Ele Ouviu a Voz do Menino Desde o Lugar Onde Estava

Depois que sua mulher ficou doente, Dirceu nunca mais foi o mesmo. Começou a beber, e muito. Às vezes sumia por dias dentro do quarto. Seu filho mais velho, Caio, tinha doze anos, suficientes para que ele deixasse a casa e seus dois irmãos – Daviid e o bebê Carlos – aos seus cuidados. Caio gostava de se sentir responsável, mas era muito cansativo para ele cuidar de tudo.

O bebê já tinha quase um ano, e já era um pouco independente em alguns aspectos. Já comia algum alimento sólido, mas a maior parte da sua alimentação vinha do leite das porcas que eles criavam. Ah, os porcos também eram responsabilidade de Caio; era bem difícil, ele não conseguiria sem a ajuda do irmão. Eles moravam em um sítio modesto, suficiente apenas para criar alguns poucos porcos, mas a casa era relativamente grande – embora já bem desgastada. O solo não era bom para plantação, então, depois de uns anos de muita insistência, Dirceu acabou desistindo.

As crianças raramente viam alguém além da família, já que o sítio ficava cercado por grandes fazendas, tornando-se um pouco isolado. A grande companhia de brincadeiras de Caio e Daviid eram os porcos. Depois que o pai mudou, entretanto, eles pararam de brincar com os animais, porque um dia eles estavam gritando demais enquanto os meninos brincavam com eles e o pai apareceu com uma arma, atirou em um dos porcos e ameaçou os meninos. Surras e explosões de raiva do pai se tornaram normais naqueles meses, mas esse episódio os deixou particularmente assustados.

Certo dia, Caio e Daviid brincavam de pique-esconde. Não era tão divertido só com duas pessoas, mas não havia muita opção. Caio estava procurando por seu irmão quando ouviu um barulho vindo do matagal que ficava fora da propriedade da família. Eles eram terminantemente proibidos de sair dos limites do sítio, e Daviid sabia disso. Mas Caio pensou que seu irmão resolveu trapacear daquela vez, e entrou no matagal para procurá-lo.

– Daviid! Parei, ai não vale! Saia daí antes que a gente se dê mal.

O que Caio achou, entretanto, foi um porco estraçalhado. Sua barriga havia sido rasgada, provavelmente por presas afiadas, e seus órgãos internos devorados. Assustado, ele correu para dentro de casa para avisar ao seu pai, só para ouvir, vindo do segundo andar, os gritos de seu irmão Daviid. Ao subir correndo as escadas, se deparou com seu Dirceu expulsando o garoto do quarto dos pais. Ele gritava e chorava, enquanto Dirceu dava socos nele. Puxando o menino pelo cabelo cumprido, o pai o jogou em um cômodo cheio de coisas velhas usado como porão e o deixou de castigo até o dia seguinte. Caio não teve coragem de contar ao pai sobre o porco.

– Eu não vi a mamãe. – Disse Daviid, no dia seguinte. Eles não sabiam qual era o problema da mãe, nem viram um médico a visitar, e o pai os proibiu de fazer perguntas sobre ela. Apenas sabiam que a mãe estava doente, e não a viam há meses. – Entrei no quarto para me esconder e não vi a mamãe. Ela não está lá, Caio. A mamãe não está lá.

– Besteira. Ela devia estar no banheiro. – Caio acreditava no pai o suficiente para aceitar que sua mae que estava há meses desaparecida estava simplesmente doente no quarto, mas também não era tão ingênuo assim. Apesar disso, se esforçou para acalmar seu irmão, até que encontrasse uma forma de descobrir se sua desconfiança era verdade. Por outro lado, ele sabia que seria muito perigoso tentar entrar no quarto dos pais na hora errada.

Não deu certo, entretanto. Outro dia, de madrugada, Daviid descobriu que o pai esqueceu de trancar a porta do quarto e conseguiu entrar. Tudo o que ele viu foi o pai dormindo sozinho e diversas garrafas de bebida espalhadas pelo quarto. Seu erro foi que ele não conseguiu se segurar e chamou o pai.

– Onde está a mamãe?

Caio foi acordado pelos gritos. Ele chegou lá exatamente no momento em que o pai quebrava uma garrafa de vidro na cabeça do irmão mais novo. O sangue encharcou o rosto do menino quando ele caiu desmaiado. Quando o pai se afastou e voltou para o quarto, Caio correu para tentar acudir o irmão. Quando acordou, Caio cuidou do ferimento dele da maneira que pôde, mas o irmão sentiu muita dor até o amanhecer. Em seu choro, Daviid orou em voz alta para que o pai parasse de lhes fazer mal.

No dia seguinte, Daviid ainda sentia dor, e ambos sentiam muita raiva. O pai permaneceu trancado no quarto. Quando deu meia-noite, eles ouviram gritos novamente, mas dessa vez vinha do quarto do pai. Eles pararam diante da porta, hesitando por cerca de dois minutos, enquanto Dirceu gritava lá dentro. Parecia estar acontecendo uma luta ou coisa paercida.

Finalmente, tomaram coragem e abriram a porta. Uma criatura estava espancando o pai com um chicote. Ele tentava correr e se proteger, mas o monstro o segurava e o jogava de um lado para o outro com uma facilidade enorme. Parecia um homem muito alto, a cabeça quase tocando no teto, extremamente magro, com a pele negra como carvão, vestindo um gorro vermelho e um tapa-sexo da mesma cor. Apesar do tamanho e de ter uma perna só, ele era muito ágil. À luz do luar eles não podiam ver rosto da criatura, mas podiam notar que sua cabeça tinha um formato estranho. O bebê Carlos chorava no outro cômodo, acordado pelo barulho, enquanto os meninos assistiam a cena paralisados, sem saber o que fazer.

Quando Dirceu ficou já sem forças de tanto apanhar, com o corpo todo marcado pelo chicote, coberto de sangue caiu deitado, com o corpo todo estendido. A criatura facilmente agarrou-o pelo pescoço e o tirou do chão, estrangulando-o. Os meninos viram se desenhar em seu rosto uma grande bocarra cheia de dentes afiados. Por um momento Caio pensou que aquela criatura teria estraçalhado o porco, mas conforme a boca foi se abrindo mais e mais, viu que provavelmente havia sido outra coisa, porque aquela boca era grande o suficiente para devorar o animal inteiro. Antes, entretanto, que a criatura devorasse Dirceu, Caio foi tomado de uma súbita coragem e intercedeu:

– Por favor, não faça isso! Por favor, não machuque o nosso pai!

– Eu ouvi a voz do menino, e por isso vim. – Ele disse, apontando para Daviid com uma voz rouca, grave e profunda, que parecia ecoar por toda a casa.

– Sim, nosso pai é mal, mas nós precisamos dele. Por favor, não o mate.

A criatura refletiu por um momento, então jogou Dirceu contra a parede. Depois aproximou-se dos meninos em três saltos lentos. Ele era tão alto que precisava se curvar para não dar com a cabeça no teto enquanto pulava.

– Ele vai sentir dor até amanhã, mas quando o sol se levantar estará curado. Mas as cicatrizes vão ficar como lembrança do que aconteceu. Caso ele não se arrependa e mude, eu retornarei.

As crianças assentiram com a cabeça, literalmente tremendo de medo. O monstro os examinou por um momento. Dirceu deixou escapar um último gemido de dor antes de desmaiar.

– O que... – Daviid se arrependeu de perguntar no momento que começou a frase, mas já era tarde. – ...o que é você?

Os meninos poderiam jurar ter visto um sorriso no rosto da criatura bem acima das suas cabeças. Um flash, e no instante seguinte ela desapareceu. Em seu lugar estava um homem aparentemente normal, usando um terno e roupas coloridas que o faziam parecer com um palhaço, chamativa gravata de flores vermelhas e um amigável sorriso no rosto.

– Eu sou um anjo.

Ele afagou a cabeça dos meninos, que ainda estavam tremendo um pouco, carinhosamente e se foi, assobiando pelo corredor até descer as escadas e desaparecer. A vida passou a ser melhor para aquela família desde então, o pai voltou a ser o que era antes. De vez em quando, entretanto, quando ele acordava de madrugada por algum motivo, tinha a incômoda sensação de que alguma coisa o espreitava da escuridão.

***

Esse conto é o quarto de uma série de contos conectados, que podem ser lidos separadamente:

Destruição do Vale de Sidim: https://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/6935036

O Homem da Gravata Florida: https://www.recantodasletras.com.br/microcontos/6935047

Bismila!: https://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/6937114