O Caminho do Vale das Almas

O Caminho do Vale das Almas

Não sei explicar. Só sei que quando abri os olhos eu já estava lá, na companhia de um ser o qual atendia pelo nome de guardião. O lugar cheirava mal, muito mal e a temperatura beirava os quarenta graus sem brisa. A roupa grudava na pela, igualmente os cabelos, uma sensação térmica agoniante. O guardião me olhava e em seus olhos havia uma mescla de sentimentos, isso era bastante perceptível, ele não me queria ali. Com um gesto rápido de cabeça ele me forçou a andar. Foi o que fiz, comecei a andar. Corpo de homem, magro, uma magreza típica de um doente terminal e o rosto muito próximo de um cavalo. Esse era o meu guardião. Sim, ele me conduziu por aquele caminho onde ao invés de jardins repletos das mais diversas flores haviam pessoas. Ao pisar pensei em se tratar de cascalhos, mas logo vi que eram ossos secos. O odor que saía deles era de embrulhar o estômago, tive que parar e respirar fundo para não vomitar.

- Vamos, não temos o dia todo. – repreendeu o guardião.

Como menino obediente retomei a caminhada, o barulho ao pisar nos ossos me incomodava demais. Eu seguia os passos ligeiros do ser a minha, mas o que mais me espantava eram as pessoas a beira do caminho. Elas tinham uma tristeza nos olhos e algumas choravam e acenavam para mim. Uma delas, uma mulher jovem, que penteava seus longos cabelos e comia tanto as caspas e piolhos que caiam, acenou me chamando.

- Não caía na armadilha. – orientou o guardião.

- E porque não? – retruquei.

- Veja, ela come piolho e caspa, ela tem fome, vai lhe devorar assim que se aproximar dela.

Seguimos nosso caminho. Olhei para o céu e o sol era fraco, seus raios estavam alaranjados, tipo fim de tarde de verão. Eu transpirava bastante, quanto mais andávamos, mais as roupas colavam em minha pele. A sede era forte. Olhei e vi entre aquelas pessoas, um menino me oferecendo sua saliva. Uma forte náusea me assolou e eu tive que parar.

- Vai se acostumado. – falou o guardião.

- Por que? – perguntei com a boca cheia de água.

- Aquele garoto é perverso, ele merece estar aqui, infelizmente terá que conviver com ele.

Olhei e vi quando o mesmo fez um gesto obsceno para mim.

- Não falei? Ele é insuportável. Agora chega, temos que seguir em frente.

*

Mais adiante, já sentindo minhas pernas pesadas vi uma cena que me deixou perplexo. Uma mulher sendo brutalmente espancada por vários homens, todos com pesadas barras de ferro nas mãos. Era possível ouvir o som das pancadas em sua cabeça, costas, pernas e braços. A mulher ao me ver gritou pedindo ajuda. Ameacei sair do caminho, mas o meu guardião com cara de cavalo me fez mudar de ideia.

- Tem certeza?

- Ela está toda arrebentada, veja. – apontei.

- Se for até lá, será você quem será espancado, aqueles homens estão aqui pra isso, puni-la por toda a eternidade.

- Mas o que ela fez para merecer isso?

O guardião me encarou por um breve momento. Tive medo dele pela primeira vez.

- Isso não te convém saber, agora trate de andar.

Segui andando e sem fazer qualquer questionamento. Vi muita coisa. Um homem nu raspando suas feridas inflamadas com um tipo de lâmina. Vi também um casal fazendo sexo anal de maneira horrenda. A mulher gritava muito, sentia dores e sangrava enquanto que o sujeito não parava de penetra-la. Me senti sujo, podre, incapaz de fazer alguma coisa. Olhei mais para frente e vi crianças chorando. Deu vontade de correr e conforta-las, porém mais uma vez o meu guardião me orientou a não sair do caminho.

- Esqueça esses sentimentos humanos, veja, eles não são humanos, você não é mais humano. Se sair do caminho passará a eternidade lá, é isso que você quer?

- Eu, eu ainda não estou entendendo nada. Você pode me dizer para onde estamos indo?

- Seu burro, ignorante, esse é o caminho do vale das almas. – se aproximou de mim. – precisamos continuar, ainda temos dois mil anos para andar.

Quase caí para trás ao saber.

- O que? Dois mil anos andando, não está falando sério.

Sem esperar tomei um forte tapa na cara. Meu nariz começou a sangrar.

- Jamais duvide de minha palavra seu monte de bosta, agora ande.

Raiva, agora eu estava sentindo muita raiva, a ponto de pular em cima do guardião e lhe aplicar um mata leão. Meu rosto estava pegando fogo e meu nariz latejava, xinguei a mãe do bicho em pensamento e tudo. Ele parou e girou nos calcanhares e me olhou.

- Você deve estar com um ódio mortal de mim, não é?

- Sim. Não precisava me dá aquele tapa, foi desnecessário. – voltei a limpar o sangue que descia do nariz.

- Vá a merda! Quem você pensa que é para saber o que eu devo fazer ou não? – gritou. As almas olharam para nós. – pensa que eu estou satisfeito tendo que te conduzir até seu destino? Não estou não. Por mim você ficaria no lugar daquela mulher fazendo sexo anal até seu intestino todo vazar pelo rabo.

Fechei minha mão e me preparei para socá-lo. O cara de cavalo sorriu e olhou para mim outra vez com aquele olhar de assassino.

- Não faria isso se eu fosse você.

- E porque não? – vociferei.

O guardião se transformou numa mulher. Eu perdi o chão e cai ajoelhando no meio dos ossos. Cada crânio agora dava altas gargalhadas de mim. Voltei a olhar para a moça em pé na minha frente. Lá estavam as marcas, as feridas no pescoço e braços. Ela sorria pra mim. Eu caí num pranto incontrolável. Os esqueletos brotaram do chão e me abraçaram. Um deles segurou em minha parte íntima e disse.

- Isso, anime-se, ela está aqui, veja, nas unhas dela ainda tem pele das suas costas seu porco imundo.

Abri a boca e gritei alto.

- Socorro meu Deus.

A moça se acocorou perto de mim enquanto eu era abraçado pelos esqueletos. Seus olhos transmitiam ainda o pânico do nosso último encontro. Ela me segurou pelo queixo.

- Tolinho, Deus não está aqui. Pare de chorar feito criança, sua eternidade acabou de começar. Feche os olhos e tente se divertir. – se levantou. – pois saiba que em mim doeu muito mais. – voltou a ser o guardião. – levanta daí seu covarde. – pisou em minha parte íntima ainda segura pelo esqueleto. – a sua eternidade acabou de começar. FIM.

Júlio Finegan
Enviado por Júlio Finegan em 08/05/2020
Código do texto: T6940798
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