Quatro Olhos

Quatro Olhos

Seria isso mais uma lenda urbana, tipo, a Loira do banheiro? Ou o bicho papão? Claro que não, essas coisas não existem. Reza a lenda de que uma criatura, de pele ressecada, esverdeada e que possui quatro olhos circula pelas ruas livremente assombrando os seres viventes. Lógico que tudo isso não passava de história, conversar de boteco pé rapado, um conto de horror para fazer borrar de medo as crianças mais arteiras. Pois é. Tudo não passava de lorota, até Olga ficar frente a frente com a tal lenda.

*

Cidade pequena, poucos recursos, saneamento básico precário e nas ruas o perigo é constante. Desafiando tudo isso a pequena Olga deixou o trabalho de doméstica um pouco mais tarde. Normalmente seu expediente na casa dos Martins Rodrigues termina as 17h, mais tardar até às 18h, depende de quando o único filho do casal de médicos a pede para ficar com ele em seu quarto. Hoje foi mais um dia em que a jovem atarracada permaneceu no quarto do filho tarado do doutor Douglas sendo lambida dos pés a cabeça. Fala sério, Olga até gosta e no final sempre leva uma grana para casa.

Ela desceu a rua esburacada precisando urgente de um recapeamento com suas sandálias fazendo barulho. Olhou a hora no celular e ao ver que já passava das nove entrou em pânico. Será mais uma noite onde seus país irão encher seus ouvidos com sermões longos. Dobrou a esquina onde a lâmpada do poste acende e apaga a meses e não adianta ligar para a companhia de luz urbana. Ainda sentindo o gosto do membro do filho do médico na boca, Olga avistou um homem vindo. Calça, sapatos, camisa para fora, toda amassada. Olga pensou em se tratar de um mendigo ou um dos bêbados vindo da farra, por isso seguiu andando.

Faltando três metros entre ele e ela, a baixinha sentiu um forte odor, enxofre, pensou a doméstica. Olga olhou para as mãos, elas eram magras, quase secas, típicas de um defunto enterrado a dias. Ela também reparou na tonalidade da pele. Esverdeada, veias irregulares e o rosto murcho, mas o que a fez mijar na calcinha foi o fato dele ter quatro olhos. Quatro olhos, um ao lado do outro, cheios de um tipo de muco. A boca da criatura é minúscula, uma cicatriz praticamente.

- O que tenho eu contigo? – gaguejou Olga.

- Outra vida. – a voz do bicho é baixa como se fosse um doente terminal falando.

Olga lhe deu as costas, mas antes clamou o sangue do Cordeiro, imagine essa coisa a seguir até em casa. Curiosa a moça se virou e ele já dobrava a esquina.

- Eu hein! – sentiu um forte arrepio na espinha.

*

Se Olga ouviu sermão dos país? Claro que sim, mas nada comparado ao que viu na rua. Quatro olhos, o mensageiro de satanás, a lenda urbana mais macabra que já viu e ouviu. Perto da meia noite ela ainda mexia no telefone quando sentiu vontade de fazer xixi. Saiu do quarto, passou pela sala, entrou na cozinha e por fim o banheiro. Esvaziou a bexiga olhando o Facebook. Ao dar a descarga uma mão de cadáver tocou duas vezes no vidro da pequena janela do banheiro. Olga soltou um curto grito e orou. A mão de Quatro olhos ainda estava lá fazendo um V com os dedos. A doméstica intensificou a prece e quando abriu os olhos ele já havia ido embora. Ela não dormiu, ficou apavorada imaginando aquela figura dentro do quarto.

Na casa dos Martins Rodrigues o dia foi arrastado, chato, demorado e sonolento. Olga preparou o almoço, passou roupa, limpou os quartos e quando Ricardinho chegou ele a chamou para uma festinha a dois.

- Meu pai vai fazer vinte quatro horas e minha mãe está com as amigas dela no shopping. Vamos?

Bocejando Olga negou, estava hipercansada.

- Poxa, eu queria chegar em casa cedo hoje e...

- Tudo bem. – tirou do bolso da calça um bolinho de notas de cinquenta reais. – já são cinco da tarde, você já pode ir.

- Ok, mas vou logo dizendo, vou ficar por baixo hoje. – o puxou para o quarto.

*

Cabelos empapados colando no pescoço. Na testa o suor escorre entrando nos olhos. A respiração é pesada e forte. Olga acordou do pesadelo as três da manhã. Olhou ao redor e sentiu o cheiro do enxofre.

- Me deixe em paz, por favor. – chorou encolhida entre os lençóis.

A porta do quarto se abriu e ele entrou. Sim, Quatro olhos estava dentro de sua casa. Olga pensou em chamar seu pai ou sua mãe, mas eles não acreditariam, afinal tudo não passa de uma lenda, Quatro olhos não existe. Ele subiu na cama com os sapatos sujos de uma lama negra, fétida e fumegante, o calor do inferno, pensou ela.

- Você não é real, você não está aqui, sai, sai, sai. – fechou os olhos e tapou os ouvidos, mas a voz doentia do bicho fez vibrar seus corpos sonoros.

- Outra vida.

Olga abriu os olhos e quatro olhos havia sumido. Seu quarto estranhamente estava numa completa paz, ela quase pode ver anjos voando. Ela repousou sua cabeça no travesseiro e dormiu feito um recém nascido.

*

Um mês de paz. Um mês sem pesadelos e o que é melhor, um mês sem ver aquilo. Olga sentiu sua boca encher de água. Ela correu, mas não conseguiu conter o vômito. De uns tempos pra cá ela vem sentindo enjôos fortíssimos e sua menstruação está atrasada.

- Só me faltava essa. – falou colocando a mão na barriga.

Foi complicado. Ricardinho, mimado, é claro que não iria mesmo assumir a criança. Os país de Olga quase morreram de desgosto e os patrões não perderam a oportunidade de humilha-la.

- Vadia, aproveitadora, abusou do nosso filho. – esbravejou doutora Gilmara Martins Rodrigues. – saia da minha casa, agora.

- Vou lhe pagar o mês e por favor, nos esqueça. – ordenou doutor Douglas.

Nove meses depois Olga deu a luz a uma linda menininha. Vitória nasceu numa tarde ensolarada, chorona e gordinha. O médico fez todos os procedimentos e depois colocou a criança para ter o primeiro contato com a jovem mamãe.

- Obrigado por tudo, doutor. – disse Olga sorrindo para a filha.

O médico tirou a máscara cirúrgica e a touca e falou perto do ouvido de Olga.

- Outra vida. FIM

Júlio Finegan
Enviado por Júlio Finegan em 21/03/2020
Código do texto: T6892867
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