O GUARDIÃO DAS CATACUMBAS clts 11

Naquele inverno as coisas não andavam tão boas. Inimigos agiam em varias frentes, não havia como distinguir os verdadeiros aliados. As doenças empesteavam as tortuosas vielas onde ratos e moscas sobreviviam graças às imundices humanas.

Peregrinos penitentes oriundos de toda Europa afluíam para a cidade em busca de graças, afinal, todas as estradas chegam a Roma. Fanáticos disputavam adeptos entre aquele bando de loucos maltrapilhos dispostos a tudo em troca de um pão mofado.

Padre Pontchello poderia até ocupar um bispado, infelizmente seus desafetos fizeram com que o parrudo e atarracado senhor de meia idade fosse indicado como guardião das catacumbas, o pior local do Vaticano. Como o nome sugere ali estaria enterrado em meio a suas paranoicas teorias sobre o grande complô que escravizaria a humanidade. Um verdadeiro cala boca ao falastrão com certas influências.

Por quase dois milênios em nome da fé, cristãos combatiam e saqueavam toda a terra conhecida. Nórdicos, mongóis, africanos e orientais, sofriam nas mãos dos cobiçosos senhores da igreja, por um breve tempo alguns bravos resistiam, mas cedo ou tarde, sitiados acabavam derrotados, perdendo assim seu direito a liberdade religiosa a fim de cultuar o único Deus onipotente e com a derrota seus segredos como despojos seguiam em cortejo aos cofres da cidade papal.

Durante anos o cargo de Guardião das Catacumbas era respeitado, até cobiçado, porém devido à escassez de milagres, as bugigangas ali estocadas perderam o valor, eram tralhas incompreendidas de povos bárbaros. Pontchello nunca esmoreceu, mantinha tudo na perfeita ordem, peças eram cadastradas e estudadas sistematicamente. Livros, caixas, vestes, pedras e outras quinquilharias haviam perdido o valor, não representavam perigo algum. O poder estava no ouro, pouco dele existia naquele sombrio calabouço.

Enquanto a sombra da maldade insinuava-se nos semblantes sorridentes de mendigos anônimos, caminhando apresados por entre a maré de esfarrapados três clérigos venciam a multidão da Praça São Pedro. Seu destino não era ter com o Papa, seguiriam por trilhas menos nobres, a traição espreitava oculta nos detalhes, qualquer um poderia ser o inimigo. Embrulhado num roto pedaço de pano, papeis confiscados em Veneza eram trazidos em segredo. Olhando mais de perto, um dos fiéis servos de Cristo parecia ter marcas de sangue em sua túnica. Perante aos olhos do Criador, todos tinham sangue em suas mãos, eram o braço forte da fé, os defensores da palavra Divina que de bom grado dariam sua vida terrena no intuito de decepar as varias cabeças da besta.

Nas profundezas do palácio eclesiástico, soterrado pelas grossas pedras de mármore, longe das vistas do mundo cristão, Padre Pontchello aguardava ansioso. Não tinha duvidas, sua decisão já havia sido tomada, dali em diante tudo que poderia acontecer apenas lhe assegurava de estar fazendo o certo.

Os impuros tomavam conta de grande parte do mundo civilizado, marchavam secretamente contra Roma, na verdade poderiam estar já dentro da própria organização episcopal. O circulo das intrigas, dos favores sufocavam qualquer vã tentativa resistir aos invisíveis fios do destino onde cada ação era previamente estudada tornando o livre arbítrio apenas um balsamo entorpecente turvando a visão da tal liberdade. As rédeas do destino repousariam nas mãos de um único senhor.

O padre tinha seus próprios planos.

Preparados noutro aposento menos sórdido, doze fieis seguidores de Pedro aguardavam. Entre noviços e frades eleitos pelo enorme fervor reinava apenas o silêncio, não necessitavam diálogos, compreendiam a importância de estarem reunidos, alguns nem se conheciam, pois este era seu primeiro encontro, jamais se conheceriam devido a destinos incertos a serem tomados.

Ao receber o embrulho, Pontchello nem precisou terminar a leitura. Conhecia seu conteúdo, sabia que o fim estava próximo. Agora os quatro se juntaram aos demais.

Numa grande mesa protegida pelo olhar guardador se São Miguel Arcanjo estavam cuidadosamente preparadas algumas sacolas com suprimentos. Documentos e recomendações assinadas pelo próprio Papa Pio IX davam como oficial tal empreitada. Resta dizer que ele efetivamente nunca soube o que estava assinando. Um pequeno embornal anexo escondia nomes e origens daqueles homens que ali renasciam. No dia seguinte corpos vítimas da peste foram encontrados e neles a prova do fim da existência terrena dos confrades secretos do Padre Pontchello.

Ao soprar do frio vento da noite, peregrinos comuns partiam de Roma, uns para o sul, outros para o norte, todos solitários, todos em busca do novo mundo, cada um com seu tesouro, na mente a decisão de para sempre ocultar a ferramenta do Demônio.

O Guardião das Catacumbas saqueou aquilo que jurou proteger. Muito lixo foi deixado, somente o importante fora levado. Para a igreja nada de valor havia desaparecido, apenas algumas tralhas que recordavam povos subjugados. Numa mesinha, envolto num trapo velho uma tola profecia foi esquecida. Dois dias após o roubo, parcialmente devorado pelos cães, a carcaça do tolo Pontchello foi encontrada. Agora o falso padre voltou a repousar entre as paredes das catacumbas onde por décadas foi seu lar. Em respeito e para evitar escândalos o fato foi censurado, uma parede foi erguida e nunca mais haveria outro guardião.

O Rio de Janeiro era uma das mais progressistas cidades daquele tempo. A presença da família Imperial tornava glamorosas as noites sobre as luzes dos candeeiros. Muitos senhores bajuladores faziam questão de manter residência nas imediações.

No porto um intenso fluxo de embarcações fazia a permuta entre os bens produzidos. Homens em busca de melhor fortuna desembarcavam sem nenhum vintém. A igreja enviava seus signatários a fim de domar a terra pagã angariando assim mais discípulos na sua luta sagrada.

Após semanas de maresia um grupo de beatos tocou finalmente o solo. A maioria com destino ao interior paulista. Alguns continuariam até o sul. Dentre aqueles santos, um em especial sempre se conservou sisudo, o silêncio era sua virtude, repetia sempre em bom latim. Na viagem apenas orações, em terra, rápido se desligou do rebanho. Tinha contatos. Dias depois seguia em outra comitiva a desbravar os sertões mineiros.

Desviando das rotas auríferas, procurando sempre estar incógnito seguiu rumo a Pitangui, de lá para o arraial de Santana do São João Acima onde um grupo de beatos construía uma singela capela no alto do morro do Bonfim, a igrejinha seria consagrada ao filho de Deus.

Em sua bagagem, além da fé, um terrível segredo que deveria ser ocultado.

Tema: Teoria da Conspiração

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 23/05/2020
Reeditado em 23/05/2020
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