Skandalon - CLTS 11

Skandalon, no grego, é o gatilho que aciona uma armadilha.

Maria e Antônia estudavam juntas e eram amigas desde a primeira série. Maria era obcecada pelos livros do Tolkien, enquanto Tônia amava Crônicas de Nárnia. Eram crianças bem criativas, do tipo que está sempre fazendo brincadeiras que envolvem criaturas imaginárias. Quando ganharam celulares, depois dos 10 anos, mesmo quando não se viam pessoalmente se falavam todo dia.

Nessa fase dos 10 anos, outra amiga se juntou a elas, formando um trio: Adriana, que estudava com elas e morava no mesmo condomínio que Maria, de modo que ia de ônibus com ela para a escola todo dia. Adriana e Antônia não eram tão próximas assim uma da outra, mas tinham Maria em comum; aliás, ambas diziam que Maria era sua melhor amiga. De longe elas não eram as mais populares da escola na adolescência; aliás, alguns as viam como um pouco desajustadas, meio doidas, talvez um pouco imaturas para a idade. O fato é que elas não estavam muito interessados em garotos, bandas ou outras coisas consideradas de adolescente.

Certo dia, quando o trio tinha 12-13, as três estavam juntas brincando em um canto deserto do grande terreno baldio atrás da escola, para onde as crianças e adolescentes fugiam quando matavam aula (seja para brincar, seja para fazer coisas ilícitas, ou para "ficar"), Maria aproveitou um momento em que Antônia estava distraída com alguma coisa para mostrar para Adriana, tirando do esconderijo sob sua jaqueta xadrez branca uma faca fina e bem afiada, protegida por uma capa, do tipo de cortar legumes ou bife. Adriana assentiu com a cabeça, um pouco apreensiva, mas compreendendo bem a situação.

Foi naquele mesmo lugar que, uma semana antes, Adriana e Antônia haviam brigado, e Maria tentou apartar. Na confusão, Adriana jogou uma pedra na cabeça da Antônia, abrindo um ferimento que sangrou bastante. Apesar disso, graças à intervenção de Maria, a três continuavam a andar juntos, sendo que as meninas que brigaram ficaram sem se falar por uns quatro dias. Obviamente, Antônia mentiu em casa sobre o ferimento, a pedido de Maria.

Naquele monento, Antônia olhou para trás e viu a faca na mão de Maria. Arregalou os olhos, e então as outras souberam que precisavam fazer o que haveriam de fazer depressa. Maria avançou contra a amiga e enfiou a faca nela diversas vezes, acertando braços, pernas, barriga, peito e rosto, sem a menor perícia, enquanto conjuravam um encantamento em grego antigo.

Após as primeiras facadas, Adriana agarrou Antônia pelos cabelos e a levou para dentro do matagal. Ali Maria terminou o serviço, completando vinte facadas, só parando de golpear quando a amiga parou de se mexer. Elas largaram o corpo, tentaram lavar o sangue que estava nelas com as garrafas de água que traziam, mas logo perceberam que não seria suficiente. E mais: os gritos da menina haviam atraído a atenção de algumas crianças, que se aproximavam, curiosas. Elas correram, seguindo uma pista interestadual, e caminharam por horas à beira da estrada, chorando, cantando e murmurando coisas incompreensíveis. Não foi difícil, entretanto, para a polícia encontrá-las antes que anoitecesse.

- Onde está o corpo da Tônia? - Perguntou Adriana naquela noite, após quase três horas de interrogatórios.

- Ela sobreviveu. - Respondeu calmamente o policial. - Ela conseguiu ser resgatada a tempo, e está em coma no hospital agora.

- Ah, que bom. - Adriana não parecia entusiasmada, mas também não parecia triste ou irritada. O policial descreveria mais tarde sua expressão e sua voz como indiferentes. - Eu vou poder voltar à escola amanhã? Sabe, desde a terceira série, eu nunca faltei nenhum dia.

Maria, por sua vez, não falava nada. Ela entrou em um tipo de transe em que, cada vez que alguém tentava se comunicar com ela, só conseguia obter como resposta a frase "a fome dele é insaciável, a fome dele é insaciável". Adriana confessou que elas haviam tentado matar a amiga para agradar ao deus Saturno. Ambas o descreveram, independentemente, como um homem muito alto - maior do que um prédio de cinco andares -, de longos cabelos brancos, olhos esbugalhados e pele pardo-escura. Elas queriam se oferecer para serem servas do deus, mas para isso precisavam participar de um ritual de iniciação que requereria um sacrifício de sangue. Se ele se agradasse do sacrifício, ele lhes concederia uma grande longevidade e poderes maravilhosos, transformando-as em um tipo de mini-monstro, ou coisa que valha.

As moças foram declaradas mentalmente incapazes. Claramente viviam em um mundo de fantasia. As investigações chegaram à conclusão que elas eram inofensivas até então, mas o que despertou esse lado particularmente cruel delas foi terem lido na internet sobre o quadro "Saturno devorando um filho". Aparentemente elas ficaram impressionadas com ele e suas mentes vulneráveis fez o resto do trabalho, inventando toda aquela história.

Embora estranha, esse seria um caso até bem comum. Eu já vi diversas histórias de crianças ou adolescentes que surtam e matam alguém a partir de um gatilho como esse. Entretanto, exatamente 538 dias após a tentativa de assassinato de Antônia, ela, Maria e Adriana desapareceram sem deixar rastros.

Nos dias seguintes, diversos outros casos de desaparecimento foram registrados naquela região. Vários desses desaparecidos relataram ver, cada um à sua vez, uma grande fenda negra no céu, que ninguém mais além da pessoa podia ver. Algumas horas depois elas sumiram sem deixar rastros. Essas pessoas não sabiam, mas todas elas tinham uma única coisa em comum: elas conheciam Antônia. Sim, antes que aquele mês terminasse, todas as pessoas que conheceram Antônia na vida desapareceram.

Eu não me alimentava há tanto tempo que eu não tinha mais fome. Ficava apenas no meu canto, observando a humanidade, como quem fica assistindo uma peça teatral que nunca termina. Mas quando essas duas meninas perturbadas ofereceram sangue de uma virgem para mim sem querer, isso me despertou. Eu tentei, sim, eu tentei resistir o quanto pude. Mas não suportei mais, tive que comer. E, quanto mais eu como, mais fome eu sinto. A minha fome é insaciável.

Como o sangue de Antônia foi oferecido a mim, ela era o meu portal para o seu mundo, e através desse portal, mesmo depois que a matei, eu pude devorar todos aqueles que a conheceram. Mas depois que fiz isso, já não podia atacar mais. Teria que voltar ao meu estado de mero observador, esperando que alguém, acidentalmente ou não, me libertasse de novo. Por isso resolvi contar a outros sobre Antônia. Se mais pessoas a conhecessem, mais acesso a comida eu teria. Bem, agora você a conhece.

O gatilho foi acionado.

TEMA: Desaparecimentos.