O Rei dos Mares

O Rei dos Mares

Não haviam mais peixes. Seu Delúzio foi olhar a geladeira que encomendou da capital e comprou após oito meses economizando. O congelador, onde ele colocava os peixes que pescava para comer no almoço e no jantar com sua esposa só tinha gelo sujo dos líquidos que os peixes recém-pescados soltavam, após serem lavados. No andar debaixo só havia um saco com três batatas, alguns temperos e um saco que dava para pelo menos uma xícara de arroz. Foi bisbilhotar os armários para ver se tinha pelo menos uma lata de sardinha que ele comprara no mercado, e que provavelmente ele mesmo pescou e vendeu para os frigoríficos que enviavam seus caminhões as seis da manhã e iam embora em menos de meia hora porque os representantes das empresas de pescados não gostavam de passar muito tempo naquela cidadezinha portuária onde viviam pescadores gordos, velhos e fedendo a peixe, alga marinha e água salgada contaminada pela merda que os próprios moradores arremessavam ao mar pela ausência de saneamento. Quando iam negociar os valores de dez isopores, cada um comportando cerca de vinte peixes frescos de tamanho médio, mal olhavam na cara dos pescadores, falando muito pouco e tentando dizer de forma dura o preço que queriam pagar, cuja postura praticamente queria dizer: “ou vocês aceitam receber o que queremos pagar, ou simplesmente não compramos e vocês que se virem para bancar a manutenção de suas redes e seus barcos”.

Ele olhou pelo menos duas vezes para cada lado do armário para ter certeza de que não havia passado despercebido por uma latinha escondida, de cor verde musgo, talvez camuflada pelos espaços escuros. Mas não havia nada, nem um mísero pacote de bolachas. Na verdade havia algo sim, teias de aranhas, cupins, e ele nem se quer tinha coragem de meter a mão nos espaços escuros, com medo de ter um escorpião venenoso. Se virou e observou a mesa da cozinha, a pia, depois olhou de novo a geladeira. Nada.

Pensou em ver em sua carteira se havia algum tostão furado para juntar com moedas que poderia encontrar pelo chão para conseguir comprar uma lata de sardinha, mas também estava vazia. A última vez que Delúzio teve dinheiro foi para concertar o buraco de seu barquinho velho e comprar uma rede nova, pois a anterior aguentou até onde podia, mas tal hora suas cordinhas começaram a se quebrar e ele ignorou até o dia em que ela se partiu totalmente durante uma pesca e ele perdeu todos os peixes e praguejou contra os mares. Ao sair da cozinha, observou sua esposa, Ofélia, trajando um vestido preto e longo. Ela fazia um bordado, sentada na cadeira da entrada da casinha onde moravam. Ela tinha seu próprio pequeno negócio de bordar paninhos que seriam usados como trouxas de almofadas, lençóis e até paninhos de bebês. Ela sempre fazia, mas com um olhar melancólico no rosto. Ele sabia o motivo de sua melancolia. Pois quando eram mais jovens e igualmente pobres, por mais que a situação fosse à mesma daquele momento, havia uma criança correndo pela casa. Um menino, o menino Jonas. Ele sempre acompanhava e ajudava o pai nas pescas, a partir sete anos de idade.

Eles o amavam como sendo um presente que Deus lhes deu para compensar toda a pobreza de suas vidas. Como eles moravam perto da praia, ele sempre ia nadar no mar e sua mãe sempre saía pela porta da casa e gritava para o menino jamais sair do raso. Para que ele não quisesse jamais se encorajar a passar dali, ela dizia sempre que o Rei dos Mares era cruel e se alimentava de crianças. Era uma lenda, mas uma lenda eficiente. Até os pescadores velhos e cegos de um olho diziam que haviam visto o Rei dos Mares e por isso só saíam para pescar em grupos. Seu Delúzio só acreditava em Deus como uma única força de dar e tirar a vida. Até que um dia, quando Ofélia fazia feliz uma moqueca de arraia para o jantar, por volta das cinco da tarde, após um curto período de bons resultados na pesca que lhes propiciou comprar uma bandeja de pedaços de arraia no mercado, Jonas brincava na água sem noção do tempo, não importava o quão seus dedos ficavam enrugados e ficava frio com a anoitecer, o menino parecia um peixe, um sereio, que não saía da água por nada, brincando com conchas. Enquanto isso, Delúzio descansava após um dia cheio de trabalho. Eles achavam que tinham total confiança com o filho brincando na água. “Ele sempre sai e volta para nós”, era o que pensavam. O barulho do bater das águas era sua segurança de que o menino estava lá. Até que em dado momento, o barulho parou. A mãe pensou que ele havia saído e já estava voltando. Ainda era relativamente claro, apesar do céu nublado.

Passaram cinco minutos e depois dez minutos. Ela parou a moqueca e pensou que ele pudesse estar procurando conchas ou que algum vizinho tivesse ido falar com ele. Então ela deixou a comida e saiu pela porta do casebre de madeira e foi olhar na praia para ver se via seu menino, mas não havia nada, só a água formando pequenas ondas e a areia vazia. O desespero tomou conta de sua mente em um único segundo e um aperto no peito também. Ela gritou pelo menino. Seu grito não começava com um tom de interrogação, como se a qualquer hora ele fosse levantar sua cabeça debaixo da água e responder, ou sair de trás de algum outro casebre de madeira lá perto, seu grito era forte, estridente, como se tivesse visto seu filho sendo puxado pela correnteza, ou estirado no chão com a barriga e o peito abertos, com as vísceras de fora e gaivotas carniceiras se alimentando de seus órgãos internos.

Os olhos dela ficavam vermelhos e ardidos, como se tivesse pingado limão por dentro do nariz, fazendo-a lacrimejar. Seu maior desejo era que ele aparecesse e aquilo só teria sido um medo horrível, porém momentâneo. Até poderia lhe dar umas palmadas pelo susto e depois abraça-lo forte e lhe dar dois beijos na testa, por ter seu menino em seus braços. Ao ver que não havia sinal dele, ela correu para seu quarto próximo à cozinha e encontrou seu marido repousando na cama, com seu sono pesado. O sacodiu e ele acordou na hora.

Delúzio. Nosso filho. Não tô vendo ele. Ele sumiu, Delúzio. – dizia ela entre um soluço e outro, com a voz soando igual a um gemido por causa do choro.

Seu Delúzio nem disse nada, saiu da cama como se nem carregasse uma barriga enorme que sempre lhe prejudicava para levantar da cama e correu para fora do casebre, pegou seu barquinho, os remos, o levou para a água. Remou com toda a força que tinha nos braços, sentindo falta de ar, mas sem nem se importar com isso. Preferia ele morrer de ataque cardíaco a ter seu filho afogado ou comido por um tubarão. Ele ia determinado a chegar a outro continente se fosse necessário, e de vez em quando olhava para trás e via Ofélia parada como uma estátua na areia, com as mãos juntas e um rosário no meio. Ela rezava com os olhos vidrados na água. Ele remava e gritava.

JONAS! JONAS! JONAS!
CADÊ VOCÊ MENINO!
APAREÇA MEU FILHO! PELO AMOR DE JESUS! CADÊ VOCÊ.

Tal hora ele começou a chorar também. Já aceitando a dura realidade de que o menino fora engolido pelas ondas e estava no fundo do mar escuro e profundo. Foi então que avistou uma enorme mancha de sangue se diluindo aos poucos pela água. Nem adiantava ele pular, pois naquela hora, com os céus nublados, era impossível enxergar ali embaixo.

POR QUE DEUS? POR QUE? SEU MALDITO.
IMPIEDOSO. ELE ERA MEU FILHO E NÃO SEU!
POR QUE? POR QUE?- Gritava ele, com o som de sua voz formando um enorme eco pela imensidão do mar.

Ele voltou remando agora vagarosamente, em silêncio. Sua única vontade era de morrer. Ser engolido pelos mares também. Queria que o Deus ou talvez a porra do Rei dos Mares o levasse e devolvesse seu filho.

Ofélia olhava para o marido que estava em silêncio e com a cabeça baixa. Ela que não havia visto o mesmo que Delúzio, e nem ouvido seus gritos contra Deus após lidar com a dura verdade, torcia para que, quando o barco chegasse à margem, ela pudesse correr até ele e encontrar o filho ainda transtornado após ser salvo de um afogamento.
Queria poder levantar seu corpinho de menino e acariciar seus cabelinhos ondulados, com a água salgada molhando seu vestido cinza, mas com a ideia de que a alegria de sua vida estava a salvo. Queria olhar seus olhos castanhos e suas pálpebras baixas. Seria só um susto. Um susto daqueles, mas só um susto.

Quando Delúzio enfim chegou à margem, ela correu até o barco para olhar e viu que estava vazio. O marido olhou para ela e começou a chorar como um bebê. Ela caiu de joelhos na areia com os punhos fechados e chorava alto, gritando.

NÃO! NÃO! NÃAAAAO! POR QUE? POR QUEEEEE?

Ele se levantou do barco e tentou abraçar a esposa para lhe dar conforto. A princípio ela rejeitou. Queria algum ser humano para culpar, e o único presente era seu marido. Mas ele a abraçou mesmo assim e ela cedeu. O abraçou forte enquanto chorava em seu peito com a boca aberta, soluçando. Qualquer pessoa que os conhecesse, diriam que era um casal de pessoas pobres e feias, pelo excesso de peso, a pele mal cuidada, talvez um nariz grosso, mas qualquer pessoa seria incapaz de tamanha maldade e se compadeceria pela tristeza daquele casal.

O jantar poderia estar delicioso, mas não tinha gosto de nada e mal conseguiam olhar um para o outro e para o terceiro banquinho, que se encontrava vazio. Retirar o terceiro prato, a terceira faca e o terceiro garfo da mesa foi uma tortura interna para Delúzio.

Os tempos se passaram, e o pescador envelhecia, se entregava ao álcool e durante um tempo, ele e Ofélia decidiram que ninguém mais daquela família iria adentrar os mares novamente. Iriam procurar outro meio de sustento. Mas a realidade lhes bateu a porta. A economia do porto era só baseada em pesca. Os pescadores não podiam vender peixes uns para os outros em feiras na rua porque vinha a polícia, recebendo ordens da prefeitura, e mandava todos irem embora, porque não podiam vender comida que não passasse por inspeção e controle de qualidade. Nem ele e nem a esposa tinham economias suficientes para morarem na capital e o marido pudesse procurar emprego por lá. Já beirava os cinquenta anos e ela os quarenta e dois. Ninguém nessa idade conseguia emprego nenhum. Quando a fome já não era mais suportável, o marido então voltou a pescar. Ele passou a odiar aquilo, mas não aguentava a ideia de morrer lentamente de fome.

Passado a lembrança que tivera ao ver a mulher bordando, Delúzio foi até ela que o olhou calada, um pouco melancólica, mas aparentemente calma. Ele a beijou na testa e pegou a sua mão que não continha mais agulha, já que ela a enfiou no bordado e beijou a palma. Não disse nada.
A esposa já não tinha mais segurança de que ele voltaria, e nem ele tinha mais segurança de que ela não morreria de tristeza. Ambos só estavam vivos porque ainda preferiam conhecer o paraíso e viver com aquele Deus impiedoso que lhes tirou seu filho, do que viver no eterno fogo do inferno por tirarem a própria vida.

Eram por volta de quatro da tarde e a ideia era pescar pelo menos uns dois peixes para o jantar e o almoço do dia seguinte. Sem café da manhã. Eles quase nunca tomavam café da manhã, talvez um pão com café preto se tivessem algum dinheiro, mas naquele período, as coisas estavam ruins, poucos peixes. Ele pegou seu barquinho, uma vara de pescar improvisada que ele guardava no quarto, algumas iscas, os remos, levou tudo até a margem, subiu no barco e seguiu remando até alguma altura onde normalmente haviam peixes.

Já no mar, sentado dentro do barco de madeira, ele simplesmente colocava a isca no gancho, jogava a corda da vara dentro d’água e ficava esperando. Perdia um pouco a noção do tempo olhando as pequenas ondas, escutando o assobio do vento que empurrava a água, o som de pequenas gotas todas juntas, sendo a arrastadas. Ele observava o horizonte, admirando o encontro do sol com o mar. Por mais que o mar tivesse virado um de seus inimigos mortais, ainda conseguia ver beleza ali, sentir o quão boa era a sensação do vento batendo em seu rosto, seus cabelos, suas costas. Quase cochilava ali mesmo, com as costas curvadas, mas acordava toda vez que sentia que iria soltar sua vara de pescar. A cada meia hora mais ou menos, ele ia um pouco mais longe, para ver se em outra parte do mar haviam peixes. A imagem da praia e de sua casa, entre todas as outras, ficava mais distante. Para um homem de meia idade, sua visão até que era boa, mas daquela distância, as casas só pareciam uma mancha amarronzada sobre uma outra enorme mancha amarela escura da areia. Ele continuava tentando pescar e não ceder ao sono e ao tédio. O céu nublado ia ficando cada vez mais escuro e a sensação de solidão aumentava. Ele olhava para cada nuvem e cada parte do céu, talvez um primeiro sinal da lua aparecendo ou alguma estrela, mas não olhava para o mar, logo o que estava mais perto, não suportava olhar para aquela imensidão meio cinzenta e meio esverdeada da água, pois só lhe lembrava o sangue, aquele sangue escuro, pois misturado com a cor da água, perdia seu vermelho vivo. Seu único desejo era que pelo menos um maldito peixe mordesse sua isca e ele pudesse voltar para a praia. A ideia eram ser dois, mas ele queria ir embora dali.
O tempo passava, ele já havia remad
o para mais longe, já havia cochilado por mais uma incontável vez, e quando se dera conta, havia anoitecido. A lua sobre ele lhe proporcionava uma única luz. Uma luz azul meio branca. Era lindo aquilo, mas muito sozinho, até um pouco assustador.

Ele já havia estado no mar à noite antes e voltava para a casa iluminado pela luz da lua. Não era necessário uma lanterna pois não havia estrutura alguma que impedisse aquela luz forte e bonita. Ao se dar conta de que a noite havia coberto as águas, pensou em voltar. Por mais bonito que tudo aquilo seria, o mar era um lugar perigoso. A maior ironia da vida de Delúzio era que ele trabalhava no mar, mas quando criança, morria de medo. Ele já havia mergulhado algumas vezes no mar aberto durante sua adolescência, pela manhã e enxergado a vastidão do oceano, olhando para todos os lados, e em qualquer momento, podendo ver um ponto lá longe, que poderia se aproximar lentamente, e ficar maior e depois se revelar um dos monstros aquáticos, sejam os que todos já conheciam (como os tubarões ou as baleias), ou algo que o ser humano só imaginava que lá havia, aqueles contados em histórias de pescador. Naquela cidade, algumas lendas trazidas do estrangeiro já circulavam, como o Leviatã, a enorme serpente dos mares, mas que mais parecia também um dragão aquático. Uns diziam que tinha barbatanas menores que corpo, outros diziam que tinha o que pareciam tentáculos, com garras nas pontas, que cospia fogo azul e engolia as embarcações simplesmente abrindo a boca e descendo até elas, as empurrando para dentro do mar. Outro que também o assustava era o Kraken, que mais parecia um polvo gigante, com seis olhos, uma boca gigante, com fileiras e mais fileiras de dentes, que iam até a garganta, e no fundo de sua garganta o escuro, esse escuro onde todos eram levados e esquecidos. O Kraken destruía os navios maiores com crueldade. O penúltimo era o Nokken. Ele vinha com ondas fortes, gigantescas. A única coisa que se poderia ver era sua sombra por detrás delas, sua cabeça com algo que pareciam chifres e os olhos enormes e azuis, sem pupilas. As pessoas morriam antes mesmo da criatura as devorar.

Aquela altura da vida, ele não mais acreditava naquilo. Eram só histórias. A imaginação pregando peças. No fim das contas, o único monstro mesmo, era o mar. O mar que levou seu filho embora. Esse sim era o real Leviatã. O mar furioso com toda a porcaria que nele era despejada, por ter que suportar o peso de barcos, navios e corpos humanos, por tragar da cachaça ruim de homens que pegavam seus barcos completamente bêbados, caíam e se afogavam. Talvez, Delúzio só pagava pelos erros de outros pescadores, talvez de seus antepassados. O mar era uma maldição.

Ao olhar as nuvens, elas tomavam o céu e aos poucos ameaçavam de cobrir a lua, tudo ficar escuro e ele não saber como voltar.

Quando então puxou a vara para dentro da água e tocou seus remos, ouviu um barulho de algo emergir da água atrás dele. Foi aí que sentiu um gelo na espinha. Ele não queria olhar. Se fosse um dos monstros que eram contados nas histórias, prestes a devora-lo com tranquilidade, ele preferia nem ver, só deixar. Não queria que sua última visão fosse uma criatura assustadora e ameaçadora. Por um momento, também pensou que finalmente veria seu filho. Seu filho MORTO. Mas que pelo menos seria recolhido e levado para um enterro digno, e ganharia um último beijo de sua mãe na testa e talvez um último carinho nos cabelos ondulados. Ao notar que não havia nenhuma sombra acima dele, o que descartava a ideia de um monstro, e nem o cheio de morte, também confirmando que não era Jonas, ele lentamente se virou para ver o que era.

Iluminada pela luz da lua, havia uma menina, de aparentes doze anos de idade, de cabelos longos que flutuavam pelas águas escuras. Ela tinha uma pele branca, igual a leite. Seus olhos eram bem verdes e seu rosto era fino. A menina parecia uma criança europeia que ele havia visto na página de uma revista rasgada e deixada entre a areia. A menina estava só do pescoço para cima sobre a água. Ele esfregou os olhos e olhou mais atentamente. Ela sorria. Era um lindo sorriso, parecia até um anjo.

Delúzio a olhou e não sabia o que dizer, enquanto ela o olhava como se fosse muda, mas não via maldade nele, como se conseguisse enxergar a bondade nas pessoas. Ele pensou que pudesse estar tendo uma alucinação, mas não tinha por que. Nunca comeu nenhuma semente ou nenhum chá dos índios. Nem haviam índios ali. O álcool também não o fazia ver algo do tipo. Ele estava completamente acordado, lúcido. Olhou para os lados e não viu nenhum barco de onde essa menina pudesse ter aparecido. Ela simplesmente estava lá. Foi então que ele ignorou o absurdo daquela simples situação e tomou coragem.

Ei menina! Saia dessa água. Estamos em mar aberto e está escuro. Suba aqui que eu te levo para a praia.
Foi então que ela decidiu dizer algo.
Eu não posso sair daqui senhor! Eu moro aqui. Sou da água.

A voz dela era doce, voz de criança.

Como assim? Isso é impossível.

Foi então que ela se inclinou para trás e ele pode ver que, abaixo de seu pescoço, onde deveria ter um corpo normal de menina, só haviam escamas, muito pequenas, apesar de que ela tinha curvas no corpo, mas era tudo escama. Ao afundar a cabeça na água, depois o pescoço e o tronco, foi que ele viu uma cauda de peixe e as barbatanas caudais, cujas curvas pareciam formar dois chifres cinzentos.

Depois que a cauda afundou, a cabeça e o pescoço da menina emergiram de novo, mais perto, e parte de seus cabelos pregaram na testa e a outra ficou flutuando na água. Ela continuou sorrindo e virou um pouco a cabeça para o lado, como se tivesse concluído uma bela performance.

Ele olhou tudo absolutamente maravilhado, com os olhos arregalados, sem conseguir se mover. Não acreditava no que estava vendo. De todas as criaturas fantásticas que poderiam existir, justamente as sereias eram reais.

Meu Deus. Vocês existem. Sereias existem!

Ela então nadou para mais perto do barco, apoiou os braços na borda e levantou um pouco.

Sempre estivemos aqui. Escondidas. Fugindo dos homens. Só subimos quando não há mais nenhum humano a vista.

Mesmo achando que nada poderia acontecer, pois mais parecia uma criança, ele não se aproximou. Continuou meio longe, na outra ponta do barco. De qualquer forma, as histórias sobre sereias nunca terminavam na parte delas se apresentarem aos homens. Ainda tinha o canto, a sedução e o afogamento. Sim, a parte horrorosa da lenda. Mas ela não tinha nem começado a cantar e ele nem cogitava ser seduzido por uma menina que mais tinha idade de ser sua filha. Independente de ser ou não humana, parecia uma. Ele sempre achava nojentas as palavras de outros pescadores que começavam a olhar as filhas uns dos outros, e deseja-las, mesmo que tivessem largado as bonecas no dia anterior.

Delúzio era um homem gordo de meia idade, bêbado, de braços e mãos grossas, peludo, era o retrato perfeito de um abusador de crianças na cabeça das pessoas da capital. Mas era um homem íntegro e ético. Para ele, criança era para brincar e aprender.

Por que você apareceu para mim? O que quer?
Não temos tanto medo assim de aparecer para os homens daqui. Seja como for, nossa existência para vocês nunca passa das praias. Mas eu tenho que lhe informar que não há peixes por hoje. Estão todos muito longe.

Delúzio tinha uma série de perguntar ativadas por sua curiosidade para fazer. Mas também não queria ficar ali numa prosa com uma sereia, enquanto ficava cada vez mais tarde. Mas havia pelo menos uma dúvida. Ele queria saber de seu filho. Nem o nome dela ele tinha interesse em saber, e muito menos se ela tinha um. Só queria saber de seu menino Jonas.

Antes que vá embora, quero que me responda algo. O que levou o meu menino?

A jovem sereia moveu um pouco o rosto, demonstrando estranhamento. Provavelmente não esperava por essa pergunta. Enquanto Delúzio sentia-se segurando em um último punhado de areia que ainda não escorregara pela mão e se misturava com o resto da praia, uma praia de esperança perdida, de dúvida e agonia. A sereia então sorriu como se soubesse a resposta.

Eu e minhas irmãs o encontramos e preservamos o seu corpo. Jamais tínhamos visto um ser humano tão de perto. Foi à única criança que encontramos por essas águas, então acho que pode ser ele.
Como ele era? O menino que encontraram.
Tinha cabelos ondulados, a pele era como a sua, nem escura e nem branca, mas foi ficando pálida debaixo da água com o tempo, e os olhos eram castanhos. Estavam bem abertos, como quem vê algo intrigante e assustado. Seus cabelos, mesmo debaixo da água, formavam algumas ondas.

Era ele. Só podia ser. Naquele momento, os olhos de Delúzio lacrimejaram. Ele sabia que seu filho havia morrido. Não tinha esperança de tê-lo vivo novamente, mas pelo menos o veria uma última vez e ele poderia ser sepultado na terra onde foi concebido e onde cresceu. Apesar da tristeza, seu coração se encheu de conforto, de sentimento de paz, que ele já não sentia fazia tempos. A sereia voltou para a água mas não afundou por completo.

Siga-me.

Em seguida ela foi nadando, fazendo um som de água sendo empurrada abaixo da superfície, ainda com a cabeça para fora.

Ele pegou os remos e movimentou o barco em sua direção. Seguia como se cada remada fosse significativa, o aproximando de seu conforto total, da paz de seu espírito.

O que o levou?
Não sabemos. Talvez pode ter sido um tubarão ou uma barracuda. Somos os únicos seres que os humanos não tem conhecimento da existência.

A sereia o levava cada vez mais longe de onde ele já estava, que já era consideravelmente mais longe da praia, mas valia a pena, por mais que ele já não soubesse se eram sete da noite ou uma da madrugada. A lua, no horizonte, ficava cada vez maior e mais radiante formando um enorme reflexo nas águas, enquanto as nuvens já pareciam mais dissipadas e insignificantes em relação ao enorme corpo celeste.

Mas em dado momento, tudo parecia mais frio, mais estranho. Ao olhar para trás e para os lados, a única coisa que via era água. Ele estava em total mar aberto. Aquilo o deixava inseguro, mas ainda se sentia persistente em conseguir o corpo de Jonas de volta. Ele tentava compensar pensando que logo estaria de volta a praia, vendo o rosto de Ofélia de novo. Sentia que as coisas poderiam mudar.
Foi então que a Sereia parou e se virou para ele. Seu rosto já não tinha sorriso algum. Era uma expressão fechada e indiferente. O gelo voltou à espinha de Delúzio.

Naquele momento, viu uma fumaça emergir das águas e transitar por volta do barco e por volta dele. O cheiro era forte, nauseante. Havia cor naquele vapor. Era um verde musgo estranho, como se ele estivesse navegando em pântano e não no mar.

Das águas, surgiu uma sombra. Era enorme.

Ele foi um pouco para trás, quase na popa do barco. E da água não emergiu seu filho, nem o Leviatã, nem o Kraken, ou qualquer outra criatura que ele conhecia das histórias trazidas do estrangeiro.
Da água emergiu algo muito mais horripilante. Era enorme, colossal.

Era um MONSTRO. Talvez uma das criaturas menos imagináveis que qualquer ser humano podia presenciar. Sua imagem era indescritível.

Não tinha uma forma semelhante à de nenhum animal aquático existente, parecia quase alienígena. Mas além de uma pele cinzenta, a criatura tinha olhos.

Os olhos não eram redondos, mais pareciam losangos deitados, mas sem pupila ou íris, era verde limão. Aquele ser era tão grande que o barco de Delúzio mais parecia uma folha caída em frente a uma árvore frondosa. Por mais que não tivesse pupila ou íris, algo o fazia sentir que aquilo o olhava fixamente.

A criatura também tinha boca que foi sendo aberta lentamente e revelando fileiras e mais fileiras de dentes que davam voltas por todo o espaço da bocarra, e que iam até um buraco escuro. Não havia língua, só aquelas enormes mandíbulas.

Do buraco escuro saíra uma fumaça que se moldava a imagens.
Delúzio se sentiu num estado de transe. Ele via perfeitamente o que a fumaça da boca do monstro queria mostrar. Eram cenas de destruição. Barcos sendo afundados, homens, mulheres e crianças dilacerados. Gritos, choros, desespero e morte. Era o caos. Pareciam tempos antigos e esquecidos pelo medo. Por último. Ele viu uma criança formada pela fumaça, sendo levada pelo mar, com o braço levantado para superfície e a mão aberta como se esperasse que alguém fosse segura-la. Ele sabia quem era e o que estava o levando.

Quando a fumaça se dissipou por completo, Jonas acordou do transe.
Aquele ser medonho continuava lá, exibindo sua enorme fileira de dentes e seus olhos sem vida. Em seguida, um barulho grave, gutural e extremamente alto saiu daquela enorme boca, fazendo com que a água vibrasse e o barco de Delúzio balançasse.

Ele olhou para a sereia que começara a tremer, como se estivesse convulsionando. Veias esverdeadas subiram seu pescoço e foram até a testa. Sua pele que era branca como leite adquiriu um tom cinzento e escamoso, e seus olhos se moveram, ficando só o branco do globo ocular. A boca da sereia se abriu. Ficava cada vez maior, até desproporcional. Dentro, também se revelaram fileiras e mais fileiras de dentes afiados.

Ela afundou e em seguida emergiu com um salto, revelando todo o corpo, mas as escamas estavam mais grossas e para fora, como lascas de madeira e as gotas desciam da barbatana caudal e caiam de volta na água.

Delúzio, impressionado e apavorado, virou a cabeça para o lado, levantou os braços e quando aquela criatura outrora bela e agora monstruosa caiu sobre ele, o homem a segurou onde podia, colocando o antebraço em seu pescoço, para que aqueles dentes não fossem de encontro a sua face. Ela forçava para frente, fechando e abrindo a boca como se estivesse tentando morder. Foi quando ela se inclinou um pouco para trás e voltou cravando a primeira fileira das mandíbulas no braço do pescador, que sentiu uma dor lancinante, como se cinquenta mil escorpiões o ferroassem. Ele gritou o mais alto que podia. O outro braço segurava a barriga da criatura. Como muito esforço conseguiu empurra-la para fora do barco, fazendo com que ela caísse de costas na água e afundasse. Mas era questão de tempo. O monstro, que ainda se encontrava imóvel cobrindo parte da lua, produziu outra vez aquele som assustador.

Delúzio novamente sentiu que ela voltaria. Então retirou rapidamente o gancho de sua vara de pescar improvisada e o segurou com toda a força.
Novamente, a “sereia” saiu de dentro da água com outro salto. Quando ela estava caindo de novo sobre ele, o pescador segurou seu rosto e a deitou com força sobre o chão do barco, se posicionou sobre sua calda que debatia sobre a madeira e cravou o ganho em seu pescoço arrastando-o com força para o lado direito. O movimento de seu braço era forte e transmitia todo o ódio que ele sentia naquele momento.

De dentro da boca daquela pequena e abominável criatura, saía um barulho semelhante ao de um ser humano tendo a garganta cortada.
De seu pescoço esguichou um líquido verde vivo que sujou o queixo, o pescoço e o peito de Delúzio.

Sua cauda já não se mexia mais e a criatura virou nada mais nada menos que uma carcaça morta, que foi arremessada de volta na água.
O monstro enorme que observara tudo soltara então um terceiro “grito”, mais alto, e dessa vez mais carregado de um possível ódio.

O homem, agora deitando sobre a popa do barco, cansado, recuperando o fôlego, já aceitava que não voltaria pra casa, que iria ser devorado de qualquer jeito. E em seguida o mostro se aproximou cada vez mais em direção a ele, cobrindo a lua, lhe envolvendo na escuridão. Ele então aceitou de vez o fim. Até que a escuridão o tomou por completo e ele só fechou os olhos.
Fim.
Gabriel Craveiro
Enviado por Gabriel Craveiro em 26/11/2019
Reeditado em 17/03/2020
Código do texto: T6804618
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