Vila das Almas

Vila das Almas

Interior de Minas, setembro de 2010.

O clima começara sua mudança rumo à primavera, estava eu sentado no carro a exatas e causticantes oito horas. Minha esposa reclamando da poeira. Bom, estrada de chão geralmente tem muita poeira, pensava eu. Estávamos indo para um vilarejo, recomendado por um cliente do escritório, dizia ser a nona maravilha do mundo, segundo suas palavras. Não fossem as fotos que me mostrara, não teria me aventurado por este inferno pueril.

Depois de mais algumas horas rodadas, eis que chegamos ao tal vilarejo, era diferente das fotos que havia visto, mas batia com o mapa que este cliente havia me passado. Não tinha a mesma beleza rústica das construções mostradas nas fotos. Um lugar simples, com poucas casas, poucas pessoas, pouco tudo para ser sincero. Paramos em um bar ou mercearia ou os dois, talvez fosse a única referência comercial do lugar.

- Boa tarde. Me dirigi ao sujeito de barba a muito esquecida de ser feita.

- O que fazem por aqui? Retrucou o homem de feições pouco acolhedoras.

- Um amigo me recomendou este lugar para passarmos o fim de semana. Me disse que tem muitas cachoeiras e uma bela pousada chamada Pousar dos Gaviões.

- Não tem nada aqui com este nome. Tem duas cachoeiras e nenhuma pousada.

Era tudo o que eu não queria ouvir, mas como havíamos percorrido uma grande distância, precisaríamos ao menos descansar por uma noite antes de voltarmos. Além de estarmos quase no meio da tarde e não queria dirigir por uma estrada de chão durante a noite.

- O senhor conhece algum lugar onde possamos tomar um banho e passar a noite então?

- Tem a casa do Onofre. Ele aluga para quem vem pescar no Rio Grande.

- E o senhor sabe se nesta casa tem luz elétrica, água? Perguntou minha esposa.

- Tem sim senhora. Vai poder ficar bem cheirosa. Disse olhando-lhe dos pés à cabeça.

- Ok. Falei entrando em sua frente.

- Se puder me mostrar onde fica eu lhe agradeço.

- É só seguir a estrada. A dez quilômetros daqui vai ter uma entrada à sua direita, anda mais cinco quilômetros e está lá.

- Não tem algo aqui mais perto.

- Não. Disse já entrando para o interior de seu bar/botequim/mercearia/birosca/etc.

Como não encontramos mais ninguém disposto a nos dar informação pelo vilarejo, decidimos que o melhor seria procurar o tal Onofre e pela manhã, voltaríamos para casa.

Depois de exatos dezenove quilômetros, equivalentes aos quinze quilômetros do dono da mercearia. Eis que chegamos à tal casa do Onofre. Era uma construção simples, mas aparentemente bem cuidada. Saí do carro e bati palmas, gritei e o máximo alcançado fora um imenso vira latas que me fez voltar correndo para o carro. Estava prestes a seguir o rumo de volta, quando avistei um homem vindo pela estrada. Passos tão calmos quanto o ambiente ao nosso redor.

- Deve ser ele. Só pode. Com certeza. Era o mantra da minha esposa.

- Calma, se o vira latas não o destroçar, então deve ser realmente ele.

Ao se aproximar do carro, eis que o vira lata monstro, correra ao seu encontro como parecendo a criatura mais meiga do universo.

- Boa tarde. Me dirigi a ele.

- Tarde. Disse esbanjando algo parecido com um sorriso.

- O dono do bar me recomendou que o procurasse, disse que tem uma casa que aluga para turistas.

- Ah sim. Foi o João. Ele sempre manda os “turistas” para cá. Disse soltando uma gargalhada totalmente desconexa.

- Qual a graça?

- Nenhuma senhor. Podem sair do carro, o cachorro não irá mordê los, a menos que eu mande. Disse gargalhando novamente.

- Não vou ficar aqui com este maluco. Sussurrou minha esposa.

- Está anoitecendo e estamos cansados. E ele é só bem humorado, retruquei.

-Venham, vou passar um café bem quentinho com um belo pedaço de broa, vocês devem estar com fome.

Foram as palavras mágicas para fazer minha esposa mudar totalmente seu conceito sobre o “maluco”.

Era uma bela casa realmente, com móveis que remetiam a anos bem longínquos, um verdadeiro acervo arqueológico. Onofre já não parecia com um maluco, nos serviu um café digno dos melhores hotéis cinco estrelas. O que me trouxe extrema estupefação fora uma torta de carne, fabulosa. Um sabor único, dissera ser feita com carne de jovens cordeiros. Realmente fabulosa.

- O que trouxe este casal jovem até este fim de mundo? Perguntou.

- Bom, um amigo quem me indicou, mas parece que ele errou o local, ou o mapa.

- Amigo? Qual o nome dele?

- Jonas, mora na minha cidade. Pouso Alegre.

- Jonas, Jonas. Um gordo, de cavanhaque. Aposto que foi ele, nasceu aqui. Disse sorrindo.

- Bom, ele é um pouco gordo e usa cavanhaque sim, e também disse que eram fotos da região dele. Deve ser o próprio, mas infelizmente mostrou fotos de um outro lugar. Não desmerecendo seu vilarejo.

- De forma alguma, aqui é um lugar longe de tudo mesmo. Bom, já que vieram até aqui para passar a noite, vou lhes levar até a casa que alugo para os pescadores. É simples, mas bem cuidada.

O entardecer em lugares distantes e com muita natureza sempre é belo. Dava pra ver o sol escondendo se por trás das copas das imensas árvores que rodeavam sua residência enquanto seguíamos rumo à casa de hospedagem. Como tudo nesta região, ficava a uns duzentos metros de onde morava. O tal “ali” de mineiro. Era realmente uma casa simples, rústica, mas bem cuidada. Não tinha sinal de muita poeira ou cheiro de mofo, pelo contrário, um cheiro intenso de eucalipto. Tanto que abrimos todas as janelas após ele nos deixar a sós.

- Nossa, ou este homem perdeu o olfato ou é viciado em desinfetante. Dizia gargalhando minha esposa.

- Melhor eucalipto do que mofo, você há de concordar.

- Claro, mas vamos arrumar as coisas e abrir aquela garrafa de vinho que trouxemos. Se não vai ser o fim de semana perfeito, que seja a noite perfeita. Disse ela com aquele velho ar malicioso.

Pouco tempo depois, estávamos acomodados. Uma casa simples, mas com água quente, uma bela cama, daquelas antigas, com cabeceiras adornadas de madeira, mal se mexia de tão maciça que era. Manuela, minha esposa fora tomar banho enquanto eu arrumava algumas guloseimas que trouxemos de casa. Aproveitei para abrir o vinho, quando percebi que não trouxera abridor e nem havia um na casa. Logo pensei em ir à residência de Onofre para lhe pedir, algo que já imaginara ser o mesmo que lhe perguntar se possuía sinal de wifi.

Ao me aproximar de sua casa, o vi parado em sua cerca, estava conversando com outros dois homens, de aparência nada amigável. Gesticulava como se estivessem discutindo. Fui chegando mais próximo e como estava vindo por dentro do seu terreno, não dava para perceberem a minha presença.

- Você sabe o que deve fazer. Este mês foram poucos. Era o que consegui ouvir de um de seus “amigos”.

- Não preciso que venham até aqui para me dizerem isto. Quem vocês acham que mantém a vila? Retrucava Onofre.

Mas, ao me aproximar mais, seu vira latas meigo de aparência assassina, veio latindo ferozmente em minha direção. O que fez, com que voltassem sua atenção para mim, os dois homens então saíram andando de cabeça baixa pela estrada.

- Desculpe se interrompi a conversa de vocês.

- Tudo bem, eles estavam indo embora. O que você quer? Disse num tom mais ríspido.

- Vim lhe perguntar se por acaso, você teria um abridor de vinhos?

- Vinho????Não tenho, e estou atrasado para uma reunião na vila. Boa noite, disse entrando em sua casa.

Realmente morar no interior deixam as pessoas menos sociáveis, pensava voltando para a casa. Foi quando ouvi um grito vindo de lá, inconfundível. Era minha esposa. Desandei a correr insanamente.

A cada passo minha respiração tornara se mais ofegante, corri desesperadamente. Ao aproximar me, dava pra ver a porta entreaberta, o que me trouxe uma sensação horrível. Ao chegar,

entrei abruptamente e qual foi a minha estupefação ao deparar me com minha esposa enrolada na toalha de banho e, uma moça, aparentando uns vinte e poucos anos, com uns trapos que mal pareciam roupas, suja como se a muito tempo não soubesse o que era banho. O que destoava em meio aquela miscelânea de sujeira, era um cordão em seu braço esquerdo escrito AMOR.

- Quem é ela? O que aconteceu?

- Não sei. Eu saí do banho e me deparei com ela estática na porta. Respondeu minha esposa.

- E ela não fala? Quem é você? Perguntei olhando em sua direção.

- Ela só repete a mesma frase. “ Eles estão vindo”.

Me ajoelhei à sua frente, seus olhos não permaneciam fixos. Parecia drogada ou fora de si.

- Oi, qual o seu nome? Podemos ajudar você?

Enfim, olhou para mim. E a resposta não fugiu à regra.

- Eles estão vindo.

- Eles quem? Perguntei.

- Eles estão vindo.

Não sabíamos o que fazer, naquele momento. Então minha esposa, sentou se ao seu lado e pegou em suas mãos. Ela olhou fixamente para o cordão em seu pescoço. Passou a mão incrustada de terra em suas unhas por volta dele e começou a chorar. Minha esposa abraçou lhe carinhosamente, e enfim começou a murmurar.

- Vocês devem ir embora. Salvem se.

- Salvarmos? De que? Perguntou minha esposa com as mãos tremendo.

- “Eles”. Eles não são quem vocês pensam. Eles…

De súbito a porta se abrira completamente, eis que Onofre se fez presente.

- Mas o que é isto? Perguntou olhando a fixamente.

- Ela entrou aqui em casa. Você sabe quem ela é? Disse minha esposa.

- Claro. Ela perdeu os pais a pouco tempo, seu nome é Sofia. Depois disto ficou ruim da cabeça. Anda perambulando pela cidade, falando coisas sem sentido. O que ela lhes disse? Perguntou sem deixar de fita la por um único segundo.

- Disse que “Eles estão vindo”. O que significa isto Onofre?? Indaguei encarando o.

- Ela acha que outros seres, vindo não sei de onde, levaram seus pais. Não disse que está perturbada?

- Vou leva la até a casa de seu irmão. Falou se dirigindo à moça, agora em completa paralisia.

Ao se aproximar, era claro o desespero em seus olhos. Algumas lágrimas começaram a formar se por entre seus olhos.

- Talvez fosse melhor a levar nos para a cidade. Ela precisa de algum tipo de acompanhamento médico.

- Não. Respondeu firmemente.

- Nossos problemas, nós resolvemos e quando ela vai para casa sempre melhora, não é mesmo minha pequena Sofia? Vou deixar vocês em paz e a levarei embora. Fiquem tranquilos.

A pobre moça não esboçou resistência quando ele pegou em suas mãos. E fora levando a rumo à saída. Ela apenas moveu seu olhar para minha esposa ao sair.

- Será que fizemos o certo? Disse Manuela.

- Eu acho que sim. O que mais poderíamos fazer? E Onofre não parece ser um maníaco.

- Não sei.

Passado o susto, e o clima malicioso que fora água abaixo, nos preparávamos para dormir. Quando uma batida na porta, reacendeu nossos batimentos cardíacos. Fui verificar, e era novamente Onofre, agora com um semblante muito mais amigável.

- Desculpem perturbá los a esta hora, mas fiquei preocupados com vocês. E vim avisá los que a moça está em casa, e que sua família pediu desculpas pelo susto que ela lhes deu.

- Tudo bem. Nós ficamos mesmos preocupados com ela. Mas já que veio nos avisar nos, agora podemos dormir mais tranquilamente.

- Sim, e para deixa los mais relaxados. Trouxe algo que fabricamos a anos em nossa região.

O mais puro e saboroso licor de Jabuticaba.

- Obrigado, mas acho que vamos dormir depois dessa noite tumultuada. Disse minha esposa bocejando.

- Eu insisto. Não vão me fazer esta desfeita. Disse com o sorriso cativante.

- Tudo bem. Já que não teve o vinho, vamos provar o seu licor. Disse olhando para o extinto olhar malicioso de Manuela.

Ao sair, sentamos mais relaxados pelas boas novas e pelo novo perfil anfitrião de Onofre. Abrimos a garrafa do licor e realmente o aroma era fantástico, denso como a noite e de um sabor ímpar. Bebemos umas duas taças e foi o suficiente para perceber que estava com muito sono, olhei em direção à minha esposa e seus olhos estavam se fechando também. Não conseguia sequer erguer minhas mãos, parecia que estava numa orgia lisérgica, mas deu para perceber a porta se abrindo.

- Olhem eles, já estão babando. Disse uma voz conhecida, seguida de várias risadas.

Deviam ser umas dez horas, pois o sol já entrava alto pela janela. Acordei com a cabeça pesada, como se houvesse participado de uma rave na noite anterior. Olhei para o lado e Manuela dormia pesadamente, fui então perceber que acabamos dormindo no tapete da sala. Não me recordava do momento, apenas de termos bebido o licor trazido por Onofre. Ah, também me lembro de adormecer e parecer ouvir vozes entrando casa adentro. Eita licor forte, pensei.

Me levantando, senti uma dor no braço, tinha um pequeno machucado, parecia como se um inseto houvesse me picado. No meio do mato, mosquitos mutantes devem ser normais.

Tratei de lavar o rosto e me recobrar, tomei um analgésico para espantar a dor de cabeça e fui em direção ao carro, talvez pudéssemos aproveitar o resto do fim de semana em algum lugar mais habitável e onde a comunicação verbal não provocasse tanto espanto. Mas o espanto que tive foi ao ligar o carro para manobra lo, nenhum sinal de vida. Abri o capô e qual não fora minha surpresa. Os cabos do distribuidor todos arrebentados, corroídos por algo ou por alguém. Ficava pensando na reação de Manuela ao saber que teríamos que buscar ajuda em algum lugar bem distante daqui, com certeza.

- Bom dia meu rapaz. Disse Onofre com o semblante sereno.

- Onofre, alguém costuma andar por aqui a noite?

- Sim, gambás, cachorros do mato e um monte de outros bichos barulhentos. Porque?

- Meu carro, está com os cabos do distribuidor destroçados.

- Novamente. Respondeu em tom de ironia.

- Como assim, novamente?

- São os gambás, já comeram os cabos da minha caminhonete. Até perdi as contas.

- Gambás comedores de cabos? Pra mim foi obra de alguém.

- Não. Aqui ninguém faria isso, e já aconteceu comigo. Fique calmo, vou levá lo até São Rafael. Lá podemos comprar cabos novos e resolver o seu problema.

Não podia indagar ou mesmo acusar alguém, talvez fora mesmo os tais gambas assassinos de cabos do distribuidor. Voltei à casa para contar as “boas novas”.

- Amor, onde estava? Não vai acreditar no que aconteceu. Disse à Manuela.

- Nem você. Venha aqui ver uma coisa. Falou me puxando rumo ao quarto.

- Não estava aqui quando chegamos. Falou com o semblante assustado.

- Meu Deus. O que é isto????

A parede do quarto estava com vários símbolos estranhos, como se alguém o fizesse com os dedos. Não estava aqui quando chegamos, com toda certeza. Falava com o olhar fixo.

- Pegue suas coisas, vamos embora daqui. Disse em tom mais ríspido.

- Mas e o carro?

- Vamos a pé até a cidade, caso Onofre não nos de uma carona.

Arrumamos rapidamente tudo, e seguindo rumo a porta, eis que Onofre aparece como um fantasma.

- Mas onde vocês vão com tanta pressa? Falou olhando nos assustado.

- Primeiro meu carro com os cabos comidos por gambás. Agora o quarto pichado com várias imagens estranhas. Chega, se vocês têm isto como forma de diversão, nós não. Vamos embora agora deste lugar louco.

- Acalme se homem. Quanto aos gambás, é só levar o cabo roído até a loja que vão lhe confirmar, e as figuras, eu quem deveria estar bravo com vocês.

- Como assim??? Olhei o com fúria.

- Pelo visto, vocês não sabem beber mesmo. Ontem a noite, vim para saber se estava tudo bem com vocês, encontrei a porta meio aberta, você sentado falando sozinho no sofá e sua esposa pegou um resto de tinta e começou a pintar meu quarto.

- Você fez isto? Ou se lembra disto? Perguntei a Manuela.

- Eu não me recordo de quase nada de ontem a noite. Apenas de estar com sono.

- Se ela houvesse pintado uma parede, estaria suja de tinta.

- Amigo, eu a levei até a cozinha e lavei suas mãos e seus braços e trouxe ela para sala. Olhe na pia, está suja de tinta.

Fui até a cozinha e realmente havia marcas de tinta e um pequeno pote sobre a pia.

- Ainda assim, está estranho demais para nós. Pode nos levar até a cidade? Eu vou lhe pagar pela limpeza da parede e esquecemos desta história.

- Guarde o seu dinheiro. Entendo que estejam desapontados por não estarem no lugar onde gostariam.

Onofre, virou se e foi rumo à porta da sala sem nada mais a dizer. Ainda não sabia se me sentia envergonhado ou com medo daquele lugar. Arrumamos as malas e fomos rumo a caminhonete. No caminho, dava pra ouvir a respiração de Manuela ofegante. Olhei para ela, estava mais branca que um floco de neve.

- Amor, está tudo bem? Perguntei preocupado.

- Animam suam...sanguine suo. Repetia como num mantra.

Foi o suficiente para começar a desfalecer em meus braços. Onofre, que já estava dentro da caminhonete veio correndo.

- Senhor, o que aconteceu???

- Eu não sei, ela ficou branca e foi desmaiando.

- Vamos levá la para dentro. Pode ser apenas um mal estar. Disse já me guiando de volta para casa.

Passaram se alguns minutos, até que Manuela se recuperasse.

- O que houve? Me perguntava enquanto sua pele retomava a cor.

- Você passou mal, enquanto estávamos indo para a caminhonete.

- Eu já me sinto melhor, deve ter sido a bebida e os sustos. Disse pegando em minha mão.

- Fico feliz, estava até falando outra idioma. Falei rindo.

- O que ela falou? Perguntou Onofre com a testa franzida ao extremo.

- Não sei, era algo extremamente estranho...anima, animam...não me recordo.

- Animam suam...sanguine suo. Vocês tem que sair daqui agora. Disse pegando me pelos braços.

Passara se apenas uma noite, mas a sensação era de que estávamos a um mês naquele lugar. Horas de estrada, um lugar perdido no meio do nada, apenas um vilarejo esquecido pelo tempo. Quando chegamos para pernoitar na casa de Onofre, imaginava que seria apenas uma noite de sono.

Agora vejo um homem transtornado à minha frente, minha esposa pálida feito um fantasma e nem embora conseguíamos ir.

- Acalme se homem. O que significam estas palavras? Me dirigia ao alarmado Onofre.

- Significa que vocês não deveriam estar aqui. Apenas isto, a senhora já consegue levantar? Vou levá los até São Rafael. De lá trago o cabo do seu carro e peço meu empregado para entregá lo.

- Mas porque desse desespero todo?? Tem a ver com aquela moça???Indagou Manuela.

- Quanto menos souberem, melhor. E esqueçam a garota. Podemos ir?

Diante a firmeza em suas declarações, não o questionamos. Manuela já estava melhor e nos apressamos em partir, embora as tais palavras ainda corroessem minha mente. Arrumamos tudo e entramos em sua camionete, muita suja por sinal.

Onofre não proferia uma palavra sequer, via o nervosismo latente em seu rosto. Mas como estava nos levando embora para uma cidade onde pudéssemos nos acomodar a espera de nosso carro e onde coisas estranhas e palavras estranhas não fossem o usual; ficamos em silêncio e torcendo para que aquela antiguidade motora, vulgo camionete, pudesse chegar até São Rafael.

- Vamos passar pelo vilarejo, é o único caminho que temos.

- Por mim, tudo bem. Quero apenas ir embora deste lugar maluco. Sem ofensas.

Onofre não esboçou nenhuma reação, continuava com o semblante tenso e quanto mais nos aproximávamos de Vila das Almas, mais suas feições contraíam se. Poucos quilômetros à frente e avistamos as primeiras casas, rápido já estaríamos fora de lá. Mas, quanto mais nos aproximávamos, mais Onofre acelerava e eis que entrando na rua principal qual não foi nossa surpresa, um grande pedaço de tronco de madeira cruzando a rua.

- Droga. Foram as únicas palavras sussurradas por Onofre.

- Fiquem quietos, vou tentar tirar o tronco.

- Vou ajudá lo.

- Nãooo. Disparou como uma bala.

- Fiquem quietos no carro, enquanto eu a retiro.

A esta hora, mesmo tendo o mais lerdo raciocínio, já dava pra perceber que algo de muito errado acontecia naquele lugar. Olhei para Manuela. Pelo olhar, nossos pensamentos foram recíprocos.

Enquanto fazia uma força imensurável para mover o tronco de madeira, um vulto veio por trás da camionete aproximando se de Onofre. Era de um sujeito um pouco volumoso.

- Hora, hora, hora. Onde ia com tanta pressa Onofre? Não ia deixar me falar com seus amigos? Disse a voz sem rosto.

- Não se trata disto, a esposa dele está passando mal, ia leva la para o hospital. Respondeu Onofre com sua voz extremamente trêmula.

Aquela altura, ficar passivo dentro da camionete já estava sendo demais, saí para saber o que realmente estava acontecendo naquele lugar.

- Boa tarde. Disse ao homem de costas e qual não foi minha surpresa ao virar se em minha direção.

- Achei que viria até minha cidade, e não nos veríamos. Disse gargalhando.

Era Jonas, meu cliente de Pouso Alegre. Vendo aquele bonachão com um imenso sorriso no rosto, me fez expelir todo suspense criado pelo louco do Onofre. Aliás, o seu semblante naquele momento, parecia mesmo o de um louco, de tão transtornado e estático que estava.

- Onofre disse que sua esposa está passando mal?

- Ela está melhor agora, mas passamos uma noite muito louca, aliás, que raio de lugar você nos enfiou??? Vou lembrar me disto, quando for ao meu escritório. Disse já descontraído.

- Bom que ela está bem, vamos. Vou levá los até minha casa. Vocês merecem um pouco de descontração. Disse já abrindo a porta do carro para que Manuela saísse.

- E você Onofre. Que papelão, depois nós conversamos sobre o modo como tratou meus convidados.

Enfim, aquele estresse se dissipara. Pegamos nossas coisas, Onofre nem sequer olhara em nossa direção. Entrou no carro e Jonas lhe disse algo ao pé do ouvido, desta vez com semblante sério.

Nada melhor do que um almoço de roça, com café colhido a pouco. Minha esposa nem parecia haver passado mal horas antes, estava sorridente e falante. Também, enfim estávamos em um momento de paz, com um rosto simpático e amigo. Sem contar sua residência, uma casa que remete aos meus tempos na chácara de meus avós.

- Não acredito mesmo que tenham passado por tudo isto. Acho que vocês bem encheram a cara ontem a noite. Dizia Jonas gargalhando a cada situação descrita por nós.

- Sério homem. Desde a garota até Manuela desfalecendo foi um pesadelo só. Dizia eu num tom alarmado.

- Ok, vou acreditar. Mas agora, tudo isto é passado. Vou pedir ao Chico, quem trabalha aqui em casa para que busque o tal cabo e conserte seu carro. Até lá, quero que se divirtam um pouco. Logo mais, vai ter uma festa comemorando o nascimento do filho de um amigo nosso. Vai ser em um sítio a poucos quilômetros daqui. Insisto que venham comigo, quero desfazer este mal estar com meu vilarejo.

Não nos restavam muitas opções. E como nosso carro deveria ficar pronto somente no outro dia, Manuela e eu concordamos com Jonas, pois o pouco tempo que passamos ao seu lado, fez com que aquele lugar já não parecesse tão amedrontador. Ele nos levou até um quarto, onde conseguimos tomar um banho decente e descansarmos até o anoitecer, quando seria a tal festa.

Eram umas dezessete horas quando Jonas bateu à porta para que pudéssemos nos preparar.

- Amor, você tem certeza de que é uma boa ideia irmos a esta festa? Indagava Manuela.

- Acho que sim. Você viu que não tem nada demais por aqui, tirando aquela moça maluca. Relembrava.

- E os símbolos. E os fios do carro. E as palavras que eu disse. Enumerava Manuela.

- Já ouviu falar em trauma pós trauma?

- O que seria isto? Disse já com olhar debochado.

- Bom, é um sintoma que acabei de criar. Mas faz sentido. Você vivencia um trauma muito grande, e após este evento, tudo o que acontecer, será impactante. Foi o que aconteceu, ficamos “noiados” apenas isto.

- Pode ser senhor CSI. Disse me dando um beijo.

- Mas vamos a esta festa. Gostei muito de encontrar o Jonas aqui e hoje eu quero me divertir com você.

Enfim, parecia estarmos em um final de semana relaxante.

A noite chegara e havíamos nos despojado de qualquer temor pelo acontecido. Nosso mantra era. “Nos deixamos levar por acontecimentos corriqueiros que se transformaram em devaneios”. Saímos do quarto e nos encontramos com Jonas na sala, já no esperando.

- Achei que vocês tivessem sido abduzidos. Disse gargalhando.

- Só falta isso para completar nosso momento Area51. Respondi envergonhado.

- O pessoal já está na festa. Não percamos tempo.

Nos dirigimos para o tal sítio. Era engraçado como uma mudança de ambiente, transformara aquilo tudo, num fim de semana extremamente normal e agradável.

Chegamos ao local, bem suntuoso, levando se em conta a simplicidade das moradias do vilarejo. Fomos muito bem recebidos. O clima era intensamente festivo, e notava se a alegria no olhar dos moradores, mas em meio a todos, um olhar um tanto quanto disperso. Era Onofre, nitidamente deslocado. Fui em sua direção, pois fora o único a nos prestar assistência ao chegarmos em Vila das Almas.

Chegando até ele, vi o total desconcerto ao deparar se comigo.

- Oolá rapaz. Me desculpe, tenho que ir até a cozinha. Falou no mais completo desafino.

- Calma homem. Só vim cumprimentá lo e agradecê lo por ter nos ajudado.

- Tudo bem, mas preciso ir até a cozinha, daqui a pouco nos falamos. Dizia enquanto fitava todos os olhares ao redor.

Foi então que percebi que muitas pessoas estavam a nos observar, fora uma sensação estranha. E no que voltei a atenção novamente para Onofre, o mesmo a passos largos, havia partido rumo a um paiol, sendo seguido por três outros homens.

Resolvi não dar muita relevância ao acontecido e tinha que procurar Manuela, a deixei aos cuidados de Jonas, o qual avistei pela expansividade física digna de um globo terrestre.

- Jonas, onde está Manuela?

- Se você que é o marido não sabe, imagina eu. Respondeu gargalhando e equilibrando uma imensa caneca de chopp.

- Uai, eu a deixei do teu lado. Vou dar uma volta para ver se a encontro.

- Não precisa, ela deve estar conversando com o pessoal. Aproveite a festa e relaxe homem. Disse me dando uma caneca de chopp.

- Ok, só vou ao banheiro e já volto.

A casa sede do sítio era bem grande, no estilo daqueles casarões da época do café, com imensa varanda em sua frente, pé direito muito alto e cômodos muito espaçosos. Entrei pela cozinha, a muito tempo não contemplava tamanha fartura alimentícia, daria para suprir a fome do estado, pensava eu. Uma senhora veio em minha direção com aspecto inquisidor.

- O que procura aqui meu jovem?

- Me desculpe, preciso ir ao banheiro e procuro minha esposa.

- Bem, o banheiro é logo ali no corredor, virando a esquerda. Quanto a sua esposa, quem é ela?

- Uma moça loira, cerca de hum metro e sessenta. Olhos claros…

- Ah sim, vocês são a visita que o Jonas trouxe, disse me interrompendo.

- Isto mesmo, a senhora a viu?

- Não, mas deve estar por aí, estão todos se divertindo. Daqui a pouco ela aparece. Falou com um sorriso no mínimo trabalhado para parecer natural.

Fui ao banheiro e voltei para o descampado onde estavam comemorando. Naquele instante me esforçava para achar tudo natural e não começar as teorias conspiratórias de Manuela. Mas era impossível não procura la. Comecei então a andar por vários lugares em meio ao emaranhado de pessoas e ao virar o olhar para próximo tal paiol onde Onofre havia entrado. Vi uma moça idêntica a Manuela, adentrando o lugar na companhia de um homem. Andei apressadamente em sua direção quando fui puxado para um recuo ao lado da casa. Era Sofia, a menina que havia entrado na casa em que nos hospedamos.

- Por favor, vá embora senhor. Vocês não deveriam ter vindo aqui. Dizia extremamente tensa.

- Eu vim por causa do meu amigo, e estou procurando minha esposa. Acho que ela está no paiol.

- Não vá até lá, salve a sua…

A jovem não conseguira terminar sua frase, pois neste momento, Jonas acompanhado de um homem mulato, forte a pegou pelos braços com o semblante extremamente sério.

- Sofia, você não cansa de importunar nossos convidados. João, a leve para seus tios. Disse entregando lhe ao homem que o acompanhava.

- Onde está sua esposa? Até agora a procurando?

- Parece que a vi entrando no paiol, falei apontando para o local.

- Mas não há nada lá.

- Então é um nada muito frequentado, pois Onofre e outros três homens também entraram lá mais cedo. Falei já me dirigindo ao local.

Continuei apertando os passos até o paiol, e nisto um homem sai porta afora, bloqueando a minha entrada.

- Com licença amigo, minha esposa está aí dentro.

- Não tem ninguém aqui senhor. Disse continuando a bloquear o caminho.

O que era pra ser uma noite tranquila, parecia mais um revival do dia anterior. Peguei o sujeito pelos braços, e foi a última coisa que fiz após sentir uma pancada na cabeça e cair desacordado.

- Amor, amor. Você está bem? Por favor, acorde.

A voz era deveras familiar e me dava uma sensação de conforto. Aos poucos meus olhos foram se abrindo, não que pudesse observar alguma coisa, estava tudo escuro. Sentia minha cabeça doendo muito pela pancada, e ao tentar me mover, senti meus braços e pernas amarrados. Estava sentado, preso a uma cadeira, Manuela estava presa a uma cadeira ao lado.

- O que está acontecendo Manuela? Porque você entrou naquele paiol?

- Calma, eu só entrei porque um homem me disse que você e o Jonas me esperavam lá para me mostrarem uma surpresa. Após entrar, taparam minha boca com algo parecido com clorofórmio e acordei a poucos instantes e senti alguém ao meu lado, logo deduzi que era você.

- Meu Deus, que loucura é esta?? Será que vão nos matar? Perguntava tentando em vão me desvencilhar das amarras.

-Não sei, sei apenas que o seu amigo, com certeza está envolvido nisto.

De súbito a porta se abriu, as luzes acenderam se. Aos poucos as imagens começaram a tomar forma em minha visão inebriada pela escuridão. Estávamos no tal paiol, postados bem no centro do local, com várias cordas e objetos de corte pendurados na parede, do meu lado direito dava pra perceber uma enorme mesa, estava com manchas com algo parecido com sangue, deviam abater animais neste lugar, pensava eu.

- Ora, ora meu caro Alan. A propósito, este é o meu nome, ou era.

- Lamentável não poderem terem ao menos aproveitado mais a festa. Disse num escárnio brutal.

- Do que se trata isto Jonas??? Vão pedir resgate por nós??? Até onde sei, você não precisa disto para viver.

- Poderia ser simples assim para vocês, mas infelizmente vai um pouco além meu amigo. Em nome de nosso convívio harmônico durante anos de prestação dos seus serviços, irei lhes contar uma triste história para que não tenha mau juízo dos meus atos. Falou em um tom deveras debochado.

- A bastante tempo, muito além do que você poderia imaginar, nossos antepassados construíram esta vila. No início era um lugar pobre, com escassos recursos, não diferente dos dias de hoje. O pouco que produziam nunca era o suficiente para arcar com as despesas, eram dias muito difíceis e ficou mais ainda com a chegada de um andarilho, apareceu tão perdido quanto vocês. Infelizmente, a cordialidade não condizia com a escassez alimentícia a que foram cerceados nossos bisavós, e após uma acalorada discussão sobre a divisão dos poucos pertences do pobre homem, eis que o mataram num total ato de selvageria. O enterraram junto a pracinha que na época era apenas um descampado onde crianças jogavam bola.

Passados uns dias, chegara à vila alguns ciganos, vindos sabe se lá de onde. Estavam a procura do dito cujo que fora assassinado. Lógico que negaram a existência do homem por lá, não fosse um desavisado morador portar o colar que haviam surrupiado do infeliz.

Após uma verdadeira batalha campal, os homens do vilarejo conseguiram prender o que sobrara dos ciganos que não foram mortos, dentre eles o seu líder. Estavam sendo levados para o local onde o primeiro cigano havia sido enterrado, construíram um pequeno palanque e quando se pensava não serem capaz de mais atrocidades, os moradores num êxtase macabro e profano, torturaram, mutilaram e embriagados por litros de destilado encontrados no pequeno caminhão em que os ciganos chegaram.

Propuseram uma festa para congregar a chacina como um ato de heroísmo. E ao ser levado para execução, o líder dos ciganos proferira trechos de cânticos a muito esquecidos e olhando atentamente para cada um dos moradores falou.

-“Que a carne que ceifa, vire a carne que apodreça e se alimente dela para poder rastejar” Animam suam...sanguine suo...Sua vida, seu próprio sangue.

Dito isto, a carnificina continuou, mais selvagem ainda, por haver o líder cigano ousado ameaçar os moradores. Suas mãos cortadas a golpes de machado eram jogadas aos cães famintos que as comia com avidez. O homem teve olhos extirpados com a ponta de uma faca quente e o faziam cauterizando as feridas para que o mesmo não morresse de imediato. Resumindo, os instintos mais cruéis e animalescos se fizeram presentes naquela noite, homens e mulheres protagonizaram o que de mais vil, poderia chegar o ser humano, findando num banquete onde pedaços dos executados foram servidos assados na brasa de uma imensa fogueira.

- O Diabo teria medo desse lugar meu caro. Mas enfim, o que vocês tem haver com isto?? Com certeza se perguntam.

Um ato selvagem como este, não passou em vão para Deus ou quem quer que reine sobre nós. Passado alguns meses desta selvageria, os aldeões nem se lembravam mais do acontecido, foi quando, alguns moradores perceberam que algo acontecia com seus corpos. Mesmo os mais jovens começaram a perceber manchas em sua pele, que com o passar dos dias, começavam a criar feridas, e mesmo tratadas, expandiam. No decorrer de semanas, estavam necrosando, seus dentes começavam a cair, cabelos, unhas, enfim, seus corpos estavam decompondo com eles ainda vivos. Foram a vilas maiores a procura de médicos e o único diagnóstico que obtinham eram de que estavam com lepra ou alguma doença misteriosa para a ciência da época.

Depois de inúmeras mortes, em uma das reuniões que faziam, relembraram as palavras do cigano antes de morrer. Parecia loucura, mas o que ele havia dito sobre a carne que mata, vira a carne que apodrece e tem que come la?? Seria isto, se perguntavam.

Dois dias após esta reunião, um caixeiro viajante que levava alguns medicamentos para serem vendidos na vila, chegara. A reação de meu bisavô foi quase instintiva e plantou lhe uma machadada na cabeça quando o mesmo sentara se na mesa do botequim onde sempre parava ao chegar de viagem e apreciava seu robusto copo de cachaça.

- Acho que resolvemos o problema. Disse meu avô enquanto arrastava o mutilado homem até a rua.

- O que faremos agora? Perguntava outro morador.

- O cigano disse que a carne que mata é a que apodrece e precisa se alimentar dela. Então só pode significar uma coisa. Acenda a fogueira. Falou meu bisavô num misto de ansiedade e excitação.

-Dito isto, todos os moradores se reuniram na noite do acontecido e numa mórbida comunhão alimentar, serviram se com os restos do caixeiro.

-Bem meu caro Allan, o que aconteceu após o banquete foi que, os moradores começaram a terem suas feridas cicatrizadas, todos voltando ao normal e durou aproximadamente hum ano até que o ciclo precisasse ser refeito. Acho que não preciso explicar lhes mais.

- Vocês vão nos comer???? É isto que está dizendo Jonas??? Perguntei lhe ofegante.

- Não é um churrasco entre amigos, é apenas para prosseguirmos nossas vidas sem esta maldição. Sorrindo e olhando para nós.

- Isto é loucura, não existem maldições, fantasmas, bruxas. Vocês são todos loucos.

- Infelizmente é a mais pura realidade meu amigo. Retificou se dirigindo a parede repleta de facões, machados e afins.

- Jonas, ponderemos então. Já que o problema se refere a se alimentarem de uma pessoa para conseguirem sobreviver, porque não cortam um dedo do pé meu, alguns do Allan e problema resolvido. Indagou Manuela.

-Como assim “um seu e alguns meus”?? Retruquei.

- Já tentamos isto Manuela. E não funcionou. Não somos irracionais como nossos antepassados, apenas pagamos pelos seus erros.

Jonas dizia estas palavras amolando um grande machado enquanto dois homens vinham em nossa direção tirando as amarras e com certeza nos levaria para a grande mesa manchada de sangue.

Eu fui o primeiro a ser conduzido à tal mesa. Era nítido o olhar pecaminoso com que Jonas e os outros homens se dirigiam ao ato em si, aquilo para eles já havia adentrado em suas vidas e a forma como me seguravam, como ele amolava o machado, era tão natural que ficava me perguntando onde começava a insanidade e onde parava a humanidade.

Senti as amarras em volta do meu braço, apertando a ponto de sentir formigamentos. O suor vertia por todo o corpo, eram náuseas, uma dor de barriga incomensurável. Jonas olhou em meus olhos.

-Não vamos mata lo de imediato, descobrimos que a carne fresca, comida aos poucos, tem mais valia em nosso organismo. Assim não precisamos abater muitas pessoas de uma só vez. Não lhe disse que não somos irracionais. Falou fazendo uma marca de tinta no meu antebraço.

- Por favor homem. Você não precisa fazer isto. Hoje a medicina é muito avançada. Clamava em vão.

-Desculpe. Apenas prenda a respiração, por favor.

Disto isto, um único golpe. Senti apenas o toque do aço gelado em meu antebraço. Não posso dizer que doeu muito, pois desmaiei. Acordei horas depois com o gosto de cachaça na boca, meu braço esquerdo estava cauterizado e amarras sujas em volta do que sobrara dele. O torpor provocado pela dor, transformava aquele momento num misto de devaneios e realidade interagindo. Me levantei aos poucos, sentindo muita dor. O estranho é que eu não estava morto e, estava desamarrado, olhei em volta e havia sangue espalhado por todo o centro do paiol.

Lentamente fui retomando minha razão e um nome pairava em meus pensamentos. Manuela. Onde estaria? Teria sido morta por aqueles animais?

Comecei a andar em busca de algum sinal seu, e pude perceber restos humanos espalhados pelos arredores do paiol. De início fiquei estático com a possibilidade de serem dela, mas olhando aguçadamente, percebia serem de homens, e haviam sido arrancados como por um animal enfurecido. Andei até a saída, e ao abrir a porta, qual não fora meu espanto. Um mar de sangue recobria toda a área ao redor do sítio, onde todos comemoravam. Uma cena absurdamente inenarrável de tão dantesca que era. Corpos mutilados empilhavam se e era até difícil caminhar por entre eles. Não sabia o que acontecera e pra falar a verdade, nem me importava. Queria apenas encontrar minha esposa e tentar escapar daquele resort de Tuonela.

Chegando próximo à entrada principal do sítio, percebi uma forma agachada ao lado de um sofá de palha na varanda. Me aproximei calmamente.

- Você?? O que faz aí escondida?

Os olhos assustados, se dirigiam a mim como se houvessem presenciado a terceira guerra nuclear.

-Por favor, vamos embora daqui. Me respondeu.

- A peguei pelas mãos sujas de sangue, não era seu.

- Levante se Sofia, precisa me ajudar a encontrar minha esposa.

- Acho que sei onde ela está. Mas temo em chegar lá.

- Porque? Perguntei.

- Lhe mostro.

Caminhamos em direção à entrada do sítio, literalmente um mar de corpos empilhavam se na porteira central. Era difícil o acesso e eis que vislumbro, caída bem a frente do mar de corpos, Manuela, estava coberta dos pés a cabeça de sangue. Senti calafrios vendo a e imaginando o pior, corri em sua direção. Sofia permanecia estática, observando a distância. Peguei a pelos braços, aliás, o que sobrara deles. E a levei para próximo a uma torneira, tirei a camisa a molhei e comecei a limpar seu rosto, ainda não dava pra saber se estava viva ou ferida, foi quando um suspiro profundo, e suas mãos fortes como eu jamais imaginara, me pegou pela garganta, seus olhos abriram se cobertos do mais puro ódio e quando estava já desfalecendo, soltou me e começou a chorar.

Não entendi absolutamente nada. Apenas me restabeleci, a abracei e continuei a limpa la, aos poucos, uma voz trêmula veio a tona.

- Amor, onde estamos? Me perguntava enquanto se encolhia próxima a mim, horrorizada com o cenário ao redor.

- Não sei, sei apenas que estamos vivos, e devemos irmos embora o mais rápido possível deste lugar.

Nos levantamos, meio cambaleantes e agora com a ajuda de Sofia, fomos em direção ao carro de Jonas, e uma surpresa final. Onofre, desfigurado, agonizando junto à porta do motorista.

Fomos em sua direção, consternados e tentando minimizar seu sofrimento.

- Onofre, acalme se. Você vai ficar bom. Falei no mais completo jargão cinematográfico.

- Sei que estou morrendo, peço desculpas por tudo isto. E sei que sou culpado, por vocês e pelo povo da vila. Deveria tê los levados antes de tudo isto.

Percebi naquela noite em que você havia feito as escritas no quarto. Eram símbolos de evocação usados em rituais de magia negra. Chamei Jonas e falei que devíamos deixá los irem embora. Ele não me ouviu, continuou sua sina mórbida.

Quando você proferiu aquelas palavras pela manhã, tive a certeza de quem você era.

- Como assim, quem eu sou? Perguntava atônita Manuela.

- Veja o que aconteceu. Você não se lembra, porque não fora apenas você a fazer isto. Os espíritos de todos os seus antepassados fluíram através da sua forma e vingaram a todos que foram acometidos pela carnificina praticada por Vila das Almas.

- Então, eu sou descendente do povo morto por vocês???

-Sim, você livrou a todos nós deste mal. Só não sei o tamanho do mal que há em você. Disse já desfalecendo.

Não me importava saber de mais nada, apenas queria sair daquele lugar com minha esposa e Sofia. Colocamos Onofre sobre o emaranhado de corpos e partimos. Nem uma palavra, nem um pensamento. Apenas o desejo mais profundo de estarmos bem longe daquele lugar. Foram horas angustiantes mas enfim, conseguimos nos salvar deste pesadelo.

Passados dois meses do acontecido, paguei a um conhecido para dar fim ao carro de Jonas, dei queixa de roubo pelo meu carro. Sofia ficou morando com nós, e o acontecido em Vila das Almas tomou conta do noticiário por mais de uma semana até que o aumento do combustível e a queda do PIB tivessem mais ênfase para o público em geral.

Eu estou conseguindo me virar sem um dos braços, não vai dar mais para tocar violão, mas vida que segue. Para minha esposa, não foi tão simples, mas passadas semanas de terapia e um bom bocado de ansiolíticos ajudaram a diminuir seus pesadelos. Manuela demorou para assimilar que havia se transformado numa vingadora ceifadora de vidas, mas estava tentando administrar a situação da forma menos traumática possível. Quer dizer, até hoje pela manhã, quando acordei com os mesmos escritos no quarto da casa de Onofre pintados em nossa parede.

Fim

Reggis
Enviado por Reggis em 27/03/2020
Reeditado em 28/03/2020
Código do texto: T6898594
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