- COVA DE LAMA -


 
Já moça, lembrava do tempo em que o mundo era cinza e a vida flutuava no terreno lodoso de segredos e mentiras. Quando a velha e eu nos enfurnávamos pelas manhãs atrás das covas onde os caranguejos sonhavam. Do braço de minha vó enfiado até o ombro no berço de terra mole, os dedos procurando as carapaças com a destreza das infinitas repetições. Não custava muito, e ela puxava o guaiamum arroxeado de dentro do ninho. Outros tantos se seguiam, até que enchêssemos os grandes embornais.

O que não era vendido virava almoço, jantar, café, merenda. A necessidade não escolhia sabores.

As tardes mais fartas tinham cheiro de café com tapioca. O lanche servido na mesa do alpendre, fazia vezes de jantar. A melhor parte eram as histórias que o Maurício contava sobre as montanhas e a água transparente que brotava entre fendas da rocha. Histórias sobre rios subterrâneos e de um estranho povo azul que nunca saía ao sol.

– E lá tem caranguejo?

– Tem não.

– E mangue, tem?

– Também não.

– Princesa tem, né?

– Tem, Letícia, parecida com você.

Enquanto meu padrasto Maurício contava eu ouvia, brincava e calava, pensando em minha mãe desaparecida. Estava dando os primeiros passos quando ela se foi e por isso não lembrava de seus traços. Na gaveta, uma única foto de consolo. Minha mãe de vestido branco com o peito bordado de flores coloridas. Onde deveria estar a cabeça, um grande rasgo a lhe ocultar a face.

O sumiço era assunto proibido. Meu avô ainda falava na filha quando bebia. O desgosto e a revolta iam aumentando em grandes goles de aguardente. Depois do jantar a vó trancava tudo e ele dormia do lado de fora, com os mosquitos. Não permitia bêbados em casa.

Depois da partida, Mauricio foi ficando pela casa, me tinha como filha de verdade. Ninguém falava sobre o homem que era meu pai. Eu sequer sabia seu nome. Muitos acreditavam que minha mãe havia fugido com ele. Dela só sobrara o retrato, um tesouro que eu guardava no móvel perto da minha rede.

Chorei muito quando perdi a foto de mamãe. Rodei a casa inteira mexendo nos buracos. Passei uns dias de calundu, sem querer conversa com ninguém, mas acabei deixando para lá. Sabia que não adiantava reclamar. A vó não tinha paciência para dengo de menino. A vó só queria saber onde eu estava, o tempo todo.

Na noite do natal, o Maurício estava todo misterioso. Saiu com a carroça e voltou com um cachorro bonitinho para mim. Corri feito uma doida pelo terreiro, rindo e gritando. Ele esperou que eu me acalmasse e puxou um papel embrulhado de dentro do bolso.

– Abre aí, Letícia. Aposto que vai gostar.

Deixei o cachorro de lado e fui olhar. Tirei com cuidado a fotografia, a mesma que havia sumido no mês anterior. Meus olhos eram duas piscinas até a borda de emoção. Agora o rosto que faltava estava lá, naquela foto, com um inédito sorriso. Era muito melhor do que em qualquer sonho meu. Não sabia se ria ou chorava. Pedi para pendurar na parede da sala, mas a vó não permitiu.

Em janeiro as coisas voltaram à velha rotina. Os dias ficaram frescos com o aumento das chuvas e o barro molhado facilitava o trabalho de catar os guaiamuns. Ajudava a vó com mais gosto, o cachorro agora ia junto, fuçando os pontos onde os bichos se escondiam.

As tempestades de verão se intensificavam, faziam a terra frouxa ceder em vários lugares pelo caminho. Uma noite as águas arrastaram um barranco não muito longe do casebre onde morávamos. Só fomos descobrir o estrago na manhã seguinte quando encontramos o cachorro escavando o buraco, lutando para arrancar uma delgada tíbia que aflorava da cova improvisada.

A vó correu até o lugar com um galho para impedir o cão, tentando bater em sua cabeça, mas era tarde. O vestido da foto com as flores coloridas denunciou o crime. Vovô e Maurício foram desenterrando cada um dos ossos da minha mãe até encontrar o crânio esfacelado.

Meu avô olhava calado para os restos da filha, que, afinal, jamais os havia abandonado. Chorou o dia inteiro pensando que por todos aqueles anos ela estivera ali, tão perto deles. O ódio havia acabado, a busca chegara ao fim, assim como a esperança de retorno.

Assisti a todo aquele drama sem suspeitar que estava em seu centro. Era, afinal, filha e neta daquele velho pescador, mas isso só me foi contado muito tempo depois.

Meu avô resolveu não entregar a esposa à polícia. Implorou para Maurício também guardar o segredo. Da promessa nasceu o acordo. E assim fui viver com meu padrasto na cidade grande. Nunca mais veria a minha gente.

O tempo passou apagando aqueles estranhos dias do meu pensamento. Só voltei a pensar no passado, quando descobri um rosto igual ao da foto de minha mãe numa velha revista de famosos. Um rosto igual com outro nome, e outra dona.

Levei a página para casa e recortei o rosto, cabia com perfeição sobre o do retrato que ainda guardava comigo. Sorri acompanhando com o dedo o contorno da face que havia sido encaixada com habilidade e toda doçura do mundo pela única pessoa que realmente me amara na vida.


                                      Iolanda Pinheiro.