Bismillah!

A madrugada do 15 de novembro de 2019 foi a mais assustadora da vida de Anderson. Era o início de um feriadão de três dias, o primeiro desde que ele começou a trabalhar e morar sozinho. Quando saiu da firma, se abasteceu com três dias de porcaria para comer, e passou a noite se empanturrando e assistindo Netflix, até se cansar já bem tarde e ir dormir.

De madrugada, parecia que ele havia acabado de dormir, quando foi acordado por um assobio fraco vindo do lado de fora do apartamento. As paredes do prédio eram bem finas, então ouvir sons no meio da noite não era incomum, mas algo naquele assobio fazia suas entranhas tremerem. Era o único som na madrugada silenciosa. Um sentimento de pavor tomou conta dele, e uma vontade instintiva de se esconder.

- Anderson? – Ele ouviu a voz do seu vizinho vinda do lado de fora do apartamento. O assobio continuava. Anderson reconheceu a melodia da música Bohemian Rhapsody, apesar do ritmo lento. Pensou em responder, mas o medo o fez parar e esperar. Seu coração foi na boca quando o assobio ficou mais forte porque a porta do apartamento se abriu. Imediatamente, correu para dentro do armário. Uma das portas estava um pouco torta, de modo que, mesmo fechada, havia uma fresta grande o suficiente para que pudesse enxergar do lado de fora.

- Estou indo, Anderson... – A voz do vizinho soou novamente, melódica. A seguir, algo começou a se aproximar do seu quarto dando pulinhos e assobiando. A criatura abriu a porta do quarto, a luz de um poste do lado de fora cuja lâmpada ficava bem próximo da janela era a única iluminação, mas suficiente para ver quem entrava.

A criatura passou com dificuldade pela porta. Tinha pele negra como carvão e era tão alta que precisava ficar curvada para não bater no teto a cada pulinho que dava para se locomover. Tinha uma perna só. Sua cabeça era deformada, e sobre ela um gorro vermelho (mesma cor do tapa-sexo que vestia), mas não era possível ver seu rosto. Talvez, se Anderson o tivesse visto, teria desmaiado.

Quando Deus repartiu a fé entre os homens a porção dada a Anderson era muito pequena, mas nesse momento ele não pôde deixar de, em lágrimas, fazer uma fervorosa oração silenciosa.

- Anderson? – A criatura sussurrou, ainda com a voz do vizinho. Saltitou pelo quarto, procurando. Em um momento aterrador passou bem perto da porta do armário, exalando seu cheiro de podre. Chegou a puxar o lençol e olhar ao redor, soltando um grunhido confuso ao não encontrar Anderson. Não sei se foi efeito da oração ou o invasor era muito burro, mas nem fez menção de olhar o armário. Assobiando, saltitou lentamente para fora do quarto. Quando ouviu a porta do apartamento se fechar, Anderson soltou um suspiro que não sabia que estava segurando. Ouviu nitidamente aquele assobio se afastar, seguido de uma batida na porta do apartamento ao lado.

- Heleno? – Ouviu sua própria voz chamando o vizinho, e não pôde deixar de arregalar os olhos e tremer todo. Ainda conseguiu ouvir a porta do vizinho se abrir, e foi aí que o assobio parou. Então veio o som de um baque, algo pesado caindo no chão, e depois o absoluto silêncio. Dormiu no armário. O corpo de Heleno não foi encontrado.

Se você ouvir um assobio no meio da noite, se esconda.

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Esse conto é o terceiro de uma série de contos conectados, que podem ser lidos separadamente:

Destruição do Vale de Sidim: https://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/6935036

O Homem da Gravata Florida: https://www.recantodasletras.com.br/microcontos/6935047

Ele Ouviu a Voz do Menino Desde o Lugar Onde Estava: https://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/6937136