A BRUXA E O ILUSIONISTA - CLTS 09

Quase ninguém quer conversar com quem pratica magia. Porém, todos são cristãos somente até o momento em que seus filhos ficam doente e nem médicos ou padres resolvem o problema. Aqui nesse interior, desde que cheguei com minha pequena Aninha, sou chamada por diversos nomes “a bruxa, a rezadeira, a benzedeira”, dentre outros, mas quando esses pobres matutos se deparam com as verdades ocultas, é a mim que eles procuram.

Assim como os gritos de agouro das corujas, esses miseráveis só me procuram à noite para que outros não vejam a quem eles estão recorrendo, pois no fundo sabem que há situações em que só rituais feitos por gente como eu, podem revolver. Confesso, porém que, apesar de conhecer os diversos segredos esotéricos das plantas, animais, minerais, antros e objetos, até eu já fracassei. O erro e o fracasso fazem parte de nossa existência. Isso, eu descobri isso da pior forma possível.

Alguns meses depois de eu chegar nesse vilarejo, instalou-se um circo, lugar ideal para gente como eu arrumar um dinheiro extra, já que também domino as artes do tarô e da leitura de mãos, artes essas que aprendi com minha falecida mãe que era cigana.

Dias trabalhando lá, conheci um ilusionista que logo me chamou a atenção. Era um homem bonito e sedutor. Quando me dei conta, eu já estava apaixonada; ele, por outro lado, já tinha deixado o circo e vindo morar comigo. Victor não me julgava por ser uma mulher divorciada e com uma menina de oito anos para criar, então assim nossa vida começou.

Aninha e Victor se deram muito bem, apesar de no início ela o estranhar um pouco, mas bastou ele fazer alguns truques de mágica para conquistá-la. Ele arrumou um emprego numa mercearia, passava o dia fora, enquanto eu ficava cuidando da casa e de Aninha. Quando era noite, às vezes, quando aparecia algum trabalho de magia pra mim, ele que ficava em casa. Não era muito jeitoso com os afazeres domésticos, entretanto era um bom homem, até amizade com o vizinho ele fez. Algumas vezes, quando eu chegava à noite, encontrava ele e Augusto, o vizinho, jogando cartas e bebendo cachaça no alpendre.

Certa vez, fui fazer um ritual para espantar uns vultos que estavam aparecendo numa casa de um casal de idosos que conheci do tempo que o circo veio. Chegando lá, tirando tudo o que eu precisava da bolça, comecei a preparar o trabalho. Algumas velas e pedrinhas, folhas de certas plantas, um pouco de água coletada de um rio em determinada fase da lua e sangue de certo tipo de ave, além de uma reza secreta, tudo foi bem distribuído e utilizado, pois um ritual, seja ele qual for, tem que ser feito com precisão.

- Cubram os quadros e as imagens sacras, por favor. Depois saiam da casa porque preciso trancá-la para que nada saia – pedi.

Feito isso, comecei a passar água nas pareces e pingos de sangue nos cantos do chão. A chama da vela indicava por onde os vultos se escondiam e dessa forma fui limpando o ambiente e o bloqueando com umas pedrinhas que coloquei em casa quina da casa. Os idosos do lado de fora esperavam que eu terminasse o serviço que até estava sendo feito rapidamente. A experiência nos faz confiantes nesse ramo, mas às vezes, acontecem coisas inesperadas e foi justamente isso que aconteceu naquela noite.

Depois de recolher as coisas, tirei os véus das imagens e dos quadros. “Trabalho concluído”. Foi nesse momento, quando fui abrir a porta para os idosos entrarem que me veio à mente a imagem de Aninha em pé diante de alguém que a tocava onde nunca poderia tocar. Pressionando meus olhos e balançando a cabeça sentindo medo e repulsa, expulsei a imagem da mente e saí depressa da casa para ir ver se estava tudo bem com minha filha.

Chegando em casa, para meu conforto de espírito, estava tudo bem. Aninha estava dormindo numa rede em seu quarto. Victor me recebeu com um beijo e me perguntou se estava tudo bem. Eu, para não preocupá-lo disse que sim, mas naquela madrugada não consegui dormir em paz, mesmo rezando as mais poderosas orações e os mais pesados encantos. Minha mente começou a relembrar aquela maldita visão e a formular uma hipótese que nunca, jamais eu poderia admitir.

Dizem que coração de mãe não se engana. Em partes, esse ditado está certo. Outro dia, pela manhã, depois de tomar café com Victor e deixá-lo até a porteira, entrei e fui acordar Aninha. Depois dela tomar banho, veio tomar café. Depois de hesitar muito, perguntei:

- Tá tudo bem, Aninha?

- Tá mãe.

Não satisfeita, eu fiz uma outra:

- Aconteceu alguma coisa de estranha?

- O quê? Não, mãe.

- O Victor fez alguma coisa ruim contigo?

- Não.

“Melhor não fazer mais perguntas”, pensei, pois posso assustá-la. Mesmo respondendo que estava tudo bem, no fundo do coração de mãe, eu notei que ela estava um pouco diferente. “Será que é loucura de minha cabeça?”. Aquele dia se arrastou e as teorias em minha cabeça só aumentavam.

No fim da tarde, Victor chegou com algumas compras e no meio delas, uma boneca. Aninha ficou muito feliz. Partiu pra cima dele, abraçando-o com força e dando-lhe vários beijos na bochecha. Não era aniversário dela, nem natal. “Por que ele deu essa boneca pra ela? Agradá-la? Comprar-lhe o silêncio?”. Meu Deus!, aquilo estava me matando!

Outra noite, apareceu outro serviço para eu fazer, dessa vez algo mais rápido: benzer um menino doente. Antes de ir, porém, enquanto Victor estava no banho, ajoelhei-me diante de Aninha e disse:

- Não diga pra ninguém o que vou te dizer: se Victor fizer alguma coisa estranha contigo, você me fale.

- Como assim, mãe?

- Qualquer coisa errada contigo. Você me entendeu, Aninha?

Depois de me despedir friamente de Victor, saí a pé rumo à casa onde ia trabalhar. Chegando lá, após falar com os pais do menino, entrei em seu quarto para conversar. Logo fiz amizade com ele. “Meu Deus como é fácil ganhar a confiança de uma criança”. Depois de algumas rezas, quando finalizei o ritual passando-lhe folhas misteriosas pelo rosto, notei marcas roxas em seu pescoço. No mesmo instante, indignada e perguntei:

- Foi seu pai? Sua mãe sabe disso?

- Por favor não conta pra ela. Vai ser pior. Tenho medo dele e ela também tem.

Aquelas palavras partiram meu coração de mãe. Fazendo um sinal de proteção na testa dele e fechando os olhos, inesperadamente em minha mente, uma outra visão se formou: Aninha tendo sua mão levada à altura da cintura daquela maldita sombra. Na visão, ela estava com as mesmas roupas que a vesti em casa. “A indignação pelo que aconteceu com o menino se somou à da visão. “Maldito! Desgraçado! Traidor!”. A desconfiança dava lugar a uma quase certeza. “Preciso falar com Aninha de novo”.

Saí correndo da casa do menino. Rapidamente cheguei em casa e fui para o quarto dela. Acendi uma vela e a acordei. Sentando ao seu lado, beijando-lhe a testa perguntei:

- Victor fez algo errado? Foi mal contigo?

- Ele não é mal, mãe.

- Ele te tocou?

Ela negou. Em seguida, Victor apareceu na porta, e eu tentando disfarçar ao máximo minha raiva e preocupação, levantei-me e o beijei. “Ele não pode saber que eu sei”. Claro que ele percebeu que eu estava estranha. Enquanto me abraçava, comentou:

- Você tá tão distante. Tenho sentido sua falta.

Eu não tinha como colocá-lo contra a parede. Não tinha visto nada de estranho, não com os olhos. Além disso, Aninha não me disse nada que o comprometia. Fui dormir angustiada, pois tanto o menino que visitei quanto minha filha estavam sofrendo em silêncio sem poder gritar por socorro. “Por que ela não me conta o que ele fez?”. Tentei dormir, mas foi em vão, nessa e em outras noites. Até que chegou ao ponto em que eu não aguentava mais e precisava resolver essa situação de qualquer jeito.

Foi numa noite de lua, que resolvi agir. Mais uma vez, depois de chegar de um serviço de magia para mais um católico hipócrita, perguntei para Aninha se tudo estava bem. Ela, pela milésima vez, disse que sim, e foi quando eu, olhando no fundo dos seus olhos, vi o que estava abaixo do meu nariz o tempo todo: “ele a hipnotizou. É ilusionista e sabe diversos truques do circo. Como não percebi que ele a manipulou? Burra! Minha filha sofrendo há dias, e eu não vi o óbvio!”.

Se o amor é a potência da vida, o ódio é a potência da morte. Meu coração não aguentaria mais uma noite se dormisse perto dele. Eu não conseguiria mais sair de casa e deixá-la com ele, nem por um segundo. “Canalha! Como pôde fazer isso com nossa família?”. Com os olhos lacrimejantes e face vermelha de ódio, peguei Aninha e a levei para o vizinho, onde a deixei com Maria, a mulher de Augusto.

Voltando para casa, eu disse pacatamente pra Victor que precisávamos resolver umas coisas. Antes, porém, preparei-lhe a janta e depois fui ao quintal. Lá não há iluminação artificial, a única luz de toda a região vem da mãe lua. Sentada ao lado da velha e seca árvore com minha bolsa do lado, eu o esperei por alguns minutos, até que ele apareceu.

Como de costume, ele se escorou sentado no tronco da árvore. Eu já chorando comecei a jogar tudo o que eu tinha para dizer e quando revelei o pior, ele negou. “Covarde!”. Quando os ânimos se exaltaram, ele disse que era um homem carente, que eu não lhe dava carinho, mas não confessou o crime. “Quanto mais fala, mais se entrega”. Falou que amava Aninha, que não fazia mal a ela. A voz daquele homem já tinha chegado a um nível repulsivo, foi quando ele tentou se levantar, e não conseguiu. Então, eu engatinhando para perto dele lhe disse:

- Eu também tenho meus truques. Eu sei o que você fez com Aninha, seu monstro! No seu copo, eu coloquei um veneno que te deixa imóvel por alguns minutos antes de te matar de vez. Nem tente se mexer, pois será em vão. Mas, Victor, eu não quero só seu corpo sofrendo aqui, quero ver sua alma sendo devorada – falei enquanto preparava o ritual de julgamento, o qual coloco uma bandeja próxima do agressor com algum objeto da vítima e coloco ao redor urubus mortos coberto com véus pretos, pois essas aves carregam dentro de si entidades que podem ser invocadas, entidades carniceiras que devoram as almas pútridas do agressor.

Victor, com um olhar de pânico, tentava se mexer. Eu, já vestida de preto e fazendo movimentos ritualísticos com as mãos, percebi que os véus e os urubus começavam a se mover e subir. Victor se desesperou. Realmente a imagem era perturbadora, mas justiça precisava ser feita. Depois de falar algumas palavras misteriosas, as entidades já estavam prontas para ouvir minhas ordens. Eram quatro e tinham cerca de dois metros de altura. No rosto tinham uma caveira grande de urubu que era parcialmente coberta pelo véu que estendia sem tocar o chão como fantasmas.

Não nego que ainda tinha sentimentos por ele, mas a covardia cometida não lhe dava o direito de ir para o Inferno e sofrer longe de meus olhos. Depois de um “Adeus, Victor”, joguei na bandeja a boneca que ele deu para Aninha. De imediato, como bestas selvagens, as entidades abaixaram-se para cheirar o brinquedo. Então dei a ordem.

Meus olhos se arregalaram com a cena. Os calafrios eram constantes. Tremi e senti um forte aperto no peito ao ver a reação daquelas sombrias entidades sedentas pelo espírito podre. O ritual estava funcionando, mas não como eu esperava. “Oh! Meu Deus! O que eu fiz?”.

Remorso, pena e vergonha. Para minha surpresa, imponentes e medonhas, as soturnas entidades viraram-se ávidas e voaram rasgando os ventos agourentos da noite rumo à casa do vizinho onde eu inocentemente tinha deixado Aninha.

TEMA: magia.

HENRIQUE SANTOS CE
Enviado por HENRIQUE SANTOS CE em 11/11/2019
Reeditado em 11/11/2019
Código do texto: T6792519
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