INEXORÁVEL

O caminhão rasgava o Cerrado. Os olhos arregalados, através da pequena fresta, espiavam o azul celeste rabiscado por algumas poucas nuvens brancas. Quase nenhuma árvore baixa, de troncos grossos e retorcidos como sugeriram a geografia em livros. Na vida real era um tapete de cor única, tal qual o deserto. “Sim! Um deserto. Verde. De soja”. A pista irregular chacoalhava o veículo que subia e descia. O sereno escorria pelas gretas do teto e salpicava-lhe o rosto. O odor que irritava o estômago logo denunciava que não era sereno de chuva. Era agrotóxico pulverizado por algum avião que perdera a rota.

Haviam três dias que viajava na carroceria daquele caminhão. Desconfortável aposento para uma pessoa de sua envergadura. O condutor nem ao menos tivera o capricho de retirar os excrementos bovinos do piso. Aquelas fezes úmidas certamente provocar-lhe-ia micoses violentas nos pés. Tivera, no entanto, o motorista que guiava seu destino, o delicado cuidado de cobrir a redoma que tornara sua residência nos últimos três dias, impedindo-o de ver o firmamento estrelado, embora estrelas já fossem um fato raro em suas noites paulistanas. Com os pés e as mãos atados por correntes e com a boca amordaçada, não podia fazer nada a não ser esperar pelo desfecho daquela viagem forçada.

Acordou com um inconfundível cheiro de mato. O barulho da água brigando com as pedras acusava a cachoeira. O caminhão parou e dele desceu o seu algoz que finalmente o retirou da carroceria, o jogou sobre o solo e o acorrentou no tronco de uma árvore.

O homem sacou um machado da boleia do caminhão e começou a afiá-lo sobre uma pedra. Ele acorrentado e amordaçado tão somente tinha o direito de arregalar os olhos e imaginar o que aconteceria ali. “Chico tome cuidado. Reflita bem sobre o que você está fazendo com a sua vida. Lembrou-se ele dos infinitos conselhos da mãe”. “Com certeza ele deve me esquartejar com esse machado e deixar que os vermes terrestres me decompõem nesse lugar esquecido por Deus. Pensava”. O homem continuava a afiar o machado e vez ou outra com o polegar provava se o fio estava no ponto.

“Chico. Para com isso. Eu não quero enterrar um filho”. “Ao menos minha mãe não terá o desprazer de me enterrar”. Pensava, enquanto fiapos de lágrimas rolavam sobre o rosto e encharcavam a mordaça. O machado parecia estar pronto e o homem veio em sua direção. Ele não fez nada mais do que se estrebuchar sobre o solo. Na vã ilusão de se libertar das correntes. O homem passou reto e se pôs a cortar uma árvore.

“Sempre será assim filho. Você não vai mudar as coisas. Esse caminho só irá abreviar a trajetória de sua vida”. “Mamãe estava certa”. O homem continuava a cortar a árvore. “O que ele fará com essa árvore”. O desconhecido que daria cabo a sua vida, cortou dois pedaços de árvore de tamanhos diferentes. Foi novamente a boleia e agarrou um martelo e alguns pregos.

Sobre o chão de folhas secas caídas, o homem martelou uma cruz e iniciou o procedimento. Quando Chico já estava crucificado e sentia a vida esvaindo o homem proferiu as únicas palavras:

- Não me jugues mal. Apenas faço o meu trabalho, ou melhor, faço aquilo que deve ser feito. No final das contas tudo e todos temos um propósito. Esse é o nosso.

Chico olhou-o atônito. A morte abraçava-o lentamente. Com os olhos entreabertos via o sol ao longe cada vez mais perto. De repente a luz solar inundou tudo e ele fechou os olhos pela última vez naquela vida.

Na manhã seguinte um grupo de hippies que foram fumar maconha e banhar nas cachoeiras do Jalapão encontrou Chico desfalecido, pendurado em uma cruz. A notícia de sua morte, ambientalista de renome, abalou o mundo. Laudos apontaram a possível causa da morte como sendo por transfusão de uma espécie rara de agrotóxico, desconhecido pela ciência.

Diversas teorias foram formuladas para explicar a sua morte. Porém, apenas duas galgaram o status de serem relevantes do ponto de vista da recepção do público: A primeira ostentava a versão de que o próprio ambientalista tirou a sua vida no intuito de alertar a sociedade sobre o novo agrotóxico descoberto. Para tanto, aceitou o destino de ser crucificado em nome da humanidade, portanto, a semelhança com Jesus não era mera coincidência; já a segunda versão dizia que foram as próprias fábricas de agrotóxicos quem tinham ceifado a vida do ativista – que se notabilizou pela denúncia contra a forma com a qual a humanidade vinha produzindo sua alimentação, cujo alvo principal eram as indústrias de agrotóxicos. Neste sentido, o assassinato tinha o condão de ser um aviso para todo ativista, caso quisessem trilhar este caminho.

Se fora suicídio, ou se fora assassinato, isso não importou para o que sucedeu. Estudos apontaram que o novo agrotóxico encontrado no corpo do rapaz era extremamente letal a saúde humana. Não durou muito para que cientistas das maiores produtoras de agrotóxicos denunciarem que eram aquelas composições químicas que suas empresas estavam pesquisando. Que não sabiam como o rapaz tivera a sua fórmula pronta e acabada. Mas que se recusariam a dar seguimentos às pesquisas, pois não queriam ser os responsáveis pela extinção da humanidade.

O caos se estabeleceu. Manifestações eclodiram ao redor do mundo, reivindicando uma forma limpa de produção de alimentos. As 10 empresas que sozinhas controlavam 85% do mercado mundial de alimentos reagiram e impuseram seus interesses aos governos nacionais sob seu controle.

A Europa – cuja população era a mais avançada em relação à busca por alimentos saudáveis, porém, que, no entanto, era a que detinha a metade do número de empresas produtoras de veneno entrou em Guerra Civil.

A América Latina que tinha quase todos os governos subordinados aos EUA que, por sua vez, detinha a outra metade das empresas produtoras de agrotóxicos, também entrou em Guerra Civil.

Quando os países da Eurásia finalmente interviram em respectivas Guerras Civis, eclodiu a Terceira Guerra Mundial. Foi assim que uma bomba atômica, disparada provavelmente desde Washington D.C., pôs fim a história da humanidade.

bily anov
Enviado por bily anov em 09/04/2020
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