Estrela de Vênus - CLTS 11

Não tinha nada de errado nas paredes.

A expressão em seu rosto era exatamente a mesma de todos os dias. Olhos sedutores, lábios carnudos, cabeça levemente inclinada. O mesmo vestido. O mesmo cenário. Havia um mistério. Não como Gioconda, mas como um recado por trás de seus cabelos finos e volumosos da cor do pôr-do-sol. Sempre estivera ali. Ninguém nunca se perguntara quem o havia deixado para trás. Ao me mudar, o corretor admitiu que não sabia ao certo o porquê de terem a deixado. Era encantadora, e causava calafrios quando o relógio batia seis vezes, com o fecho de luz solar estrategicamente iluminando seu rosto.

Não dividia aquela sensação com ninguém. As paredes eram apenas minhas, e aquela que me olhava todos os dias, calada, com uma expressão indiferente, mas olhos apaixonados, parecia se sentir deprimida ao notar que eu era alguém diferente da qual ela estava acostumada. Mesmo sabendo que isso era muito metafórico, e até estranho de se pensar, acabei me compadecendo por ela, chegando a lhe perguntar se poderia nomeá-la. Eu não tinha o costume de interagir com objetos inanimados, porém, a cada dia que passava, sentia-me na obrigação de lhe dizer o nome que havia pensado. Hésperus, como a estrela vespertina de Vênus.

Conversar com Hésperus me fazia sentir o ambiente menos vazio. Às vezes, chegava do trabalho e lhe cumprimentava com um cansado boa noite. Mesmo trabalhando em uma floricultura, a exaustão era inevitável, ainda mais em uma época de grande movimento como do dia dos namorados. Eu me perguntava se a pessoa com a qual me relacionava pensaria em me comprar algo, ou até mesmo eu. Não estávamos há muito tempo juntos, ainda não tinha certeza de seus gostos. Talvez conhecesse mais Hésperus do que a própria pessoa, porém isso não era um problema, de fato. Temos muito tempo ainda.

Era quinta-feira, final de tarde, quando cheguei da floricultura, ainda me acostumando com a sequência de chaves do apartamento e procurando a certa para a segunda porta. Minhas mãos estavam ocupadas com a sacola enorme que carregava nos dedos, repleta de quadros, enquanto o braço se ocupava com um vaso de rosinha-do-sol que eu havia montado enquanto esperava o tempo passar. O sol final, como sempre, iluminava Hésperus e seu belo quadro, quase feliz por me ver novamente. Fiz minha típica saudação e coloquei tudo em cima da mesinha de jantar.

O ambiente ainda era precário de móveis mais decorativos. Não estava nem há três meses e meio ali. Minha musa era o principal ponto, mas sentia a necessidade de encher os cômodos com quadros e cores. A parede principal da sala era enorme e a sensação de ansiedade por ver todo aquele azul liso me causava um pouco de ansiedade.

Procurei pregos e martelo, e fiquei encarando a parede de Hésperus durante uns dez minutos até começar a martelar firmemente cada um dos lugares estrategicamente pensados para os quadros de flores e cenários. Eu tinha um favorito: o do vaso de girassóis. Contrastava perfeitamente com a musa dos cabelos rubros me olhando ternamente.

- Olha como ficará lindo você cheia de flores, Hésperus! – exclamei assim que martelei o último prego. – Não se sentirá sozinha quando eu estiver fora.

Achava curioso o fato de ela estar posicionada com fotografias e quadros em seu cenário, quase uma metalinguagem. Talvez fosse o ambiente em que a modelo estava no dia. Isso me causou curiosidade sobre quem a tinha pintado, mas a assinatura era bastante confusa, dava apenas para saber que começava com a letra P e terminava com S. Não tinha data, mas, pelo estilo, talvez fosse algo da época romântica. E por romance Hésperus combinava bem. Seus olhos mel pareciam brilhar e ultrapassar a barreira entre a tinta e a realidade. O cansaço do dia podia me afetar, mas eu conseguia enxergar o quão Hésperus continuava a se destacar.

- Uma vez musa, sempre musa. – lhe disse enquanto recolhia os materiais e os guardava na maletinha de utensílios.

Reguei o vaso de flores perto da televisão e fui para meu quarto. Aquela noite, o som externo não me perturbou. A rua com carros, o som dos grilos nos intervalos entre o silêncio e os motores e a música romântica vinda de um bar ao final da rua pareciam em harmonia. O sono me abraçou ao ponto de tudo ficar quieto. As cores sumindo, o brilho apagando.

Em um piscar de olhos, minha audição me fez acordar. Algo tinha quebrado. O som viera do próprio apartamento. Olhei rapidamente para o relógio, era perto das cinco e meia, o sol estava quase aparecendo novamente. Eu não conseguia pensar em nada para me defender que estivesse à disposição. Se fosse um assaltante, me prejudicaria com a vulnerabilidade.

Levantei da cama e caminhei o mais devagar que consegui, indo até a porta e olhando pela fresta, a espera de movimento. Não havia sombras, não havia barulho. Talvez tivesse sido uma louça que caiu, ou um quadro que não tinha sido pregado direito. Já não tinha mais sono, e estava quase no horário que costumava acordar, então decidi agir normalmente e verificar o que aconteceu.

Assim que atravessei o corredor até a sala, dei-me de cara com a parede de Hésperus e notei algo de diferente: Os quadros. Tinha algo de errado, mas não dava para se reparar a primeira vista. Até mesmo Hésperus parecia fora do comum. Levei alguns minutos para notar que ao menos cinco obras estiradas no chão, com molduras quebradas e os vidros estraçalhados. O girassol perto de Hésperus estava... Murcho. Ele era um perfeito e amarelo girassol. Como um quadro altera assim? Não era uma obra 3D. Com a expressão de minha musa não era diferente, ela parecia mal humorada.

Não havia sono. Não estava delirando. Meus olhos enxergaram perfeitamente, mas havia algo de muito errado acontecendo ali. Quando comecei a procurar por mais danos, encontrei o vaso perto da televisão no chão, com terra e cerâmica amarela por todo lado. Mas não havia flores. Meu suspiro foi tomado pela tristeza ao perceber que tudo havia sido perdido.

Nada fazia sentido, e a pressão em meu peito me alertava de que o pior não havia passado. Ninguém havia entrado no apartamento e, mesmo assim, após revirar toda a sala, não encontrei nem as flores. Depois notei que dois quadros haviam sumido igualmente. Um pequenino, com uma embalagem de bala que eu tinha desenhado, e um retangular, com uma rosa azul, que tinha pintado há muitos anos. Não havia vidro e moldura suficientes no chão para serem eles.

Havia um quadro pisoteado.

Como?

Hésperus e seu cenário estavam intactos, e olhei detalhadamente para checar se ela sofrera algum dano, mas nada. O mistério de seu recado me deixava a pensar no que acontecera, e porque ela estava intacta. Era inevitável sentir algum tipo de tristeza ao ver os olhos de julgamento e decepção da musa. Tentei não pensar muito e arrumar toda aquela bagunça. Comecei limpando, com a vassoura, os cacos de vidros e imagens rasgadas, pensando em visitar novamente o brechó e comprar outros quadros. Verifiquei a parede, passando meus dedos pela cor azul. Os pregos estavam intactos, presos com total firmeza.

As obras não caíram. Foram derrubadas. Todas elas. A parede continha apenas Hésperus e os pregos. O cenário de seu quadro parecia modificado. Quando encarei de perto, notei algo que fez meu coração bater errado. As duas peças perdidas estavam na parede do quadro, um ao lado do outro, junto dos porta-retratos e paisagens de sua pintura. Minha mão, inconscientemente, quis tocar na imagem. Escutei uma risada, mas não dava para identificar de onde vinha. Apenas que era feminina.

Acabei recuando e perdendo o fôlego. Não gostava de levar sustos, me desorientava demais. Decidi não olhar mais nada, só pioraria a situação. Fui até meu quarto, me troquei e procurei sair o mais rápido do apartamento. Não conseguia. Tinha algo de errado. Comigo, com o apartamento, com Hésperus, com os quadros, não sei! Caminhei pelas ruas, tentando pensar que era apenas coisa da minha cabeça. O estresse talvez estivesse me afetando. Não fazia nem sentido quadros meus estarem em outro.

Abri a floricultura e fui para os fundos, procurando algum vaso amarelo de cerâmica e o número do corretor de imóveis que me vendera o apartamento. Meu chefe chegaria só dali à uma hora, então tinha tempo para organizar minha mente.

- Vou olhar os registros. – garantiu o corretor. – Várias pessoas passaram por seu apartamento. Sempre somem satisfeitos.

- O quadro... Ele sempre esteve lá?

- Ah, sim. Desde o primeiro morador. – riu - As pessoas sempre o adoram.

- E por que ninguém o leva?

Mas não tive uma resposta. A bateria tinha se esgotado, e eu não tinha carregador ali. Queria acreditar que realmente era só um engano e tinha uma explicação racional para o que tinha acontecido no apartamento. Não tinha nada de errado com as paredes. Eu não tinha deixado a janela aberta. O quadro pisoteado claramente tinha sido feito por alguém, mas não havia rastros. E os perdidos estavam dentro do quadro de Hésperus, como se tivessem sido pintados. Eram eles, exatamente o desenho da embalagem de bala e a rosa que fiz.

- Você não me parece bem.

Outro susto. Estava pensando, sem notar a movimentação na floricultura. Uma das funcionárias tinha chegado. Anise, estudante de artes cênicas, me encarava com humor, com uma sobrancelha erguida em dúvida, colocou suas mãos na cintura e dando uma batidinha em meu ombro.

- Credo! Viu um fantasma? Eu nem passei pancake hoje, mas você... Parece que se enfiou no pó de arroz. – disse, rindo enquanto ia até seu armário.

- Não é um bom dia.

- É, notei. Não quer ir para casa? Eu te cubro.

- Não! Casa não. – exclamei, tentando me acalmar para não agir de forma suspeita. - Tá tudo bem, consigo trabalhar.

Anise saiu da sala de funcionários me olhando, desconfiada. Não sabia o que estava acontecendo, mas também sentia que não podia sair falando sobre isso. Havia um arrepio em meu corpo que me alertava algo.

Assim que fui para a loja e me posicionei no balcão de decoração, senti uma sensação ruim de alguém estar me observando, porém não havia ninguém, além de Anise, na loja. E ela não me olhava, estava ocupada demais adicionando adubo nos vasos maiores, do outro lado do estabelecimento. A sensação de ansiedade aumentava em meu peito, e eu sentia um pouco de falta de ar e desorientação. Não era coisa da minha cabeça, eu tinha certeza.

Ou era? Estava fazendo muito caso da situação toda, talvez. Quebra de rotina me deixava uma pilha de nervos. Não era legal. Ainda mais com algo sem explicação lógica.

Quando notei que estava pensando demais e não conseguia focar no trabalho, decidi ir até a farmácia, na mesma rua, e comprar um calmante. O farmacêutico gentilmente me deu um copo de água para que pudesse me medicar ali mesmo. Ao voltar para a floricultura, decidi distrair a mente montando decorações de vasos e fazer um novo para mim. Eu tinha que parar de ver filmes de terror, pensava.

Consegui me acalmar e fazer o dia seguir normalmente, parei de pensar na sensação, no que tinha acontecido em casa e passei a lidar melhor com meus pensamentos. Não tinha o porquê chamar a policia, não era um crime, até onde se podia avaliar. Conforme a tarde ia terminando, pensava em como lidaria ao voltar para casa e encarar toda aquela cena novamente. Era só o vento.

Mas e os quadros pintados?

Gaspar, meu chefe, disse que tudo bem ir mais cedo, já que eu não aparentava estar bem. Não queria, me sentia bem, mas ele e Anise me forçaram a ir descansar. Assim que me encarei no espelho de meu armário, percebi o que eles queriam me alertar. Eu estava uma completa confusão: roupas amassadas e cabelo bagunçado. O oposto do que eu normalmente era. Sair correndo não foi uma boa ideia.

Não havia jeito, precisaria voltar para meu apartamento e encontrar minha musa, que me causava medo e admiração ao mesmo tempo.

Sabia que ela poderia ser o problema, mas era uma ideia absurda. Hésperus era um quadro, inanimado, sem vida. Então o que eram aqueles olhos mal humorados, quase como se estivesse chateada com algo? Isso com certeza não se tratava de algo que havia imaginado. Quando abri a porta do apartamento, sem errar as chaves, dei de cara com a sala toda revirada, como se um furacão tivesse passado por ali. A porta da vizinha se abriu, e ela andou furiosa até mim.

- O que esteve fazendo o dia inteiro? Que barulheira! O síndico vai vir falar contigo depois.

- Mas, senhora... – comecei, relutante. – Eu estava trabalhando. Não tinha ninguém aqui. E, mesmo assim... – convidei-a a observar dentro.

- Santo Deus! Invadiram nosso prédio! Vou chamar o Alfie agora mesmo! – exclamou caminhando pesadamente pelo corredor, enquanto eu relutava em entrar em casa.

O sofá vermelho estava virado e com espuma por todo lado. A televisão quebrada e jogada em um canto, a mesa de jantar riscada, quase como se um tigre tivesse passado por ali. Todos os quadros desapareceram.

Caminhei por toda a sujeira no chão, tomando cuidado para não quebrar mais nada, passando por cacos de vidro, estofado e madeira. Em uma contradição, Hésperus estava perfeitamente intacta e emoldurada em seu quadro, parecendo ainda mais furiosa que antes, com seus olhos cheios de um brilho nervoso. Os pregos a sua volta não estavam mais lá. Ao procurá-los, falhei miseravelmente. Foi quando decidi me aproximar de minha musa e notar que, assim como os quadros que eu notava estar a mais em sua pintura, todos os outros surgiram em seu cenário. A mesma risada que escutara antes voltou a se manifestar, me fazendo dar as costas rapidamente.

Não conseguia expressar o que estava sentindo. Meu corpo todo parecia vibrar - de expectativa ou de medo, não sei dizer -, e eu tentava entender se aquilo era real ou minha mente que projetava para causar pânico. Senti um toque gentil e extremamente gelado em meu rosto, cobrindo meus olhos. A sensação era calma, e me fez fechá-los. Algo se encostou a minhas costas, me abraçando gentilmente. Mesmo sem poder mover o corpo, sentia paz. Como um frio me envolvendo ternamente, livrando minha mente de todo e qualquer pensamento assustador.

- Você me deixou triste, meu amor... – sussurrou em meu ouvido. – Não deveria ter dividido sua atenção com outros.

Sua voz era angelical, quase soando com um eco longe, parecia chateada. Deixei-me levar por sua presença, sentindo seus polegares massagearem suavemente as laterais de meu rosto, causando-me arrepios.

- Você foi a pessoa que mais me amou... – disse ela. – Até me deu um nome... Não podia te perder para outros.

- Hésperus...

- Por que estava me trocando por meras flores do sol, quando eu sou sua musa vespertina? – perguntou sem qualquer sentimento, apenas soprando em meu ouvido.

O pôr-do-sol nos atingia, junto da brisa da janela aberta, fazendo seu manto rubro me envolver da cabeça aos pés. Eu sentia suas mãos irem até as minhas, me guiando.

- Venha comigo, meu amor... – disse enquanto me fazia a olhar. De fato, Hésperus me encarava com seus olhos dourados a luz do sol e seus cabelos rubros volumosos ao vento. – Você pode me amar por toda eternidade... – disse antes de me depositar um cálido beijo em meus lábios.

De repente, eu não me importava com mais nada. Minha musa estava ali para me amar, e me deixar amá-la, sem perdermos quadros nem flores. Suas mãos macias me guiavam até seu quadro, agora vazio sem sua presença, mostrando apenas sua parede repleta de obras. Não precisava ter sentido, apenas paz e Hésperus, com sua luz de pôr-do-sol e sua beleza de Vênus.

Em um piscar de olhos, meu apartamento tinha virado um quadro, emoldurado como o da musa, e podia ver as pessoas discutindo em minha sala, mas não dei atenção, pois Hésperus decidiu me amar ali mesmo, e eu só pude escutar vozes vindas de lá.

- Mas para onde foi? Estava aqui agora mesmo. Olha este caos! – disse a vizinha.

- Este imóvel ainda será arrumado para a visitação, minha cara senhora. – comentou a voz do corretor de imóveis.

- Como? Mas acabei de falar com a pessoa que vive aqui!

- Tenho certeza de que se trata de um engano. A última pessoa a viver aqui foi há três meses.

- Por que deixaram um quadro tão belo? – perguntou provavelmente o síndico.

- Ah... – riu o corretor. – Porque nunca o conseguiram tirá-lo. É sempre ele que molda as pessoas. Ninguém se pergunta se as obras de artes apreciam pessoas.

Tema: Obra de arte.

Liranthium
Enviado por Liranthium em 29/04/2020
Reeditado em 17/05/2020
Código do texto: T6932596
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