COVID-19 - "Breve a loucura, longo o arrependimento."

Como sentir que a vida acabou? Fazendo nossa coragem de aço virar pó? Metáfora?

Pode ser, mas perder alguém que se ama para um vírus sem vergonha, já passa de piada de mal gosto ao absurdo.

Pensar que há tantas maneiras de morrer, mas pra ficar na história não basta se entregar para algo invisível, cheio de cuidados e sem respostas.

Para se morrer deve ser de forma única, e não apenas mais um em meio a milhares. Deve ser morte com louvor, carreata, fogos de artifício e não morte inútil com final em crematório as pressas e sem despedida digna.

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Senti medo desde o início, e foi aumentando de acordo com o passar do tempo, diziam que era pra evitar aglomerações, eu respeitei, lavar as mãos, eu lavei, passar álcool gel, enquanto tinha eu usei. O que mais poderia ter feito? Estava no mesmo barco, ele afundava, mas sonhava dia a dia que ele virasse um submarino e que fosse ao fundo mas que voltasse, mais brilhante do que nunca.

Eu sempre fui cherofóbico, porém, o período em casa com as pessoas que amo, me deixou mais leve, mais tranquilo. As ruas estavam a beira do caos, mas dentro de casa, a vida me sorria pela primeira vez em minha história.

Olha! O tal do Corona estava me dando mais uma oportunidade de sorrir, enquanto muitos choravam. Ao longo dos meus 45 anos, posso contar nos dedos quantas reuniões em família nós fizemos, até para ver meus pais dependia de agenda. Vida corrida, cada um em uma cidade, cada um com seus compromissos, correria mesmo.

Comecei a anotar em meu caderninho os meus relacionamentos, poucos, casamento durou apenas oito meses, não conseguia fazer ninguém feliz, amigos? talvez dois ou três, eu não era feliz.

Voltando ao papo de morrer, fui ler alguns livros e achei a frase:

"Se um homem não descobriu nada pelo qual morreria, não está pronto para viver." por Martin Luther King.

Baseado nisso, descobri que agora estava entendendo a razão de estar vivo, morreria lutando para que os dias continuassem assim, estava pronto para a vida.

Meus dias eram brilhantes, acordava cedo e sempre de bom humor, aproveitava cada café da manhã em família como fosse o último. Dormia tranquilo após o almoço, assistia filmes antigos na sessão da tarde, curtia a casa que cresci.

Meus pais estavam sempre comigo, eram do grupo de risco, precisavam de cuidados, e eu estava ali, junto, ao lado, como nunca estive antes. A TV noticiava o aumento das mortes no mundo todo, e principalmente os idosos, esses sofriam com o Covid-19.

Eu os mantinha sempre em casa, os higienizava a todo o momento, o álcool gel estava quase acabando, eu usava só quando precisava sair.

Nas ruas, a polícia fazia ronda, prendendo as pessoas que não respeitavam o toque de recolher, só podíamos sair as 10 da manhã e obrigatoriamente voltar as duas da tarde, do contrário, o destino era a prisão. Um dia saí para comprar mantimentos e procurar álcool gel para meus pais, perdi o horário, saí correndo em direção a minha casa, mas fui surpreendido pelo carro preto da polícia especial da vigilância sanitária. não fizeram pergunta alguma, apenas, pegaram o que tinha em minhas mãos, jogaram um líquido em meu corpo alegando que seria para limpar o sangue e mandaram eu entrar na caçamba do carro. Havia um casal la dentro, a imagem era triste, eles estavam com fome e dizendo que estavam pegando comida para os filhos, mas não recebiam resposta alguma. Chegando no destino, nos mandaram descer e pelo equipamento de som, eram passadas as instruções de deslocamento.

Na chegada, pessoas com roupas de segurança, nos recepcionaram com aparelhos de teste rápido, encostaram em minha cabeça e me empurraram para a direita, testaram o casal e mandaram para a esquerda, não disseram quem estava contaminado, mas senti pena daquelas pessoas mais uma vez, só podia ser eles, eu não sentia nada, mas incrivelmente estavam rindo, saíram andando por um corredor claro e em direção a pessoas que estavam apenas com máscaras simples e eu fui jogado em uma espécia de quarto com cheiro de desinfetante.

Concluí então que o problema era comigo, ninguém falou o que estava acontecendo, apenas fecharam a porta e saíram. Gritei pedindo respostas, mas não fui ouvido, chamei mais algumas vezes até que alguém respondeu via caixas de som da sala, falei que que meus pais estavam sozinhos em casa, a voz de um homem pediu o endereço e agradeceu. Não tive mais respostas naquele dia.

Na manhã seguinte fui acordado por uma música alta e vozes vindo do sistema eletrônico.

"Atenção! Você está contaminado e em estado crítico, poderá ver a cremação dos corpos de seus pais de dentro de sua cela especial."

Aquilo me pegou de surpresa, perguntei se haviam morrido no dia anterior, então seria minha culpa, os deixei sozinhos.

Mas a resposta foi que culpa era minha, mas não morreram ontem, eles estavam mortos a mais de uma semana e que eu fui o vetor, eu era o responsável por tudo isso e para completar disse pra não me preocupar porque logo estaria com eles novamente.

Aquilo soou como deboche e no monitor de dentro da cela, pude ver os rostos dos meus pais e que realmente era verdade.

Senti um desconforto estomacal e uma dor insuportável na cabeça, jogaram alguns analgésicos por baixo da porta, disseram para eu ingerir e aguardar. Engoli a seco.

Após as cenas das cremações dos corpos de meus pais a voz mais uma vez falou e dessa vez disse que iria mostrar os últimos acontecimentos da minha vida.

Mais uma vez o monitor foi ligado e enquanto o filme de minha vida passava, fui caindo na real, era tudo ao contrário do que eu estava vivendo.

Lembrei dos momentos dos dias passados, das praias com os amigos, churrascos, viagens e todas as demais festas. Lembrei dos meus pais quase que implorando pra eu ficar em casa. Lembrei de minha mãe tentando me acordar para tomarmos café juntos. Lembrei do meu pai me convidando para ficar seguro ao lado dele e em casa. Apenas isso, ficar em casa. Mas eu não os ouvi, não respeitei nada do que era dito, não segui as orientações. Lembrei também o real motivo de eu ter saído de casa, na verdade fui lembrado pelas gravações que passavam em frente aos meus olhos.

Vi então meus últimos passos...

Precisava de remédios para dor, agora entendo o porquê do sangue em minhas mãos, matei o cara da farmácia para roubar remédios, matei dois dos meus amigos porque não quiseram sair e também não emprestaram o carro, matei o mecânico por não consertar minha moto, matei o dono do mercado por não querer vender bebidas e principalmente, matei meus pais, porque fui irresponsável.

"Breve é a loucura, longo o arrependimento."

Friedrich Schiller