O QUADRO DE GIOVANNI — CLTS 11

A grande notícia na cidade era a chegada de um velho conhecido de todos. Coisa de cidade pequena, poucas famílias e vizinhos conhecidos. Giovanni era um amigo de longa data. Brasileiro por parte de pai, italiano por parte da mãe. Do seu lado europeu herdou o dom artístico para as telas e tudo que precisou para aperfeiçoar a técnica foi ensinado pelos avós.

Eu conheci Giovanni quando ele ainda era uma criança, em uma exposição de arte na capital, a qual seus avós sempre participavam. Com seus treze anos, o pequeno Giovanni já mostrava maestria com o pincel e recebia como presente a possibilidade de colocar alguma tela sua ao lado dos quadros da família. Conversamos sobre os velhos, suas telas e como que com pouca idade o jovem já seguia com bastante maestria os passos de seus avós. Além disso, percebi que naquela época, o meu amigo já mostrava gosto e aptidão em técnicas realistas. Uma vez, quando Giovanni já havia melhorado bastante, deparei-me em um dos corredores de sua casa com uma mulher misteriosa, era noite e a pouca iluminação vinha do brancura do luar, confus pelo vinho, aproximei-me dela até que meus passos foram interrompidos pela voz de Giovanni, perguntando-me se eu havia gostado da pintura, pois eu não tirava os olhos dela. Brinquei ao recomendá-lo trocar de lugar, pois algum dia alguém iria confundi-la com uma mulher de verdade.

Ao longo dos anos em que formamos uma boa amizade, passei a conviver entre os Giovanni com mais presença. Apesar de nossa intimidade sempre o chamo pelo sobrenome da família, como num costume enraizado pelo tempo e pelo respeito. Estive presente em várias ocasiões naquele casarão, e para um apaixonado pela arte como eu, conviver entre artistas e ateliês de pintura fora sem dúvidas a melhor experiência de minha vida.

Giovanni e sua família viajavam uma vez por ano para a Itália. Ele sempre me escrevia sobre suas experiências entre outros artistas e os lugares magníficos que visitava como Bolonha e suas cores, Turim e seus traços, Veneza e suas águas. Mas, foi a sua última carta que deteve minha atenção com mais prestígio.

Haviam chegado à mansão da família Baalin para uma visita. O lugar, como havia dito Giovanni, fantástico, era repleto de pinturas em todas as paredes. Os corredores eram largos e o teto ficava longe, à noite, dava impressão de um céu sem estrelas e sem luar dentro da casa. Giovanni contou que fora apresentado a várias pessoas, dentre elas, as mais importantes estavam Lorenzo Baalin e sua filha Geórgia, que só fora apresentada em momento misterioso. Após um jantar sob o teto soturno, o senhor Baalin havia pedido que Giovanni pintasse sua filha, "Para que todos pudessem apreciar-lhe a beleza", relatou meu amigo. Giovanni só veria a moça quando estivesse pronto para pintá-la em uma tela. Pelo que pude entender, a carta me fora enviada antes do quadro ter sido pintado e não recebi mais carta alguma da Itália até saber da viagem de volta de sua família.

Quando finalmente chegaram, não perdi tempo e aprontei-me para uma visita. Lá fiquei, acomodado num quarto de hóspedes. Giovanni me pedira que aguardasse pela manhã, pois estava cansado da viagem, concordei sem questionar, a marca escura dos insones já dizia muito. Mas a curiosidade me tomou o sono, passei minutos pesando os cotovelos sobre o parapeito da janela a contemplar as luzes da cidade, tentando entreter a vista até que o sono pesasse os olhos.

Pela manhã, no jardim, encontrei Giovanni para um café, estava claro para mim que ele não havia dormido. Suas mãos pareciam galhos secos pálidos, do rosto seco duas manchas negras rodeavam os olhos.

— Buonjiorno, amico mio — o cumprimento de sempre, mas com um sorriso reto — Senta e acompanha-me

— Bom dia, Giovanni.

— Acho aqui um bom lugar para uma história — estávamos dentro de um pequeno círculo de cerâmicas sobre a grama, a mesa era farta mesmo para um café, após sentar-me ele continuou — Sabes, amico mio, que eu estive com um homem nobre de Florença, como disse na última correspondência, e ele fez-me a encomenda de uma pintura.

— Sim — respondi — Na qual você não poderia ver a senhorita Geórgia Baalin até o momento de pintá-la. Mas o que aconteceu em seguida que parou de escrever? E qual o motivo do mistério?

— Isso mesmo, você lembra do nome dela, pois bem, contarei o que aconteceu naquela noite — comeu um pedaço de bolo e então começou — Bem, como sabes, estive em Florença na casa do nobre Baalin, um antigo amigo da família e ele encomendou uma tela. Meus avós já haviam me convencido a aceitar o pedido antes mesmo de nos encontrarmos, explicaram ser o real motivo da viagem e que fazia parte de uma tradição de gerações entre nossas famílias: Os Giovanni pintam um quadro e os Baalin lhes retribuem com sua influência. Como disse meu velho avô "retribuem com seu poder", quanto a isso, não vi necessidade, já que os Baalin não têm nenhuma intenção de se acomodar no Brasil e por aqui nada precisarei de sua influência econômica.

Ouvia atentamente Giovanni contar sua história, ansioso para chegar logo a noite em que trabalharia na tela dessa senhorita Geórgia. Talvez finalmente entendesse o cessar das cartas e a figura seca e fraca que meu amigo se tornou.

— Pois bem, na noite marcada fui ao quarto onde disseram estar a minha modelo. Os corredores eram largos como se fossem passar carroças dentro do lugar, o teto era como todo o resto, alto, muito alto. Desci escadarias quase intermináveis, a mansão era titânica, tanto para os lados quanto para baixo. Quando cheguei ao quarto, havia um bilhete pendurado na maçaneta da porta "La porta è aperta", toquei a maçaneta fria e a madeira rangeu. Senti uma pequena lufada quente e um cheiro forte no ar tomou conta de mim, estava tudo escuro, mas pude ouvir a forte respiração, era a senhorita Geórgia que me esperava. Ao reclamar do cheiro ela me tranquilizou "É por causa da localização do aposento, mas aos poucos o nariz acostuma". Tateando no escuro, com dicas e direções da senhorita, eu encontrei um velas e fósforo para fazer fogo, além das tintas, dos pincéis e da tela.

— E ela sabia? — de súbito eu o interrompi.

— Sabia sim, disse ser acostumada com o escuro.

Tomei um gole de café, cortei um pedaço de bolo. A expressão de Giovanni não havia mudado desde o início da história. A calmaria em sua voz mantinha o tom leve. Esperei que continuasse.

— Acendi o fogo, reclamei sobre a falta de luz estática para meu trabalho, já que chamas bruxuleantes mudariam muito a perspectiva, a sombra e a luz, mas ela insistiu, disse que eu me sairia bem em qualquer ambiente. Então virei-me para vê-la e lá estava ela sentada na beira da cama, as curvas e os ângulos de uma beleza sublime, os olhos de cores várias. Uma graça quase que divina, meu amigo. A pele pálida era o contraste perfeito aos lençóis vermelhos e o vestido de seda amarelo, avolumado com suas longas pernas. Estava hipnotizado pela beleza que mal percebi que eu segurava o pincel.

Enquanto Giovanni terminava seu relato, ouvi que atrás de nós vinha seu avô em busca do neto.

— Buonjiorno, signore Arthur — uma leve mesura — Com sua licença, mas meu neto precisa descansar um pouco mais.

— Não há problema, senhor, mas temo que não saberei os motivos de meu amigo aparentar essa fraqueza, estou bastante curioso, agora mesmo ouvia a história de sua viagem e...

— A viagem, é claro, tem tudo a ver com isso, fora cansativa todas aquelas horas sobre o mar. Mas lhe garanto que em poucos dias ele estará recuperado. Não há o que se preocupar.

— Tudo bem, senhor, então deixo-vos a sós.

— Mas, meu caro Arthur, não deixes de ir à mostra de artes que estou planejando para as próximas semanas.

— Não perderei de forma alguma — respondi apertando-lhe a mão.

— A principal peça será o último trabalho de meu neto, garanto que encantará a todos na capital.

— Agora estou mais do que ansioso. — despedi-me — Até logo meu amigo.

Resolvi que não iria passar o restante daquele dia em meus aposentos na casa dos Giovanni, preferi retornar a minha residência. Não conseguia entender a brusca intromissão feita pelo avô de meu amigo, por mais que o velho tenha tentado parecer amistoso, não o fora. Distrai-me com o vinho e a leitura até escurecer, e quando a noite chegou já buscava minha cama.

Sonhei com ruas estreitas de calçamento de tijolos e construções de pedra que quase se tocavam Percorri sozinho pelas vielas acinzentadas pelo brilho de um luar sinistro. Não havia luzes nem janelas abertas nas moradas naquela noite e a cidade inteira parecia dormir. Uma cidade que nunca vira antes. Diante de mim, observando meus passos, em um canto úmido, algo emitiu um som que ecoou pela rua, um ruído rouco que foi correspondido ao longe. Era melhor partir. Segui meu caminho rua abaixo sem que pudesse ver quem era meu espreitador. O ruído mais uma vez ecoou na cidade e atrás de mim, eu vi, pequenas luzes amarelas em pares pelos cantos das paredes, primeiro um par, depois mais um par no outro canto da rua, depois mais dois pares nos telhados, causando uma cacofonia musical de ruídos como um brejo cheio de sapos e rãs coaxando para a lua. Fugi dos pontos amarelados até deparar-me com um poço em uma praça no centro dessa cidade. As casas amontoadas, ruas tortuosas, estreitas e ao centro o poço. Atrás de mim, as luzes em pares cresciam em quantidade e o ruído continuava. Quando percebi estava na beira do poço olhando para a escuridão sem conseguir ver água ou fundo, então ouvi o ruído choaxar vindo do escuro e acordei.

Não foi uma única vez que tive esse tipo de sonho nas semanas antes da exposição de arte na capital. Em todos fui atormentado por seres quiméricos dentro de noites intermináveis. Um ser com cabeça de gato e corpo humano me caçava pelos caminhos de uma floresta negra como um caçadot atrás de sua presa.

Não vi Giovanni até o dia da exposição em que mostraria sua tão aguardada obra prima. Seus avós fizeram questão de chamar o maior número de convidados. Quando o vi, lembrei-me das palavras de seu avô, que só um descanso serviria para curar seu cansaço, pois lá estava ele já quase livre das marcas da insônia na pele corada.

— É hoje amico mio — Veio cumprimentar-me assim que me viu — Agradeço a presença. Você verá minha obra prima, assim como todos aqui presentes — saberei finalmente como era o rosto da mulher de Florença.

Então chegamos ao momento mais esperado do evento. A grande revelação do trabalho de Giovanni. O quadro devia ter uns dois metros e estava coberto por um pano cinza e grosso. Os homens e mulheres curiosos se amontoavam o mais perto possível, ansiosos para ver a obra. Eu estava ao lado esquerdo de Giovanni, os avós do outro lado, um rapaz alto de barba feita seguiu para tirar a coberta. Quando a peça foi revelada, o rapaz gritou e caiu num súbito ataque histérico e após um breve momento silencioso plantado pela curiosidade, o evento fora tomado pelo medo e pela loucura. As pessoas corriam e se pisoteavam, alguns gritavam e seguravam as pernas dos mais próximos. Um frenesi tomou conta de todos. Um homem agonizava em seu suicídio, uma mulher batia com a cabeça em uma parede até cair em meio ao sangue com o crânio afundado. Eu vi no quadro o que já havia visto antes. Luzes amarelas, um par enorme, uma cabeça felina dividia um corpo gordo com outras duas, uma de mulher e outra de sapo. O sorriso no retrato parecia se mexer. O ruído coaxante atravessou meus ouvidos e meus olhos não obedeciam meu corpo, queria ir embora, queria fugir para longe, mas meus olhos insistiam em ver as muitas pernas, longas e finas. A criatura na quadro era profana. A tela era a o ápice da técnica realista.

— Veja amico. Minha obra prima — festejava Giovanni

Diogo Emmanoel Costa
Enviado por Diogo Emmanoel Costa em 27/04/2020
Reeditado em 28/04/2020
Código do texto: T6930675
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