Ruídos no porão

Sala escura, uma garota branca de 25 anos com os braços formando um “v”, enquanto as mãos estão segurando uma à outra, cabelos longos, olhos verdes com uma camiseta de manga branca e calça jeans. Ela é Juliana e estava ali para relatar um ocorrido em sua casa recém-comprada. A sua frente, um homem de cabelos grisalhos, camisa branca, gravata preta com bolinhas brancas, relógio de pulso de ouro falso, segurando um cigarro entre os dedos, com os dois braços repousados, ao lado de um cinzeiro de vido, em cima da mesa. Em frente a sua mão direita, a que segura o cigarro, esse sujeito era Cesar: policial sessentão que já tinha escutado de tudo e estava cansado, mas não tem hora para acontecer alguma merda daquele tamanho. Ele está sério e ela, um tanto transtornada. Ao lado deles, um vidro que não transparece absolutamente nada. O homem retira um gravador do bolso, liga-o e coloca sobre a mesa, perto dela.

Delegado: Hoje é sábado, 10 de abril de 2018, 21 horas e eu sou o delegado Cesar Rodrigues, estou recolhendo o depoimento da testemunha Juliana Vasconcelos. Pode começar.
Juliana: Pode fumar aqui dentro?
Delegado: Eu posso. Mas não é isso que precisa ser registrado nesse gravador. Por favor, se concentre no seu relato.
Juliana: Ok...
Delegado: Me conte tudo, desde que a senhorita chegou na casa. Fale com detalhes.
Juliana: Como num diário?
Delegado: Exatamente. Como num diário.
Juliana: Tá bem. Faz duas semanas que eu comprei a casa. Eu tinha acabado de voltar do meu médico e fui acertar a papelada com a antiga proprietária. Era uma senhora de seus 70 anos, dona Adelaide. Ela me vendeu bem barato, o que foi surpresa pra mim. Eu até perguntei por que e ela disse que lá havia fantasmas, o que eu achei engraçado, mas não demonstrei. Já pensou? Uma pessoa que acredita em fantasmas? Mas então...
Delegado: Senhorita, desculpe interromper. De qual médico você tinha voltado?
Juliana: Isso é relevante?
Delegado: Tudo é relevante.
Juliana: Tá, eu tinha ido ao psiquiatra antes de acertar a papelada. Quando eu era adolescente, tive alguns episódios de crise de pânico e tomo remédio todo dia.
Delegado: Tudo bem, prossiga.
Juliana: Beleza, mas então, eu comprei a casa, recebi a chave, voltei para o apartamento da minha prima Júlia, porque o caminhão de mudanças chegava só no dia seguinte. E foi assim. Quando amanheceu, eu peguei um Uber até a casa, que como o senhor sabe, fica naquela vila mais antiga...
Delegado: Desculpe interromper a senhorita de novo, por que você escolheu justamente uma casa naquela vila?
Juliana: Ah, porque lá só mora gente idosa. Dormem cedo, não fazem barulho. Eu posso escrever meu livro tranquila.
Delegado: Não sabia que a senhorita era escritora.
Juliana: Primeiro livro que vai ser publicado.
Delegado: Por favor, prossiga.
Juliana: Certo. Eu cheguei lá, abri para a porta para os caras do caminhão de mudanças e eles deixaram minhas coisas mais ou menos onde elas deveriam ficar mesmo. O resto do dia eu fiquei organizando. E nesse primeiro dia não havia acontecido nada. Foi tudo normal. A casa era bem organizada. A antiga dona a deixou bem limpinha. Não tinha rato, nem barata, a fiação e os encanamentos eram todos novos. O único problema da casa era o porão. A porta estava trancada, mas dona Adelaide disse que havia perdido a chave e nunca mais achou. Era uma pena porque eu realmente queria abrir pra dar uma limpada, quem sabe devolver pra ela alguma coisa que ela tivesse sido deixada lá.
Delegado: A senhorita não pensou em chamar um chaveiro pra mexer na fechadura?
Juliana: Chamei sim, mas não adiantou de nada. Nenhuma chave que ele tinha conseguia abrir a porta. A explicação mais lógica que ele deu era que esse tipo de fechadura era muito antiga, não se fabricava mais, e nem a chave.
Delegado: E você não tentou arrombar?
Juliana: Pior que eu e o chaveiro tentamos, mas era dura demais. E eu, sinceramente, tanto não tinha dinheiro para pagar alguém quebrar a porta, como também não tinha nenhum incômodo com ela fechada. Eu até pensei em fazer isso pelo piso porque é de madeira, mas ia ser mais caro para consertar. Mas enfim, no segundo dia eu fiquei o tempo todo na casa, só vendo TV, comendo, ouvindo música, escrevendo, fazendo comida para o dia seguinte, e só. Foi tudo normal. No outro dia, foi mais ou menos a mesma coisa. Como eu não trabalho no momento, eu passo muito tempo em casa. Mas então, à noite eu saí com uns amigos, fui beber, dançar, essas coisas.
Delegado: A senhorita pode beber? Porque você disse que tomava remédio.
Juliana: Eu não tomo no dia que vou beber.
Delegado: Ok... Só mais uma dúvida. A senhorita recebeu visita na sua casa?
Juliana: Só no segundo dia. Teve um cara que eu chamei lá, era um colega da época da faculdade.
Delegado: Era só um amigo?
Juliana: Tá, eu trepei com ele. Mas isso tem a ver com o depoimento?
Delegado: Não, só pra saber mesmo, continue.
Juliana: Certo. Eu voltei para a casa e foi aí que eu ouvi uns barulhos, tipo arranhões, vindos da sala. Na hora, eu pensei que poderia ser rato. Fiquei puta, porque a dona Adelaide não disse que tinha isso lá. Eu até estranhei, porque a casa era limpinha, mas foi aí que eu me liguei que o barulho vinha do chão. Justamente onde ficava a porra do porão. Enfim, eu deixei pra lá. Pensei: qualquer dia eu furo uns buracos nesse chão e jogo umas pastilhas de veneno e mato esses bichos, mas, enfim, eu fui dormir. Só que, nos cinco dias seguintes, os barulhos continuaram, e eu colocava os fones pra não ter que escutar. O problema é que, até a semana seguinte, os barulhos não eram mais só na sala. Eles passaram a ser também na cozinha, principalmente quando eu fazia comida, mas, depois passou a ser nos corredores, nos dois quartos, incluindo o que eu dormia. Eu tive que comprar aquele tapa-ouvidos pra conseguir dormir. O foda é que atrapalhava de ouvir o despertador. O único lugar que eu tinha paz era na lavanderia, que ficava nos fundos da casa, onde o chão era de pedra, e no banheiro, que era de azulejo, mas tudo ficou mais estranho na semana seguinte. Isso porque a dona Adelaide foi viajar e pediu para mim que o neto dela, o João, de 14 anos, ficar na casa durante esse tempo. A princípio, eu queria gritar com aquela velha. Porque ela me vendeu uma casa com um porão que não abria de jeito nenhum, com rato debaixo do piso e eu ainda teria que ficar com o pivete dela, mas eu não fiz isso porque, sei lá, ela me vendeu tão barato a casa e eu até que estava me sentindo sozinha. Mas não adiantou muita coisa, o moleque não falava nada, só ficava no quarto escutando música. Na hora de comer eu tentava puxar conversa, mas ele não queria papo e meio que ignorava os barulhos. Apesar de umas vezes que eu peguei ele olhando para a porta do porão. Eu achava aquilo bem bizarro. Perguntei se ele sabia abrir, mas ele não respondia. Fora que a convivência com ele começou a ficar bem desagradável. Teve uma vez que eu tinha saído do banho, fui trocar de roupa, e ouvi uns passos do lado de fora. Aí eu saí da frente do buraco da fechadura, fui caminhando e quando abri, ele estava lá, parado, só me olhando, sem expressão, mas deu pra ver o volume na calça daquele tarado. Eu gritei com ele, disse que ia contar pra dona Adelaide, mas ele só saiu calado e foi para o quarto.
Delegado: Você tá sabendo que o moleque sumiu né?
Juliana: Faz sentido né? Ele estaria apreendido agora depois do que a gente descobriu.
Delegado: De fato, mas segue o bonde.
Juliana: Enfim. Teve um dia que eu voltei do mercado, deixei as coisas na cozinha e vi que a porta do quarto dele estava aberta. Foi quando eu vi a porra do moleque deitado, com o pau de fora, cheirando a minha calcinha e olhando o notebook. Eu fiquei putaça mesmo. Gritei: SEU FILHO DA PUTA. Corri até ele, tirei a minha calcinha da cara daquele fedelho, mas vi que ele estava protegendo o notebook, aí foi naquela hora que eu pensei em dar o troco. Consegui puxar o aparelho dele e quando eu olhei, sério, eu não acreditei no que vi.
Delegado: O que tinha lá?
Juliana: Cara... Era bizarro pra caralho. Eram umas pornografias pesadas, de pessoas sendo estupradas em cativeiro. Eu até pensei que isso fosse real, tipo coisa da deep web, mas eu vi o nome dos “artistas” embaixo. Tipo é absurdo, mas nem dava para denunciar, porque tecnicamente era encenação.
Delegado: É. Essa molecada de hoje tá bem doente, mesmo.
Juliana: Eu simplesmente fiquei enojada. Aí foi a primeira e última vez que o filho da puta soltou a voz. Ele simplesmente gritou para eu devolver e eu larguei o notebook em cima da cama. Disse que ia contar tudo para avó dele. Ele nem respondeu. Provavelmente aquela velha sabia que o neto era um tarado maníaco e nem ligava. Enfim. No dia seguinte, quando chegou o momento daquele puto ir embora, a velha ligou dizendo que ia chegar tarde em casa, porque o avião havia atrasado, e me pediu para deixar aquele anticristo na casa dela. Eu simplesmente paguei um Uber para ele e pronto.
Delegado: Quanto tempo ele ficou lá?
Juliana: Quatro malditos dias.
Delegado: E a senhorita não notou nada de estranho no jeito como ele agia? Nenhuma atividade suspeita?
Juliana: Fora o fato de ele ser esquisito, se masturbar atrás da minha porta e olhar vídeo de pornô de estupro, não.
Delegado: Beleza. Continua.
Juliana: Tá, mas então, quando eu já não tinha mais aquele merda na minha casa, os arranhões começaram a ficar mais fortes, como se os ratos quisessem sair pelo chão. Eu comprei as pílulas de veneno e fiquei jogando por uns buracos. Eles até chegaram a parar, mas, no dia seguinte, a coisa ficou realmente assustadora, porque além dos arranhões, eu passei a ouvir uns gemidos. Sério. Eram gemidos desesperados. Eles apareciam quando eu estava no meu quarto tentando descansar, na cozinha quando eu comia alguma coisa que tinha pedido, e, principalmente na sala, quando eu ficava sentada no sofá vendo TV.
Delegado: E a senhorita não pensou em, sei lá, quebrar o chão ou a porta, porque, naquela altura, não valeria a pena gastar com conserto?
Juliana: Então, o senhor lembra que eu disse que tomo remédio?
Delegado: Lembro.

Juliana tira uma bula dos bolsos da calça e entrega para César, que o abre e vê uma parte grifada, escrito: causa alucinação.

Juliana: Eu pensava que estava alucinando por causa do remédio. Era uma época que o efeito estava pesado, e aquela velha falou tanto de fantasma que eu pensei que tinha levado isso para as minhas alucinações e podia ser espíritos de pessoas que moravam lá. Tipo, as alucinações são em casos extremos de efeitos colaterais, mas podem acontecer. Eu não conseguia escrever, mal dormia e nem fazia comida. E sério, eu estava ficando nervosa com todos aqueles arranhões e gemidos. Eu cheguei a pensar até que os arranhões eram alucinação minha, porque o moleque fingia que eles não existiam. Eu perguntei à dona Adelaide e ela disse que não tinha escutado nada no tempo em que ela morou lá. Só que, além dos arranhões, dos gemidos, eu comecei a ouvir barulhos de algo batendo no piso pela parte debaixo. E eu só parei de achar que estava alucinando, quando eu vi o chão de madeira começando a ter rachadura. Aí, quando a barulheira parou, eu chamei uma vizinha, mostrei para ela e perguntei se ela também via, ela confirmou. Foi aí que eu notei que tanto os arranhões, os gemidos, as pancadas eram de verdade. Como rato não sabe gemer, eu chamei vocês. Quando os policiais chegaram, eu pedi que entrassem no porão pelo chão já que estava mais fácil de quebrar devido à rachadura.
Delegado: A senhorita está tão calma depois de ver o que viu?
Juliana: É por causa da medicação, me deixa meio sedada, mas sério! Na hora, como os seus homens viram, eu gritei, entrei em choque, chorei. A questão é que eu tomei um comprimido e estou mais calma agora. Até ajudou o senhor na hora deste depoimento, né?
Delegado: De fato. Mas a outra questão, dona Juliana, é que faz duas semanas que a senhorita comprou a casa. Segundo o legista...
Juliana: Espera aí. Legista? O cara morreu?
Delegado: Sim. Ele morreu. Segundo o legista, o rapaz tinha ficado duas semanas sem comida, só tinham algumas garrafas de água vazias lá. Os gemidos, eram porque a língua dele tinha sido cortada, e ele não tinha olhos nem dentes. Isso explica o fato dele não conseguir gritar ou achar a porta para conseguir sair. Fora que ele estava paraplégico. O problema é que o tempo dele lá bate exatamente com o tempo que você esteve na casa.
Juliana: Beleza, mas a dona Adelaide só foi embora um dia antes de eu chegar, e ela morava com aquele neto maluco dela, que provavelmente fugiu quando eu liguei pra ela saindo de casa dizendo o que aconteceu. Cara... eu não consigo esquecer. O homem com buracos nos olhos, gemendo fraco, deitado no chão, com as pernas já bem finas, com a pele toda cinza, toda ferida, magro, que dava pra ver o contorno do osso.
Delegado: Fora o oxigênio limitado.
Juliana: Pois é. Aquilo foi assustador.
Delegado: A senhorita vai voltar para a casa?
Juliana: Claro né. Duvido que alguém ainda compre aquilo depois dessa história.
Delegado: Sim. Mas é isso. Você tá liberada, mas antes, eu só queria uma descrição do rapaz, o neto da dona Adelaide.
Juliana: Cara... Ele usava quase sempre uma camisa preta do Cannibal Corpse, tinha cabelo preto cacheado que chegava a cobrir os olhos, era muito magro e tinhas até umas marcas de espinha estourada na bochecha. Eram bem poucas. Rosto meio redondo.
Delegado: Tudo certo. Então, agora sim, a senhorita está liberada. Qualquer coisa a gente te liga.
Juliana: Tudo bem delegado. Obrigada.
Delegado: Precisa de carona?
Juliana: Adoraria.

Os dois deixam a sala, passam pelo corredor até a recepção, saem pela porta e entram no carro, um gol 2005. Durante a viagem, até a casa de Juliana, eles conversam coisas triviais. O delegado César conta alguns casos quase tão assustadores quanto o do moribundo achado no porão da casa de Juliana, de forma resumida, mas também comenta algumas coisas engraçadas que eles veem na rua, ela ri. Eles entram na vila e César a deixa no portão de sua casa. Ela abre o portão baixo e depois passa pela porta de madeira. Assim que ela fecha a porta, acende as luzes da sala, caminha até o sofá, coloca a mão num buraco de uma almofada e retira uma chave velha. Coloca-a no bolso e vai até a lavanderia. Recolhe um balde, enche de água na torneira e o leva segurando pela alça até a porta de madeira do porão. Ela então retira a chave do bolso, enfia na fechadura da porta e a abre com facilidade, revelando uma escada para um fundo escuro. Ela acende a luz na parede do porão e vai descendo lentamente. Chegando lá, encontra uma mesa de madeira, e sobre a mesma, um rapaz, de possíveis 14 anos, com os pulsos e os tornozelos presos por correntes que ficavam encaixadas nos quatro pontos da mesa. Ele está desacordado e com uma mordaça na boca. No chão, perto da escada, um frasco alaranjado de remédio com pílulas brancas, mas pela metade. O rapaz se mexe um pouco e geme como se estivesse acordando. Ela se aproxima do rapaz e joga a água em seu rosto. Ele então arregala os olhos e começa a gemer mais alto e se retorcer sobre a mesa, inutilmente. Ela joga o balde no chão e sorri, com um olhar tranquilo.
Fim.
Gabriel Craveiro
Enviado por Gabriel Craveiro em 03/04/2020
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