- LIMITADO - CLTS 11

A claridade chegou de frente. A medida que se infiltrava sobre o espaço ele despertava vagaroso. De repente “Tac”: e os olhos abriram-se subitamente. Acordou. A tonalidade branca na qual fora tingida recentemente as paredes do aposento, provocou-lhe certa fotofobia até que os olhos se familiarizassem com o ambiente. Uma sutil dor de cabeça orbitava pela calota craniana em sentido anti-horário.

Ladeou as vistas pelos quatros cantos da alcova. Nenhuma janela, tão somente uma porta preta sem fechadura do seu lado direito. A parede à sua frente era uma grande moldura cujo exterior não se podia visualizar. Olhou para cima e observou que o teto, imponente sobre seu corpo esparramado no colchão, não tinha começo e nem fim, era composto apenas de um breu infinito.

Consultou o corpo. Estava trajando um avental branco, rabiscado por pequenos fios vermelhos que não se conseguia distinguir se era de tinta ou de sangue, o certo é que se pareciam com as vestes de um açougueiro. Inclinou-se para cima no intuito de saltar da cama, no entanto, seu corpo parecia não se mover ou quiçá movia-se em câmera lenta. Examinou os membros e percebeu que ambas as mãos estavam atadas a correntes que o prendia às grades que adornavam o seu leito. Chacoalhou-se sobre a cama e ela permanecia estática, assim como o seu corpo no centro do quarto. Gritou, um grito abafado. Mudo. Sem voz.

Aquele quarto não era conhecido. Nunca antes estivera ali. Tentou, portanto, entender que circunstâncias o levara ao desconhecido. Fixou as vistas sobre a grande parede emoldurada à sua frente e vagou em pensamentos. No entanto, as memórias haviam fugido, nem sequer sabia quem era. Pôs-se então a chorar, um choro seco. Sem lágrimas, sem gemidos e sem soluços.

Passeou novamente as vistas sobre o avental sujo de vermelho que lhe cobria o corpo inerte. “Acaso extraíram algum órgão do meu corpo?” Pensou consigo. Contudo, com as mãos atadas, a tarefa de auto investigar o corpo não teria êxito. Pelejou arrancar o avental com os dedos dos pês, porém a protuberante barriga, indício de uma vida sedentária, e o corpo que não atendia aos comandos, impedia qualquer movimento de envergadura mais ousada. Respirou fundo. Fechou os olhos na tentativa de poder sentir o corpo. Porém, não sentiu nada em nenhuma parte do corpo que pudesse denunciar qualquer anormalidade. Apenas aquela infeliz dor de cabeça que teimava em permanecer.

“Que merda é essa?” Quis bater a cabeça sobre a grade da cama na vã ilusão de que tais batidas lhe trouxessem de volta as memórias, entretanto, não tinha forças para mover um músculo sequer do corpo. O lado esquerdo da cabeça era o que mais doía. As hastes da grade de aço inoxidável espelhavam o seu rosto. Um homem de meia idade. Trinta e cinco, talvez trinta sete anos. Cabelos raspados e olhos pretos igual a jabuticaba madura. A barba rala sugeria que não era cuidada há mais de três dias. “Então esse sou eu?”. Sorriu, um sorriso de desespero e sem movimento facial.

Investigou o silêncio. Ouvia-o e ele não fazia um ruído sequer. Tinha certeza de que alguém lhe vigiava do outro lado da parede, podia senti-lo, e certamente a qualquer momento entraria por aquela porra de porta e sentenciaria o seu fim. Imaginou várias possibilidades e em nenhuma delas ele sairia vivo dali. Haviam infinitas maneira de se morrer naquele lugar. Subitamente o quarto tornou-se escuridão. Parecia que o teto descera de sua imponência e abraçara tudo, deixando, consequentemente, apenas o breu infinito. Os segundos subsequentes foram severos momentos de angústia e incertezas. Esperou o pior inevitável. Sequer podia ouvir a sua respiração. O corpo permanecia imóvel sobre a cama no centro do quarto, pronto para o abate.

No entanto nada acontecia. Tão somente a escuridão e o silêncio absoluto. Possivelmente seu algoz estivesse do outro lado da grande moldura na parede, deliciando-se de seu sofrimento. Saboreando de sua angústia. Talvez ceifasse a própria vida evitando assim a satisfação de seu carrasco. Prendeu a respiração o quanto pode. Mas nem isso podia. Nem tirar a vida conseguia. E isso deveria render ainda mais deleite para aquele que certamente habitava o outro lado da parede. Como um investigador que espreita o acusado, esperando pelo momento certo para coletar-lhe a confissão.

“Como um homem termina desse jeito?”. Nem ao menos teria o direito de conhecer os motivos da morte inexorável. Entregou-se aos pensamentos trágicos que se confundiram com sonhos, pesadelos! Dormiu. A claridade chegou de frente. Acordou.

Edvard passeou pela sala atentamente. Ao fundo “Blowin’In The Wind” entoava as passadas lentas. Apreciava tudo com admiração. Cada passo seu era devidamente calculado, nenhum detalhe lhe passava despercebido. Desde a iluminação até o piso de azulejos assimétricos. O mal costume detalhista, como dizia a sua mãe, era uma herança de infância. O cheiro de tinta excitava-lhe. Havia planejado aquele momento há semanas, pois já haviam se passado bastante tempo desde a última vez e, dado os recursos financeiros a sua disposição, não sabia quanto tempo demoraria até uma próxima, bem por isso cada momento deveria ser apreciado como se fosse levado para a posteridade.

Desde quando viu o feliz anúncio nas redes sociais, foi um martírio até convencer o namorado ajudá-lo a realizar o desejo. Tal gosto refinado custava caro, porém valia a pena cada centavo gasto. Era explícito o encanto do rapaz pelas obras de arte. “Será um homem das artes sem dúvidas”. Já houvera sentenciado diversas vezes os membros da família, no entanto, a vida o guiou para um caminho diferente, levando, consequentemente, a somente admirar as obras alheias.

- Amor! Depressa corre aqui – exclamou Edvard.

O companheiro que estava do outro lado da sala caminhou depressa até a ele.

- O que foi me bem?

- Veja, a pintura deste quadro. Preste atenção na angústia em seus olhos. Não parece ser real?

O namorado olhou atentamente a pintura no quadro cujo tamanho abrangia toda a extensão da parede. Nela via-se um quarto com apenas uma porta preta e sem fechadura, nele um moribundo prostrado sobre uma maca com as mãos acorrentadas nas grades que a ladeavam.

- Gostaram? – Disse-lhes o curador da galeria caminhando até eles. É nossa obra prima “Limitado”, é a atração principal da nossa exposição.

- Sério, e o que significa? Perguntou o namorado de Edvard sem muito entusiasmo.

- Oras – respondeu-lhes o curador. As obras de artes não foram feitas para serem apreciadas em suas superficialidades. Reflita, veja além das aparências.

O namorado emitiu um leve sorriso de desdém.

bily anov
Enviado por bily anov em 18/04/2020
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