- INOCENTES - CLTS 09

Tomou um gole de “paceña”. Apertou o cigarro no cinzeiro. Olhou a tecla “enter”. Já estava prestes a acioná-la quando, porém, foi surpreendido com a matéria veiculada na televisão que roubou-lhe a atenção:

“Três bolivianos invadiram ontem à noite a casa do político brasileiro denominado pastor Jainho. A ação do grupo provocou a ira dos brasileiros. As cenas de selvageria surpreenderam a polícia local. Após arrombarem o cofre da casa o trio ateou fogo no corpo do pastor. Laudos preliminares apontam que seus membros genitais foram decepados e o corpo incendiado ainda com vida. Uma tremenda contradição, pois aquele que mais defendeu os direitos dos imigrantes fora brutalmente assassinado por um grupo deles. Após a barbárie, os assaltantes empreenderam fuga. A polícia conseguiu interceptar o carro dos bandidos que ao avistarem a presença da força policial começaram a atirar. Os policiais revidaram e no confronto, dois bandidos foram mortos, identificados respectivamente como Gonzalo o jardineiro da casa e seu irmão Juan. Um terceiro, conseguiu fugir, tendo paradeiro desconhecido”.

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Àquela altura da madrugada uma névoa branca ocultava a rua de paralelepípedos. Foi exatamente dali que emergiram os três bolivianos. O jardineiro já houvera feito o dever de casa, portanto, nenhuma câmara poderia captá-los. Ao menos o pastor Jainho tivesse uma conexão mais fina com Deus, aceitaria o convite do Coronel Heitor e pernoitaria em Brasília naquela fatídica noite, evitando assim a tragédia.

Algumas horas antes...

O coração acelerava incontrolável, tinha a nítida certeza de que desmaiaria ali mesmo, da famigerada tribuna. Já não sentia o corpo há horas, tão somente palpitações em todas as partes do corpo. Jamais conseguira contornar a ansiedade, o que era estranho, pois estava no quarto mandato de Deputado Federal. Entretanto, evidente que uma homenagem daquela envergadura haveria de deixar qualquer mero mortal com borboletas no estômago, portanto, a ansiedade daquele dia era plausível.

O pastor Jainho notabilizou-se por seus relevantes serviços prestados aos refugiados oriundos de países em guerra. Foi missionário de uma grande Igreja evangélica brasileira na África, América Central e Caribe e em alguns países da América do Sul. No entanto, entrou em conflito com referida Igreja, segundo ele, mas com detalhes que nunca expôs, não poderia congregar em um espaço cujo objetivo era fazer da fé um dinheiro. Foi neste contexto que deixou a vida religiosa e ingressou com êxito na carreira política.

Em que pese os conflitos religiosos, o pastor Jainho jamais apartou-se dos valores cristãos os quais eram a base de sua plataforma política. A defesa da família e dos valores tradicionais abalados pelo mundo moderno, deu-lhe sucessivas vitórias recordes para o Congresso Federal. A presidência da República era o caminho inexorável de sua invejável e fulminante carreira política.

Jamais abandonara também a proteção aos refugiados. Criou a ONG “INOCENTES” cuja tarefa principal consistia em dar apoio às crianças em situação de vulnerabilidade em países em guerra civil. Foi exatamente por tal contribuição que recebia naquela noite a Ordem Nacional do Mérito, maior honraria que um cidadão brasileiro poderia receber por seus serviços prestados a pátria.

Olhou o discurso tingido no papel por seu assessor. Mal podia vê-lo. As letras perambulavam pela folha de papel. Um rio de água corria sobre o rosto. Respirou fundo e discursou para mais de quinhentas vozes atentas no plenário:

“Povo brasileiro. Irmão estrangeiros. Vivemos em tempos sombrios. A modernidade trouxe o avanço tecnológico que muito nos ajudou a superar alguns dilemas da humanidade. No entanto, ao mesmo passo, nos afastou de Deus. Destruiu a sagrada família e acima de tudo, profanou os valores cristãos. Os países vivem em guerra pelo controle dos bens da natureza e pelo controle da riqueza produzida pelo planeta. Quem mais sofre nesse desenfreado e frenético conflito são as crianças. É preciso mais do que nunca protegê-los, pois são eles o futuro. Sem eles não há um amanhã. Pois, como disse Jesus: “vinde a mim as criancinhas porque é delas que é feito o reino dos céus”. É preciso desenvolver, porém com responsabilidade. As reformas precisam serem feitas para o Brasil entrar no caminho do desenvolvimento, mas não se pode olvidar do social. Salve Deus, Salve o Brasil, Salve as Crianças. Muito obrigado!”

Palmas ecoaram pelo plenário.

- Com essas reformas não há futuro. Resmungavam alguns deputados. “Essas reformas significam fechar os olhos para o social” bradavam outros.

- Futuro presidente! Sentenciavam alguns.

- Já está tudo certo para o Lago Paranoá, deputado. Disse o Coronel Heitor com uma palmadinha no ombro.

- Preciso voltar para São Paulo. Meu voo sai em meia hora. Não poderei prestigiá-lo hoje. Disse-lhe o Pastor Jainho.

Em São Paulo, Gonzalo, jardineiro da casa pastor, desligava todas as câmeras de segurança da casa.

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Heitor olhou o cardápio e escolheu o prato.

- Esse pastor!

- Eh Coronel, poderia ter escolhido algo menos complicado. Esse vai custar uma nota. Ainda está na Bolívia.

- Você sabe que eu te remunero bem para dar conta do meu paladar. Respondeu Heitor. Os dois sorriram.

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Juan tivera dois filhos. Ayelen e Ramón. Ayelen morrera por um policial nos confrontos da Guerra do Gás em 2003. Quando os militares forçaram a renúncia de Evo Morales e eclodiu uma verdadeira Guerra Civil no país, a única coisa que ele pensava era em como proteger seu filho Ramón. Portanto, quando o diretor da renomada ONG INOCENTES ofereceu refúgio ao seu filho no Brasil, foi como se Deus colocasse uma luz no fim do túnel, pois o Brasil era o lugar ideal para a morada do filho, haja vista que seu irmão Gonzalo já morava há mais de uma década no país do futebol

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Em sua casa às margens do Lago Paranoá o Coronel apresentava sua mais nova criação aos seus nobres pares.

- Vejam senhores essa maravilha da natureza. A textura. A jovialidade. Fixem na consistência da pele. Eu lhes apresento Ramón, boliviano, 14 anos. Empalhado nesta semana.

Uma salva de palma emudeceu o ambiente enquanto o corpo empalhado de Ramón fazia companhia a uma dezena de outras crianças.

- Senhores – continuou o Coronel – queria fazer um brinde a pessoa que fez com que essa coleção tornasse realidade. Viva o pastor Jainho!

- Vivas. Gritaram todos.

- Senhor, notícias de São Paulo. Disse algum dos empregados do Coronel entregando-lhe o telefone.

- A casa caiu – disse o delegado do outro lado da linha – acabaram de matar o pastor.

- Assalto?

- É uma possibilidade, porém o cofre foi arrombado.

- Qual cofre? Aquele cofre?

- Sim.

- Caça e mate todos. Sentenciou o Coronel.

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Sorriu sarcasticamente ao ver a reportagem. Tomou outro gole de “paceña”, ascendeu outro cigarro e finalmente acionou a tecla “enter”.

Naquela semana um despretensioso site boliviano denominado “La Interceptación”, em uma série de reportagens sob a alcunha de #no_hay_nada_de_incocentes sacudiu as bases do cenário político brasileiro.

Em mais de 20 publicações o site cuja a identidade do autor nunca se pode conhecer, revelou a existência de uma ONG que traficava crianças para fins diversos. Revestida por um suposto apoio às crianças refugiadas a organização criminosa operava o tráfico de pessoas sob o manto da legalidade. Demonstrou-se, em materiais aprendidos na casa de um pastor, líder da ONG, a existência de uma espécie de cardápio no qual crianças de países em convulsão social eram comercializadas.

Na última reportagem da série, narrava-se a história de um boliviano que quase fora empalhado na infância. De como referido boliviano houvera encontrado seu algoz caminhando recentemente em seu país natal e de como, nestas circunstâncias, sua vida cruzara com um certo jardineiro e seu irmão.

Tema: Imigração

bily anov
Enviado por bily anov em 18/11/2019
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