ATRAVÉS DO VITRAL

O dia está lindo! Gosto de ver como o sol entra pela grande janela redonda e com um lindo vitral colorido. Gosto de sentar no chão e passar meus dedos por entre os feixes que entram. Daqui de cima, consigo ver as casas vizinhas, logo depois do imenso gramado verde da mansão; à direita, há uma casa amarela, nunca vejo seus donos, mas eles têm cães. Eu gosto muito de cães, mas mamãe diz que não podemos ter. Aliás, mamãe diz muita coisa:

- Catarine Marie, você não deve incomodar os patrões! Você tem de ser obediente! E não deve sair! O lado de fora é perigoso!

- Eu já sei disso, mamãe!

Ela é muito preocupada, e eu entendo; quando eu era pequenina, houve um grande surto de tuberculose, pelo que me contaram, e eu fiquei muito doente durante muito tempo.

As coisas nunca mais foram as mesmas, fiquei com a saúde debilitada e não pude mais sair ou brincar na rua. Passo a maior parte do tempo aqui onde chamam de sótão, eu chamo de quarto, meu e da mamãe. Antigamente vivíamos em outros aposentos, nos fundos da casa, mamãe governanta, papai jardineiro, Romeo e eu, crianças, apenas isso.

Durante a minha doença algo aconteceu, não sei o quê, nem quando ou como. Mas papai e Romeo saíram para cuidar do jardim e desapareceram, nunca mais foram vistos. Foi isso que mamãe me contou, sinto que ela sofre. Às vezes, ao anoitecer, a vejo pela janela caminhando por entre as árvores, tenho certeza de que espera a volta deles ou de alguma resposta. Como pode alguém sumir sem deixar vestígios?

Eu sofro também, mas bem menos; eu era pequena e faz tanto tempo. Hoje me incomoda mais não poder sair ou brincar com as outras crianças; mamãe tem medo que eu suma ou contraia alguma doença. Na época dos Holsten não era assim, eles foram os primeiros patrões dos quais lembro. Senhor e Senhora Holsten, Sara e Eduardo. Nós brincávamos no quintal entre as árvores, de pique-esconde, de pega-pega e corríamos atrás dos cães, muitos cães. Parecíamos da mesma família.

Logo após o sumiço de papai e Romeo, e quando melhorei de saúde, chegaram os Blaters, tão repentinamente que eu nem soube por que os Holsten foram embora. Acho que mamãe também não sabe, pois, quando a questionei, apenas disse que era costume os serviçais serem mantidos na casa quando os patrões as vendiam. Além de nós duas também ficou o Sr. Edgar, o cozinheiro. Quando ouço o ringir das escadas, já sei que é ele, homem gentil, sempre traz guloseimas que esconde debaixo de seu avental. Acho engraçado como caminha rapidinho com suas perninhas curtas e sua grande barriga, ele tem cheiro de alho com alecrim. Eu gosto. Às vezes, ouço mamãe dizer a ele para tomar cuidado com as coisas da casa.

Mamãe é esbelta, de cabelos negros enrolados em um coque, olhar doce e voz firme. O Sr. Edgar é atrapalhado, volta e meia quebra uma porcelana, mas é um homem bom e um bom amigo, ajuda mamãe ficar de olho em mim.

Ao longo desse tempo que estou reclusa, observei coisas estranhas na mansão. Várias vezes coloco minhas coisas em um lugar e elas aparecem em outro ou somem. Eu vivo aqui há tanto tempo que poderia jurar que essas paredes eram azuis. Eu sou um pouco supersticiosa, porém mamãe não é, ela diz que sou esquecida e bagunceira, apenas isso. Eu sei que não é somente isso. A única coisa que não muda é o vitral. Lindo. Com a chegada dos Blaters, pela janela eu via Camila, filha única do casal, brincar no pomar, mas eu não podia ir até lá. Sempre a observava. Até que um dia ela acenou para mim, e assim começou nossa amizade. Camila vinha quase todos os dias em meu quarto para brincarmos, nós fazíamos desenhos e conversávamos.

Ela gostava do meu vestido lilás e da presilha com uma pequena margarida na ponta que eu usava, dizia que combinava com minha pele clara e meus longos cabelos castanhos. Camila também era bonita, com seu cabelo cor de fogo e seus grandes olhos mais azuis que o céu, só ficaria mais bonita se ao invés de usar calças comprimidas, usasse um vestido bem florido. Papai dizia que meninas são princesas e princesas se vestem de flores, disso eu me lembro bem.

Camila me contava sobre coisas lá de fora. Disse que na casa rosa, à esquerda da minha janela, morava uma senhora de cinquenta e poucos anos, vivia sozinha, sem marido e nem filhos, chamava-se Ilda. Além de muito querida, tinha um belo jardim com muitas flores coloridas que exalavam um perfume que enchia a alma de felicidade. Disse que contou sobre nossa amizade a ela e também que eu gostava muito de flores, contou minha história e como eu vivia, ela se emocionou, disse Camila. Dona Ilda relatou que já havia me visto, observando o dia através do vitral. E penso que também já posso tê-la visto passeando.

Em um determinado verão, os Blaters receberam Marcos e Felipe, sobrinhos do casal que passariam as férias, e junto com eles veio Joli, a cadela mais bonita que já vi, uma grande Border Collie marrom e branca.

Enquanto os meninos estavam na casa, nossos encontros eram menos frequentes. Camila dizia que precisava me proteger deles, pois eram monstrinhos que não fariam bem a mim. Pediu que eu ficasse longe deles, e que ela precisava dar atenção aos primos. Então eu descia sorrateiramente alguns degraus do primeiro de dois lances, da grande escada de madeira maciça que levava até o primeiro andar da casa, sem que mamãe e Camila me vissem e espiava. Adorava ver Joli pulando nos garotos, gostaria de poder brincar assim, mas acho que ela não gostava de estranhos, toda vez que tentei me aproximar, mesmo escondida, Joli enlouquecia latindo. Nada de cachorros para mim.

Mamãe nunca soube de meus encontros com Camila e nem de meus passeios pela casa, ficaria furiosa, e o Sr. Edgar fazia vistas grossas ao me ver escondida pela casa, apenas dizia “cuide-se pequenina”. Ele tinha problemas maiores, não saía da cozinha. Acho que os Blaters comiam muito. O Sr. Edgar não apreciava nem um pouco que mexessem em suas panelas e utensílios. Volta e meia se emburrava e escondia as coisas como se fossem suas e não de seus patrões. Tinha verdadeiro horror daqueles meninos entrando e saindo de sua cozinha. Por esse, motivo aproveitava a noite pra fazer as devidas faxinas sem ser interrompido, quando teoricamente a casa estava mais tranquila.

Nessas minhas descidas, notei que a decoração estava diferente, mas ainda era imponente. A grande sala, logo ao pé da escada principal, tinha um ar meio sombrio, as portas eram bem altas, quase no teto, as janelas eram amplas e vestidas com lindas cortinas pretas e pesadas que iam até o chão e através delas via-se todo o belo gramado. Logo ao lado na sala de jantar, havia um belo lustre de cristal pendurado sobre uma mesa elegante com muitos lugares. À frente, um longo corredor onde podíamos ver algumas portas, a maior e que estava sempre entreaberta era a da cozinha. Do lado inverso, víamos o lavabo e outras duas portas que hoje eram escritório e lavanderia, mas antigamente eram nossos aposentos. Todos os cômodos eram imensos, principalmente ao meu olhar, o que dava a impressão da mansão ser maior ainda. No andar de cima, cinco quartos e um banheiro muito espaçoso e, por fim, logo após outro corredor, nosso quarto. Em uma de minhas investidas para observar as crianças, escutei uma conversa entre elas. Marcos comentou com Felipe:

- Esta casa me dá calafrios! É tudo muito estranho aqui, parece que estamos sendo vigiados e esta cadela que não para de latir.

- E na cozinha, não posso nem entrar, é sempre desconfortável e, além disso, tenho certeza de que havia mais pratos e copos, não lembro de termos quebrado nada. Onde estão? É estranho. Completou Marcos.

E deveria ser mesmo, o Sr. Edgar detestava a bagunça deles no seu local de trabalho e Joli latia por me ver a espreita, é claro. Esperei que Camila explicasse a eles, mas em vez disso, apenas completou dizendo:

- Vocês são meninos medrosos, é só isso, nada de anormal acontece aqui.

Eu não sei se concordo, existe uma menina doente que vive trancada e não pode nem brincar na sala, não sei se isso seria considerado normal. Mas os meninos, assim como eu, pensavam sobre as coisas que somem, mudam de cor e de lugar, também não acreditavam que era apenas medo ou desordem.

Mamãe nem sempre estava comigo, principalmente enquanto eu aprontava das minhas, ela tinha de desempenhar suas tarefas de governanta. Tinha de manter a organização da casa, para isso estava sempre circulando por todos os cômodos e também pela área externa.

O Sr. e a Sra. Blater trabalhavam bastante e viviam no escritório, eu nunca os via. Em uma dessas noites, enquanto estavam em seus afazeres, Marcos, Camila e Felipe gargalhavam na sala brincando com Joli. Eu ouvia tudo de meu quarto, trancafiada.

Nesse dia, enraiveci e até gritei com mamãe, não conseguia entender, eu estava bem e eles não pareciam doentes.

- Quero brincar com eles!

- Não pode, você sabe, não está preparada e, além do mais, somos serviçais e eles patrões, devemos ficar aqui. - Respondeu.

Revidei dizendo que Camila era minha amiga e que todo este tempo que estivemos juntas eu não adoeci. Mamãe nessa hora mostrou-se apavorada, seu semblante mudou, pegou meus braços e aos chacoalhões ordenou:

- Nunca mais saia daqui. Você não entende o perigo!

Foi nesta hora que senti um desespero misturado com raiva e o medo de ficar para sempre vivendo dessa forma. Desvencilhei-me dela e, com a velocidade de um raio, corri para descer as escadas em direção as crianças, decidida a mudar essa situação e dar um pingo de alegria aos meus dias sombrios. Eis que ao chegar ao fim do primeiro lance, Joli pôs-se a latir ferozmente. Marcos, ao se virar para verificar o que estava acontecendo, olhou-me no fundo dos olhos e soltou um grito que assustou inclusive a mim. Felipe apavorou-se da mesma forma. O Sr. e a Sra Blater ouviram o estardalhaço e correram ao socorro de todos, mas só chegaram a tempo de ouvir Camila gritar:

- Catarine, não desça!

Minha mãe mais que depressa, puxou meu braço e arrastou meu pequeno corpo para o nosso quarto, apenas olhou para mim, não precisou dizer nada. Fiquei ali quietinha e com medo de que viessem aplicar-me um corretivo, afinal sou filha da empregada e, por eles terem visto todo o alvoroço, isso era sério. Também fiquei apreensiva por mamãe, o que fariam com ela? Exausta, adormeci.

Na manhã seguinte, logo ao acordar, assustei-me ao ver nosso quarto completamente vazio, apenas eu em minha cama e nada mais. Tudo havia sumido. Ao levantar, notei um pequeno pedaço de papel e nele havia um desenho de um coração com os dizeres: “amigas para sempre”. Certamente, era de Camila, era sua letra. Achei bonito, mas estava preocupada com nossa situação, fomos expulsas e por minha culpa. Corri até a porta, mas antes que pudesse abrir, mamãe entrou acompanhada do Sr. Edgar. Pronto, algo ruim aconteceu. Pensei.

- Onde estão nossas coisas? Fiz coisa errada, não é mamãe?

Calmamente ela se abaixou até mim e com um ar sereno e olhos marejados, disse:

- Não meu amor, nada de errado, mas agora está na hora de partirmos.

Por um breve instante, alegrei-me, iria sair finalmente de minha cela velada. E também devo estar curada. O Sr. Edgar sorria um riso largo, enquanto assistia à cena. Então algo me veio à cabeça:

- Mamãe! Onde está a Camila? E nossas coisas?

- A doce Camila já se foi, e nossa coisas? Bem... elas nunca foram nossas.

Confusa e sem entender nada, olhei ao redor, virei-me em direção ao vitral. Por entre a janela entreaberta pude ver dona Ilda, desta vez caminhava em direção à porta da frente da mansão; em suas mãos carregava algo. Olhei para mamãe com um olhar afoito, e com a voz suave ela permitiu:

- Vá e se despeça!

Os dois ficaram no quarto, enquanto eu corria pela escada até o andar térreo. A casa estava vazia, igual ao nosso quarto. Apesar de minha pressa, não cheguei a tempo. Dona Ilda já estava longe, com seus belos cabelos brancos e seu vestido azul sob o sol. Tentei abrir a porta, estava trancada, olhei pelo vidro e gritei, não tenho certeza se ela me ouviu, mas quando estava bem afastada, virou-se, abriu um lindo sorriso e acenou. Devolvi o sorriso. Fiquei ali alguns instantes até perceber que em frente à porta havia algo, devia ser o que ela tinha em mãos. Era um lindo vaso com pequenas flores coloridas, exatamente como as minhas preferidas. Junto do vaso, havia um bilhete escrito à mão. Estiquei-me tudo que pude e consegui ler a mensagem que dizia:

“Há vinte e dois anos, a iluminada Camila criou um elo entre nós.

Daquele dia em diante, passei a rezar por você e sua família.

Sinto que enfim seguirá seu caminho...

... os que já foram, lhe esperam.

Logo nos encontraremos, minha pequena flor!

Descansem em paz.”

AGRADEÇO AOS AMIGOS E COLEGAS DE CONCURSO POR FAZEREM DESDE TEXTO O VENCEDOR!

PARABÉNS A TODOS!

TEMA: Desaparecimentos.