O Nunca

I – EDGAR (1849)

Era uma noite triste. Noite não, já era início de madrugada. Ele meditava, cansado, sobre alguma doutrina ancestral. Quando finalmente sua cabeça pendeu e conseguiu cochilar, uma batida suave na porta o acordou.

– É só um visitante. – Murmurou. – É só um visitante, nada mais.

Era um dezembro frio, os móveis antigos projetavam sombras assustadoras pelo reflexo das chamas quase mortas do lampião. Ansioso, ele queria (e pedia, em vão) que a manhã voltasse. E que os livros pudessem acabar com sua tristeza pela donzela que amava, agora chamada pelos anjos por um nome que os homens não mais pronunciarão, pois ele era a única pessoa viva que se lembrava dela: Lenore.

– É só um visitante. – Dizia a si mesmo, para manter o coração batendo diante do terror fantástico que o triste farfalhar das cortinas de seda lhe provocavam. A batida leve e ritmada continuava. – É só alguém que resolveu me visitar bem tarde. É só isso. É só isso...

Repetiu até que sua alma se fortalecesse o suficiente para que não gaguejasse ao falar.

– Senhor... ou senhora, perdão por demorar. Estava cochilando e sua batida foi tão suave que não tinha certeza se havia mesmo ouvido uma batida.

Abriu a porta. Escuridão. Ficou um tempo esperando, temendo, duvidando. Imaginou coisas que mortal algum jamais imaginou. A única palavra que ousou sussurrar foi o nome da rara e radiante donzela, a sua Lenore. O silêncio ecoou sua voz. Voltou para dentro, a alma em chamas. E ouviu outra batida, na janela, um pouco mais forte.

Abriu-a e um corvo medonho, sinistro, velho e sem penas entrou, pousando sobre o busto da deusa Atena, bem abaixo do lampião. A ave conseguiu transformar sua fantasia triste em sorriso, mesmo com seu semblante sério.

– Corvo vindo das trevas, diga-me sua graça.

– Nunca.

Ficou admirado com o jeito do pássaro grasnar seu nome, não pelo nome em si, mas por sua voz quase humana. Quando um homem vivo já teve a oportunidade de ver tão maravilhoso pássaro chamado "Nunca" pousar sobre um busto?

– Nunca. – Repetiu ele.

– Outros amigos já se foram antes. – Disse a si mesmo. – Este vai me deixar também, amanhã, como minha esperança também deixou.

– Nunca. – A voz do pássaro o assustou de novo.

– Sem dúvida, aprendeu a falar com algum mestre infeliz, a quem o destino, cruel, carregou. – Disse e a ave, com seu jeito encantador, arrancou-lhe outro sorriso. Colocou a poltrona de frente para ele e enterrou-se nela. Desejava esta ave agourenta, triste, deselegante, medonha, magra e sinistra, queria-a para si. E sem falar nada, pôs-se a conversar com ela sob a luz de um lampião. Os olhos ardentes do animal queimavam seu peito.

Então lembrou-se que no veludo sobre a poltrona em que estava sentado, Lenore já se sentou uma vez, e nunca mais voltaria a se sentar. O ar ficou mais denso, perfumado por um incensório invisível, deixado ali por anjos cujos passos tilintam no chão.

– Desgraçado! – Falou para si mesmo. – Teu Deus, através dos anjos, enviou-te o esquecimento! Descansa! Descansa e apaga a dor das memórias da donzela amada. Bebe! Bebe e esquecerá tua perdida Lenore!

– Nunca.

– Profeta, demônio ou ave maligna, não sei se foi uma tempestade ou o Acusador que te jogou nesta Terra dessolada e deprimida, deserta e encantadora, bem nessa casa onde o horror vive. Diga-me com sinceridade: quando serei curado dessa dor?

– Nunca.

– Profeta maligno! Responde-me, por este céu que se inclina sobre nós, por este Deus que ambos veneramos, diga a esta alma cheia de tristeza quando verá, em algum paraíso distante, uma santa donzela a quem os anjos chamam de Lenore.

– Nunca.

– Seja pássaro ou demônio, vá embora! – Gritou, com todas as forças. – Volte para o lugar de onde veio! Não deixe uma única pena como lembrança das mentiras que contou! Me deixe em paz! Saia do meu busto! Tire teu bico do meu coração e tua figura da minha casa!

– Nunca.

E o corvo permaneceu por muito tempo pousado sobre o busto de Atena. A luz do lampião lançava sua assustadora sombra sobre o homem, e a alma dele ficou presa ali, naquele lugar, naquele momento, e nunca será libertada.

Nunca.

II – ÁLVARO (2012)

O ar estava mais denso que o normal àquela noite, como se as nuvens negras que cobriam o céu fossem fumaça de incenso. Estava tentando dormir, precisava acordar cedo no dia seguinte, mas o Facebook não deixava. Uma batida ecoou no silêncio da madruga. Um velho corvo, com muitas penas faltando, bicava a porta da casa da frente. Quando ele viu a ave, ela também se virou para olhar para ele, com seus terríveis e brilhantes olhos escarlates.

Impressionado, o homem fechou a porta e foi dormir. Continuou (ou pensou continuar) a ouvir o som daquela bicada na casa vizinha até pegar no sono. Na noite seguinte, a ave apareceu de novo. Mas, agora, bicando sua porta. Abriu-a e viu o animal estranho, horrível, negro, triste. E aqueles olhos vermelhos, aqueles pequenos portais para o inferno!

– Me deixa em paz!

– Nunca. – Respondeu, quase como um papagaio.

– Eita, tá de sacanagem?

– Nunca.

– Feioso, como é o seu nome?

– Nunca. – Disse e foi-se.

No dia seguinte, viu-o no céu pela janela da sala de aula, depois pela janela do banheiro da faculdade. De noite, quando chegou em casa, a ave saiu dela assim que ele abriu a porta. Morava sozinho e deixou as janelas trancadas, como o corvo entrou?

Mais tarde, no computador, olhou distraído para uma foto que tirou no ano anterior. De repente viu o tal corvo, de longe, em uma árvore. Desconfiado, começou a olhar as outras fotos; e em todas o corvo estava lá, algumas apenas um ponto preto, mas sempre esteve lá e ele nunca notou.

Na noite seguinte o corvo apareceu mais uma vez na sua porta, mas ele o estava esperando. Com um golpe de barra de ferro arrancou-lhe algumas penas. Tentou voar, acertou-o de novo. Desviou do terceiro golpe e cravou suas garras no rosto do homem que, com um murro, o afastou.Arrancou-lhe o olho direito com seu bico e se foi. Mas o homem não sentiu dor alguma.

No hospital, após o primeiro atendimento para parar o sangramento, um enfermeiro o levou até uma sala onde o atenderia melhor. Mas ele nunca mais voltou. Por uma noite interminável, o corvo permaneceu na janela, o observando pelo lado de fora. A porta estava trancada, e era impossível arrombá-la, ou atravessar a janela, ou quebrar o vidro, ou fazer qualquer outra coisa para sair dali. Estava preso. Pela janela, só podia enxergar uma escuridão densa, exceto por aqueles olhos escarlates que o observavam através do vidro. Por não sentir nada, torceu para que fosse apenas um pesadelo, e que alguma hora o tormento acabasse.

– Nunca.

III – JANAÍNA (2021)

A moça estava sentada, olhando para o chão, quando o homem de preto entrou no quarto.

– Oi, querida. – Ele disse, com uma voz doce. Ela permaneceu imóvel. – Meu nome é Paulo. Soube que estava com problemas e vim ajudar.

– Você é psiquiatra?

– Não. Sou só alguém que veio conversar. – Janaína olhou para o copo com água já quente e a cartela de pílulas ao seu lado, depois olhou novamente para o chão. Sua mãe teve medo de dar-lhe pílulas para dormir, mas era necessário.

– Veio me convencer a tomar o remédio?

– Você não precisa fazer nada que não queira. Apenas me diga: por que o medo de dormir?

– Não tenho medo de dormir. Tenho medo de acordar.

– Como assim?

– Toda vez que durmo, quando acordo sozinha, vejo um corvo me observando.

– E por que ele te assusta tanto?

– Os seus olhos são... demoníacos. E depois que olho para eles, vejo... coisas...

– Há muitas razões pelas quais vemos algo que não está lá. Mas creio que, no fundo, você sabe que não é real.

Ela ia xingar o sujeito por não lhe dar crédito, mas quando levantou a cabeça para olhar seu rosto, estremeceu. Logo exibiu um sorriso triste e decidiu não responder mal.

– Você não tem cara de psiquiatra.

– Eu disse que não sou psiquiatra. – Respondeu, satisfeito porque a moça estava começando a se abrir. Ele realmente estava preocupado com ela, há três dias não dormia. – Vamos fazer o seguinte: conte-me como tudo começou, coloque o que está sentindo para fora, depois tome uma dessas pílulas e descanse um pouco. O desabafo expulsará o corvo. Se vê-lo de novo, é porque realmente tem algo ruim te atormentando, então te ajudo a se livrar dele, combinado?

A menina riu, um misto de tristeza e zombaria.

– Qual o problema? – Ele perguntou, Janaína apontou para o espelho. Hesitou por alguns instantes, levantou-se e foi até lá. O reflexo era de um padre sem cabeça. Levou as mãos ao rosto, podia sentir que havia uma cabeça lá, mas o espelho provava que não era verdade.

Enquanto o fantasma tentava entender o que estava acontecendo, a menina engoliu várias pílulas. Suicídio era a única saída daquele tormento, a única maneira de não ver mais aquelas coisas terríveis. Deitou-se na cama e deixou-se vencer pelo cansaço. Quando adormeceu, o corvo surgiu e a ficou observando. Sua mãe teve medo de dar-lhe pílulas para dormir. Era um placebo.

(inspirado no Corvo de Poe)