dizer quem, mas eu sabia que olhos curiosos me cercavam como se eu fosse uma atração circense prestes a realizar uma apresentação. Logo percebi que, no outro canto da sala, uma menina de cabelos longos e pretos me encarava, fixamente, assim como aquele homem. Ela não desviava o olhar. Era como se estivesse ali apenas para me observar. Senti um frio desconfortável e sintético percorrer todas as extremidades do meu corpo, e rapidamente me levantei e deixei a sala, sem nem mesmo me despedir de Paula.

Naquela noite, contei o que havia acontecido quando estávamos em casa. Para minha surpresa, minha amiga estava passando pela mesma situação. Ela disse que não queria me contar pois estava começando a duvidar da própria sanidade, porém quando expus minha situação, ela percebeu que talvez não fosse loucura. Algo estava acontecendo.

Pelos próximos dias, mais olhares. Algumas vezes com Paula, outras vezes sozinha. Eu não sabia mais o que fazer. Isso estava afetando minha existência de uma maneira brutal a ponto de eu não conseguir mais andar na rua sem perder a cabeça para o pavor. O medo. A sensação constante de ser observada. Eu. Nunca. Estou. Sozinha. Eu espero que você, que está lendo isso, nunca, nunca, nunca, NUNCA passe por isso. Eu nunca estava sozinha. NUNCA.

Nas sombras, à espreita, nas vielas, nos carros, nas cadeiras da sala de aula, encostados nas árvores, nos computadores da sala de informática. Pouco a pouco, mais olhos me observavam. Eu sentia como se minha vida houvesse se transformado em uma espécie de show. O Incrível Dia a Dia de Maria. À noite, em minha casa, era o único momento que eu não me sentia dessa maneira. Para falar a verdade, Paula e eu conseguíamos apoio uma na outra de certa forma. Conversávamos sobre isso e eu sentia nela o último resquício de sanidade que restava em minha mente febril. Os últimos olhos que não se interessavam tanto por mim quanto por meus sentimentos. Droga. Paula era perfeita. A melhor amiga que eu já tive. A melhor pessoa que já conheci. Eu me arrependo todo dia. Não há uma única noite que as lágrimas não tomem conta de meu rosto vermelho enquanto penso nela. Enquanto penso nela e no que aconteceu naquela noite.

Devia ser por volta das duas. Havíamos nos deitado cedo pois no dia seguinte precisávamos fazer um trabalho para a aula que fazíamos juntas. Eu não costumava acordar no meio da madrugada, mas naquela noite… naquela noite eu precisava tomar um copo de água. Eu levantei da cama, caminhei até a cozinha, e senti. Aquela maldita sensação. Aquele INFERNO. Eu estava sendo observada. Dentro. Da. Minha. Casa. Alguém estava me observando enquanto eu bebia água. Eu sentia os malditos olhos. Os malditos olhos. Malditos tais quais minha própria sorte. Paula estava de pé, parada na frente da porta de seu quarto. Ela olhava fixamente para mim. Assim como todos. Ela era um deles agora. Um dos olhos. Ela era um dos olhos. Eu fiz o que precisava fazer. Puta que pariu. Eu fiz o que eu precisava fazer!

Eu me arrependo. Toda noite fria, enquanto tremo em meus lençóis suados, eu me arrependo. Arrependo-me pois não adiantou de nada. Os olhos continuam aqui. Não importa onde eu vá, o que eu faça, eles continuam olhando para mim. Eles continuam me observando. Nem o corpo de Paula, sem vida, manchado de sangue pelo ferimento dos cacos de vidro do copo de água que eu estava tomando, fez com que seus olhos parassem de me encarar. Eles continuavam abertos enquanto a vida esvaía-se de sua carne. Paula estava morta. De olhos abertos. Me encarando. Ela estava morta e continuava me encarando.

Nem mesmo na cadeia pararam de me observar. Todas. Todas aquelas mulheres assistiam atentas a minha ruína. O meu sofrimento era um show para elas, assim como para todo mundo. Quando ataquei uma delas, e me mandaram para cá, pensei que isso fosse finalmente acabar. Deus, eu daria tudo para isso finalmente acabar. Não sei pelo quê estou sendo punida, mas sei que não aguento mais. Se você estiver lendo isso, Deus, por favor faça isso parar. Eu IMPLORO. Pelo seu amor, faça os olhos se fecharem, ou feche os meus de uma vez. Ouça minhas súplicas!

Nem na solitária essa maldita sensação me deixou em paz. Os olhos continuam aqui. Continuam me observando. Eu consigo sentir. Eu consigo ouvir eles rindo do meu sofrimento. Por que? Por que? Eu nunca vou entender. Apenas não consigo. Pelo amor de Deus parem. Me deixem em paz. Me deixem em paz. Me deixem em paz. ME DEIXEM EM PAZ. ME DEIXEM EM PAZ. ME DEIXEM EM PAZ. Vocês não vão parar até que meus olhos se fechem.