A Execução

Era uma manhã fúnebre. O céu estava cinzento, sentia-se um forte cheiro de terra molhada, e uma impiedosa garoa aumentava de intensidade à medida que o momento da execução se aproximava. Américo Uhrig, vestido todo de branco, dava a impressão de ser um fantasma, e por alguns minutos, acreditei mesmo que a execução havia ocorrido no dia anterior, e aquele momento nada mais era que a maldita memória fazendo seu implacável labor de torturar-nos com lembranças que desejamos olvidar. O Morcego – alcunha que recebera o condenado – cruzou o pátio dirigindo-se para o cadafalso da forca erigido à frente da prisão. Embora tivesse os braços atados, subiu a escada do cadafalso sem a menor ajuda, e voltou-se para a esquerda e a direita. Sorriu para o público que acompanhava a execução, e depois, em um elegante movimento, curvou-se levemente, como um veterano ator que agradece aos aplausos da excitada plateia. Ignorou ao capelão, assim como fizera na noite anterior, quando diante de suas exortações, fingiu dormir. Sou Juiz, escolhi este oficio justamente por meu interesse na natureza dos homens, e muito me empenhei para conhece-los em seus mais ocultos aspectos. Devo dizer, que até aquele momento, O Morcego em nada havia me surpreendido. Era somente um típico homem não religioso, um anarquista tão comum nessa época de revoluções. < Como estava enganado! >

Os religiosos encontram conforto em minhas palavras, e quando estão diante da forca, mostram-se tão apáticos e indiferentes, que se tem certeza de que já não lhes resta vida alguma antes mesmo que a forca lhes quebre o pescoço. Os religiosos morrem para dentro. O Morcego era um outro tipo de homem. Acreditando que a única existência é a deste mundo, vê na morte nada mais que a última cena do drama que é a existência humana. Morrem para os outros, morrem pendentes da opinião dos outros, morrem oferecendo um espetáculo que acreditam – e desejam – permanecera guardado por muitos anos na memória dos que tiveram o privilégio de verem um homem morrer. Esses sujeitos têm a propensão de tornarem-se os heróis e mártires. O Morcego morre para fora. < morre para o mundo >

Américo Uhrig – ninguém sabia se era argentino, uruguaio ou brasileiro – era um simples vagabundo, que quando bêbado – algo muito frequente – saía gritando para quem quisesse ouvir, que o Senhor era um anarquista e que o caminho do paraíso era a igualdade dos homens e o fim da propriedade privada. Ideias estrangeiras, tão estranhas a nossos ouvidos, que ninguém lhe dava importância alguma. Porém, Américo Uhrig se tornaria O Morcego, um bandoleiro, que aproveitando a escuridão da noite – escuridão que tira do homem as inibições e permite que ele faça coisas abomináveis que jamais faria na presença da luz – saqueava todas as estâncias do Rio Grande e aliciava os peões para tomar partido naquela que declarava ser a verdadeira guerra santa. < ora, nunca matou ninguém! Aqueles que são maus e injustos perseguem sua própria morte! Eles são os assassinos de si mesmos! > Todos os poderosos do sul queriam-no morto. Pouco mais se sabia de sua vida, alguns diziam que era casado com uma portuguesa, outros acreditavam que era juntado com uma negra que possuía um falso registro de nascimento alegando era natural de Corrientes, e portanto livre.

Antes daquela triste manhã, considerava-o – assim como todo o povoado – um animal imundo, que muito bem justificava seu infame apelido, porém, quando Américo Uhrig se acercou a mim, e pude realmente ver aquele homem, dei-me conta de que estava diante daquele ao qual sempre busquei. < Glórias! >

Não era um animal, era um homem exatamente como eu, sim...um homem como eu era também capaz daquelas coisas.

Américo Uhrig tinha os cabelos longos, como a maioria dos profissionais liberais, porém os conservava desalinhados, mal cuidados, que o deixava bastante diferente dos homens comuns que prezam mais o que têm sobre a cabeça do que o que se têm dentro dela. Seu rosto era coberto por uma longa barba, a princípio mostrava um homem que não perde tempo com banalidades como barbear-se, pois ocupa-se com assuntos de verdadeira importância. Porém, aquela barba dava-lhe um aspecto atemporal como os dos próprios apóstolos, a barba era o símbolo de sua liberdade e independência, era um homem que desprezava a autoridade de um bispo, não reconhecia hierarquia humana. Tinha em si algo de eremita, algo de São Simeão Estilita, algo de humilde e caridoso. Dentro daquele homem estava toda a humanidade. O Santo Ateu não temia a forca, mais bem recebia seu destino como parte de um plano maior. < morria pelo mundo, por nós>

E quando Américo Uhrig cessou de existir no mundo, o que levou longos minutos e precisou da ajuda de seu algoz, que acelerou o processo subindo em seus ombros, a terra tremeu como nunca havia tremido no Rio Grande, e o céu tingiu-se de vermelho, e em meio aos gritos de desespero, as mais antigas sepulturas abriram-se e muitos dos que já havia morrido há muito tempo voltaram a vida. Sim! Tudo isso aconteceu no momento em que O Morcego fora enforcado. E eu, eu vi o sinal da cruz diante de meus olhos.

Hoje, por dizer as coisas que vi naquela manhã, chamam-me louco! E os que antes considerava meus amigos, zombam de mim. Mal sabem eles, que louco eu era antes, agora sou verdadeiramente são.

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Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 09/04/2020
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