A ÚLTIMA VIAGEM DO SHINDA OTOKO - Clts 09

Nossa raça sempre foi muito forte. Onde os demais sucumbem, nós prosperamos.

Eram dias difíceis, a tristeza no olhar, a fome na barriga fazia as pessoas desocupadas migrarem de um canto a outro como folhas secas ao vento no fim do outono. O trabalho era escasso e a cada dia os centros urbanos recebiam mais miseráveis trazendo consigo toda sorte de doenças. A solução foi exportar aquelas almas.

A madrugada estava fria quando embarcamos no Shinda Otoko, um velho baleeiro modificado para transportar os rejeitados pelo sistema.

O governo japonês incentivava a imigração ao distante continente americano, desejava o mais rápido possível livrar-se daquele fardo social. Das novas terras, sabíamos apenas que o verão durava o ano inteiro. Ao chegar, tínhamos a promessa de encontrar vastos campos com sustento abundante.

A viagem seria longa, quase trezentas pessoas espremidas nas entranhas imundas do navio que cheirava a vômito e fezes. Passamos por algumas ilhas antes de avistarmos o Kasato Maru ancorado ao largo do porto de Kobe. Ele seria nosso guia, bastava direcionar a proa em rota de abordagem e segui-lo até nosso destino. Eles levavam colonos, nós, os desterrados malditos, homens falidos e pequenos delinquentes.

A primeira morte a bordo não causou alarde. Higaisha foi encontrado sem sinais de agressão, seu corpo esquelético pesava menos que uma criança, nos olhos marejados de sangue, a expressão do pavor. A causa foi atribuída às péssimas condições da viagem. Apenas quando encontraram o oitavo morto é que se cogitou a obra de um assassino rapidamente descartada. Poderia ser desnutrição ou alguma nova praga disseminada por um daqueles indigentes.

Durante a noite, o medo parecia sussurrar palavras de mau agouro por cada fibra do casco da embarcação.

Nos dias seguintes a tripulação ficou alerta, os passageiros confinados a certas partes do navio tornaram-se pasto daquela nova epidemia. Toda manhã, novos corpos eram entregues ao mar. Receoso, o capitão do Kasato Maru acelerou deixando-nos à nossa própria sorte, evitaria assim o contágio.

A sós naquele deserto oceânico o pânico se alastrou, corpos degolados manchavam com seu sangue a alvura das espumas do mar. Retornou a desconfiança, alguém poderia estar eliminando os prováveis vetores da moléstia, ou apenas cedendo aos impulsos de sua índole duvidosa.

Uso Tsuki ainda não poderia ser considerado um ancião, mas em sua vivencia acumulou certos conhecimentos, mesmo que outros duvidassem ele sabia o que aqueles pobres homens estavam enfrentando. Os seres que habitam as sombras, as criaturas noturnas que desde eras antigas rastejam ocultas entre os homens denominavam-se Sumin Shi e estavam ali devorando um a um os sobreviventes. Tsuki agarrou suas crenças, foi ao capitão, procurou seus amigos e mesmo assim, condenado por seus crimes passados não era digno de confiança. Nesta hora amaldiçoou-se por usar seus dons apenas para ganhar uns trocados que se esvaiam na bebida e no jogo, tanto tempo enganando os desavisados que agora quase não acreditava em si mesmo.

O passar lento dos dias se tornou insuportável, o balanço do mar somado à ociosidade enjoava os passageiros, quando as luzes se apagavam dava a impressão que as estrelas dobravam seu tamanho, os lamentos tornavam-se murmúrios e estes aos poucos diminuíam até que o som da quilha cortando as águas vencia o ronco cansado do motor que num último esforço se projetava ao desconhecido.

Escapando do ar viciado dos porões, Kare Wa Ikinai conseguia sempre um jeitinho de permanecer no convés, era o momento de refletir sobre os erros do passado e sonhar com um futuro melhor, ali se encontrava uma alma arrependida, mesmo que a necessidade o impelisse ao sombrio mundo do crime, nos últimos anos o consolo foi ter cuidado da idosa mulher que lhe deu a vida e com lágrimas nos olhos agradecia por ela ter partido antes que seu mundo ruísse no dia que a guarda da província lhe colocou os grilhões.

Aquela noite parecia mais bela, uma infinidade de pontos luminosos clareava o negrume do céu, bem no alto a lua resplandecente lhe trazia paz.

Lua, estrelas e mar, entre eles um homem e seus sonhos.

Algo pareceu mover-se a seu lado tirando-o de seus devaneios, por um único instante a brisa tocou seu rosto como uma mão gelada que fez seu corpo tremer. Alguém o observava.

Com medo da punição, Ikinai sorrateiro tentou retornar ao dormitório. Melhor o calor de tantos corpos suados do que o resto da viagem em cárcere.

As sombras dançantes se projetavam em seu caminho. Nas águas, espumas formavam-se deixando uma trilha de saudades. Dos cantos ocultos, olhos sedentos de vida procuravam alimento. Um grupo de homens movia-se apático logo a sua frente. De postura arqueada com os braços pendentes esforçavam-se em dar o próximo passo, a vontade lhes fora roubada.

Não podia se revelar, os tripulantes iriam denuncia-lo, a comitiva seguia em direção ao breu noturno, ele se manteve na espreita, sua curiosidade não permitiu seguir seu rumo, acompanhou-os a certa distância até seu corpo ser alvejado por dezenas de olhares. Em vez de observar, agora era observado, à sua volta, ocultos na penumbra criaturas estranhas farejavam seu medo.

Os caminhantes cessaram sua marcha, lentamente voltaram seus olhos avermelhados à seu perseguidor. Ikinai foi tragado por uma sombra tão densa que se tornou palpável. O ar foi sugado de seus pulmões, suas pernas bambearam, o coração disparou enquanto tombava desacordado.

Em seu sono, ele estava num campo de trigo em sua infância, o dia estava claro com borboletas e pássaros fazendo festa, tudo alegre e feliz até que no meio da plantação fazendo um barulho estonteante uma enorme serpente surgiu. Seu rastejar destruía tudo que tocava, tinha o rosto de uma gueixa chorosa com olhar vazio. Ikinai corria desesperado e por mais que se esforçasse a criatura mantinha a perseguição. A cada passo, a cada metro vencido, sempre estava no mesmo lugar. Aquilo pareceu durar uma eternidade, mas de manhã despertou em seu leito, lembrava-se vagamente do pesadelo e de adormecer no convés, enquanto isso, mais mortes eram descobertas.

Tsuki sabia o que enfrentavam. Os seres que se escondem nas sombras tomam posse dos sonolentos mantendo-os num mundo ilusório enquanto caminham entre os vivos matando e digerindo seus desejos, no fim abandonam a casca minguada de olhos esbugalhados. Mas ninguém acreditaria nos delírios de um charlatão.

O Shinda Otoko navegava praticamente à deriva, as criaturas dizimavam a tripulação, alguns passageiros desesperados se aventuraram nas águas, a eterna luta entre vida e morte não tinha fim.

Na sala de máquinas dois homens acuados se estudavam. Um apavorado rogava a seus antigos deuses, o outro de olhos vermelhos armava a última investida. Ali seria decidido o fim da trágica jornada.

O sol tingia de vermelho o horizonte, o Japão a muito havia ficado para trás, mas aquele espetáculo era o mesmo em qualquer parte do mundo.

O leme foi travado na direção do mar aberto. O Kasato Maru talvez tenha chegado a salvo no destino enquanto o Shinda Otoko, fazendo água seguia rumo ao esquecimento, talvez seu tumulo um dia seja revelado.

Nossa raça é muito forte, onde o homem perece nos prosperamos, no fim este mundo será somente nosso, somos Yume no Shi, a morte dos sonhos.

Tema: Imigração

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 07/12/2019
Reeditado em 16/01/2024
Código do texto: T6813067
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