AMOR ALÉM DA VIDA!!!!!

Edmundo procurou as chaves no casaco. O habitual cigarro na boca. Abriu a porta do apartamento na rua das Petúnias. Colocou os óculos no aparador. O chapéu voou até o sofá vermelho. -"Elvira!!! Cheguei, meu amor!!!!" Apagou o cigarro no cinzeiro de prata. Um vaso de rosas amarelas enfeitava o centro da mesa de vidro. Sua esposa Elvira amava rosas dessa cor. A velha televisão. O mesmo relógio cuco que herdara de seu tio Giuseppe. Quadros da família nas paredes. Uma tela de Volpi, o pintor das bandeirinhas. Um quadro da santa ceia. Um banho salutar e refrescante. O velho médico abriu a geladeira. -"Elvira!! Que surpresa boa. Um pudim de leite condensado pra sobremesa. Amo pudim sem furinhos!!" Um whisky com gelo. Ele aqueceu o jantar no microondas. Arroz, feijão, bife empanado e inhame que a empregada deixara. Montou a mesa. Dois pratos. Dois jogos americanos. Suco de laranja. Os talheres de prata, como a esposa gostava. Lenços de pano com os nomes bordados. - "Minha doce, Elvira!! Me ensinaste a ser glamouroso e sofisticado. Usar lenços de papel nunca, jamais!!!!" Ele sorriu. -" Tome seu Martini, querida." Ele foi até a sacada pra fumar. Elvira odiava que ele fumasse dentro de casa. Trabalhara por seis horas num posto médico da periferia. Outras seis horas, cobrindo a falta de um amigo, num hospital particular. Estava com sessenta e dois anos. Amava a medicina mas já não tinha pique pra tudo isso. Medicava desde os vinte e dois anos. Um cardiologista renomado, no Brasil e no exterior. Colega de turma do doutor Jatene e outros maiorais da medicina tupiniquim. Uma brilhante carreira. Uma estante cheia de troféus e medalhas. Uma parede repleta de diplomas em quadros com ornamentos dourados. -"Elvira, esse pudim está divino!!!" Ele mesmo lavou a louça, visto que a empregada vinha apenas de manhã. O telefone tocou. Eram os amigos do voluntariado. Edmundo declinou do convite para uma noite de truco, na casa do amigo Carlos. Era caseiro e avesso a noitadas. Outro telefonema. Era o pastor da sua igreja. Ligou o notebook. Sites de medicina. Facebook. Leu alguns contos do amigo Marcos Dias Macedo, no Recanto das Letras. -"Adoro esses contos sobre as lendas brasileiras!!! Esse Marcos escreve muito bem!!!!" Deu um telefonema para o hospital. Esquecera seu carimbo na copa. Pediu ao atendente que o guardasse. Edmundo era muito honesto e correto. -" Elvira, um chá de camomila cairia bem agora!!!" Onze da noite. Uma noite fria. Abriu a gaveta do criado mudo. Folheou dois passaportes. Um folheto de viagem. Edmundo e a esposa viajavam todo ano pra Veneza, onde se conheceram. Era praxe. Uma tradição quebrada apenas no ano em que Jaime morrera, há cinco anos. Era o filho único do casal. Um acidente de motocicleta ceifou a vida do médico de vinte anos. Jaime era cardiologista como o pai. Edmundo guardou os passaportes na gaveta. Fez palavras cruzadas. Leu algumas páginas de um livro de Augusto Cury. Olhou as mensagens do celular, no grupo da família. -" Querida Elvira, esse chá me deu sono." Ele apagou as luzes da casa, após fazer o sinal da cruz em frente a um quadro de Jesus orando no Getsêmani. Uma pequena luz de um velho abajur. -" Elvira!!! Tenha uma boa noite, meu amor!!!!" Adormeceu logo. Edmundo se viu num baile de máscaras em Veneza. Ele era jovem. Uma morena de sorriso cativante atraiu sua atenção. Uma valsa. Eles dançaram juntos, no salão da mansão da família Franco. Uma hora depois, durante o jantar, Edmundo viu, finalmente, o rosto de seu par. Elvira de Brindizzi, foi o nome dito pelo garçom. Na mesa pra vinte convidados, os olhares deles se cruzaram. O coração dele disparou. Ele ergueu a taça de vinho. Elvira sorriu e repetiu o gesto. Uma piscadela acompanhou o sorriso mais lindo que ele já vira. Mais belos que aqueles sorrisos dos panfletos de seu amigo dentista, Robson Cicolin. Uma outra valsa. Edmundo se livrou do grupo de amigos. Queria dançar com ela novamente. Seus olhos procuraram Elvira. Ele a seguiu ao jardim. -" O que você quer???" Edmundo não respondeu. Puxou-a pelo braço. Corpos colados. Olhos nos olhos. Um primeiro beijo sob a luz do luar. O noivado se deu dois meses depois. Uma festa na Itália, outra no Brasil. Elvira queria muito viver no Brasil. Mesmo italiana, chorara na derrota da seleção brasileira pra Azurra, em 1982. Uma bela história de amor. Edmundo enchia a esposa de mimos e carinhos. Afundara-se nos livros e estudos, buscando ser o melhor pra dar o melhor pra amada. Um apartamento, carros de luxo e empregados. Um capítulo feliz com a chegada de Jaime. Um bebê lindo e saudável. Edmundo e Elvira adoravam conhecer o Brasil. Elvira gostava da variedade de frutas daqui. Lembranças de grandes festas, almoços e viagens. O casal era figurinha carimbada nas colunas sociais dos jornais. Nenhuma briga. nenhum. Edmundo e Elvira sequer erguiam a voz. Exemplos de finesse e bom trato. Jaime se formou em medicina. Edmundo se debateu muito na cama ao lembrar da morte do filho. Acordou aos prantos. Tomou um pouco de água. Pousou o copo sobre o criado mudo. O celular. Oito horas da manhã. -" Elvira. Eu apaguei legal. Perdemos a hora da caminhada em volta do condomínio!!!" Olhou a agenda. Golfe, dez da manhã com amigos do Banespa. O cheiro de café da empregada. Judite chegava às seis horas em ponto. A mesa preparada com esmero. O mamão papaya que gostava. O pão fresco, leite e requeijão. As tradicionais rosquinhas de nata e o bolo de tapioca. -" Bom dia, doutor Edmundo. Tenha um bom apetite." Ele fazia questão de colocar uma xícara pra esposa. Uma hora depois, Edmundo saiu no seu carro. Passou na floricultura. -" Flores pra você, Elvira!! O meu eterno amor!!!!" Ruas e avenidas. O cemitério do Campo da Ressurreição. Ele tirou os óculos escuros. O suor desceu na testa ao ver o grande portão de entrada. Respirou fundo e entrou. Odiava cemitérios. Sequer respondeu ao bom dia do vigia. Os braços tremendo. O velório. O necrotério. O cruzeiro com velas queimando. Os túmulos. As imagens de anjos. Odiava tudo aquilo. -" Elvira. Minha doce Elvira. A vida não acaba aqui!!!!" Ele depositou as flores num vaso de bronze. Uma cruz de mármore. Uma imagem de Nossa senhora de Fátima ao lado das fotos de Jaime e de Elvira. Ele acariciou a foto do filho. Beijou a foto da esposa. Edmundo tinha a camisa molhada de suor e o rosto de lágrimas. Um ano sem sua esposa. Elvira passou a sofrer desmaios frequentes. Edmundo moveu céus e terras pra curar a esposa. Exames aos montes e viagens aos melhores hospitais dos Estados Unidos. Tudo em vão. Elvira definhava. Edmundo jamais se conformara. Ele, médico conceituado, pouco pode fazer por sua amada. Um câncer maligno. Um grande tumor na cabeça. A doença recém descoberta, a levou quatro meses depois. -" Assim é a vida, querido. Suportemos tudo com amor!! Fiz o meu melhor!!!!" Edmundo saiu. As palavras da amada em sua mente. O golfe com os amigos. Ainda tinha meia hora. Um bar na esquina. Uma pracinha em frente. Ele freou o carro. Alguns homens se assustaram com aquele carro de luxo, estacionado em frente ao sujo botequim. O homem de calça social e sapatos italianos entrou. Acendeu um cigarro. Pagode do Raça Negra tocando alto. Dois cachorros na calçada. Uma atmosfera de fumaça de cigarro com aguardente. Um banco alto de madeira. O balcão empoeirado. Algumas moscas circundavam um vidro de salsicha no molho. Ovos coloridos e salgados numa redoma de vidro. Cartazes de mulheres nuas e propagandas de cigarro nas paredes. -"Bom dia, chefia!!!" Disse o dono do bar, com um palito na boca e um avental do programa Master Chefe. Edmundo engoliu em seco. -" Bom dia!! Bem...quero uma branquinha!!!" Em seguida, Edmundo tomou uma cerveja. Nunca tomara uma cerveja. Bebia apenas vinho e champanhe. Há tempos queria comer uma daquelas salsichas. Gostou muito do sabor delas. Levou um tapa nas costas de um moreno forte. -" E o Tricolor, Samuca???? Perdeu de novo!!!" O rapaz se desculpou. -" Desculpa, senhor. Eu achei que era o amigo Samuquinha!!! Foi mal...." Edmundo se virou. -" Foi mal uma ova. Vai te catar, folgado!!! Filho de uma égua!!!" Gritou bem alto. Sentiu a garganta doer. Edmundo levou um soco direto no olho. Os homens na mesa de sinuca seguraram o jovem. O moço foi posto pra fora do bar. -" Não foi nada!!! Estou bem....sempre quis gritar, xingar e brigar!!! Estou feliz!!!" Dois homens o levantaram do chão. Um deles fez um sinal indicando maluquice. Edmundo pediu outra cerveja. -" Que coisa boa!! Como fui burro seguindo etiquetas e padrões sociais." Deu uma nota de cem reais ao dono do bar. -" O troco é seu, chefia!!!" Pensou nos pais. Jamais admitiam gírias e palavrões em casa. Edmundo fumava escondido. O velho médico foi até a praça. Tirou os sapatos e andou na grama. Arregaçou as barras da calça. Fez exercícios nos aparelhos de ginástica. Pagou picolés para algumas crianças. Conversou com quatro idosos que jogavam dominó. Edmundo se afastou deles pois não queria atrapalhar. Ele olhou o rolex. Um dos idosos dissera que precisava de muito dinheiro pra cirurgia da filha. O outro estava com dois meses de aluguel atrasado. O outro precisava comprar remédios pra pressão arterial e sequer tinha um centavo. Outro senhor precisava viajar ao Recife pra ver a tia doente. Edmundo olhou as crianças correndo. Ergueu os olhos aos céus. O olho estava inchando e ficando preto. Edmundo estava anestesiado por um sentimento estranho. Ele caminhou até o banco dos jogadores. Jogou o relógio de ouro na mesa, desmanchando o jogo. -" Presente aos amigos. Vale uns dezoito mil reais, talvez. Vendam e dividam o dinheiro!!!! Dessa vida só levamos o bem que fazemos! Adeus!!!!" Edmundo entrou no carro. Ligou para o seu advogado. -" Doutor Jorge. Tudo que eu tenho ficará para a caridade, inclusive a casa em Veneza. Tudo!! Assim que eu quero." Desligou o telefone, antes de ouvir o sim, do outro lado da linha. O carro parou sobre a linha férrea que cortava a cidade. Um apito ao longe. Uma cancela fechada. Os gritos de alguns moradores de rua. Um deles foi até o carro blindado. -" Senhor. O trem vem vindo!!! Sai daí." O rapaz esmurrava os vidros. A porta não abria. O carro trancado. Edmundo colocou os óculos escuros. Acendeu um cigarro. A música Only You no rádio. O trem de carga se aproximava. O morador de rua correu para um barranco, cansado de tentar empurrar o carro pra fora dos trilhos. As mãos na cabeça. -" Esse maluco quer se matar!! Vai se juntar com alguém lá do outro lado. Só pode!!!" Edmundo destravou o cinto de segurança. -" Estou indo te encontrar, Elvira!!! Tudo perdeu a cor e sentido sem sua presença!!" Segundos depois, o choque fatal. Um estrondo. Edmundo viu a imagem de sua mãe com os braços estendidos. Uma luz intensa seguida por uma escuridão total. O carro foi arrastado por centenas de metros. O maquinista sequer conseguiu frear a composição de trinta vagões carregados com aço. As equipes de resgate, policiais e bombeiros. A imprensa. A morte do renomado cardiologista ganhou os noticiários. Os amigos sem acreditar na tragédia. -" O carro pode ter morrido sobre os trilhos!!!" Disse o delegado. Hipótese descartada com o relato do morador de rua que tentara empurrar o carro. -" Ele tinha tempo, doutor!! Tinha um sorriso e conversava com alguém no carro!!!! Foi suicídio!!!" Tempo depois, o espírito de Edmundo saiu do corpo. Ele acompanhou o trabalho dos paramédicos. Era estranho pois ele conhecia muito bem aquela rotina. Agora era ele o cadáver. O bom amigo Renato cuidara com zelo do funeral. Horas depois, viu, do alto, os coveiros abaixarem seu caixão. Estaria pra sempre ao lado de sua esposa e do filho. Os amigos do hospital em volta do jazigo. Dezenas de coroas de flores, algumas delas enviadas pelo prefeito e entidades da cidade. O hino do Brasil foi cantado. Uma salva de palmas. Edmundo se emocionou. Edmundo fechou os olhos por um instante. Parecia estar em outra realidade. Sentiu um leve toque no ombro. -" Elvira?!?? Senti sua falta. Enfim nos reencontramos!!!!" A mulher sorriu. -" Venha, querido!!! Está na hora do nosso café da tarde!!!" F I M

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 14/03/2020
Reeditado em 14/03/2020
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