Conto da Última Hora.

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Benevides seguia o caminho bem traçado pelas marcas das rodas de carroça no meio do matagal. Lanterna na mão, cigarro de palha no beiço, faca na cintura e duas ou três doses de pinga boa na cabeça, eram seus companheiros na noite fria praqueles lados perto do riacho Pedreguho. Vinha sereno, sem muito matutar, gostava da noite e de como a escuridão em volta lhe parecia um novo mundo. Vez ou outra apontava o facho de luz nalguma direção onde um bicho reclamava, Nada para se preocupar. Desde criança conhecia aquelas paragens, as grotas, as ravinas, até mesmo as raízes das árvores mais antigas. Benevides voltava pra casa onde muher e filha o esperavam pra janta.

Numa volta do caminho, Benevides perdeu a trilha. "Que diacho", ele pensou. Jogou a culpa na cachaça e seguiu no meio do mato alto, buscando, de quando em quando, observar ao longe procurando sinal de luz. Qual nada, tudo preto como piche. A essa altura, a vegetação tornou-se mais densa e arranhava os braços do sertanejo. Sentia os pés afundando na terra de forma diferente e nem era época de chuva. O raio da lanterna menos mostrava que confundia. Depois de vários minutos insistindo na aposta, resolveu voltar à trilha onde havia se perdido. "Mas como faria isso", perguntou-se. Não sabia o rumo para voltar. Poderia ser para trás, pra frente, direita ou esquerda. Tanto faz, ele não lembrava. Então bora tocar reto. Uma hora chega em algum lugar. E assim foi.

- Cadê papai, mamãe? - perguntou Isaura.

- Tá chegando, mas come logo antes que esfria a janta.

As duas comeram o arroz com frango e esperaram o homem chegar.

Lá no meio do nada, Benevides começou a ter medo. O pai do seu pai havia sumido há muitos anos sem explicação nenhuma. Havia saído para caçar uma noite e escafedeu-se. Nem sinal, ou mancha. Virou poeira. E agora, o neto estava ali, totalmente desorientado. Para todo lugar que virava o rosto não reconhecia nada. De repente, ouviu um gemido fraco, a poucos metros à sua direita:

- Quem tá aí? - perguntou no susto.

Em resposta, o gemido aumentou. Talvez fosse o vento que encorpou nesse instante fazendo o mato dançar e as folhas das árvores aplaudirem.

- Se for de bem, apareça, Se for de mal, vai-te embora - preconizou o homem.

Depois de um silêncio absoluto, sem resposta, sem cochicho, sem respiração. Benevides destampou correr igual lagartixa na pedra. Corria e nem olhava para trás. Tinha certeza que estava sendo seguido. Por duas vezes sentiu o roçar de uma mão no ombro. O chapéu já se perdera há muito, o suor escorria nos olhos e o faziam chorar. Estava em desespero, em choque. Na correria balançando a lanterna parecia querer cortar o mato como se fosse um facão, mas era no peito que as folhas se rasgavam e o deixavam com lambidas cortantes. Quando pensou em diminuir a fuga, a botina encontrou uma pedra, e o tombo levou o sujeito arrastar-se no chão por alguns metros.

Ficou ali deitado no escuro, a lanterna voou para longe. Só via o céu por entre as frestas das ramagens e ansiou dormir o mais profundamente que pudesse. Ao fechar os olhos cansados escutou barulho de pratos sendo batidos próximo dali. A custo, sentou-se, abriu os ouvidos e percebeu vozes. Aprumou-se em pé, fixou os olhos o mais que pôde. Havia uma lâmpada solitária lá distante. Marcou rumo e partiu.

- Espere - ouviu alguém dizer às suas costas.

Arrepiado de horror, perdeu a força das pernas e estacou feito pedra.

- Não tenha medo, Benê - disse-lhe a voz - só diga à sua avó e seu pai que estou aqui vigiando por todos.

- Vô, é senhor ? - Benevides conseguiu perguntar.

- Eu mesmo, agora vai-te embora, antes que o bicho do mato se arrependa e queira você pra ele também - respondeu a voz.

- Vem comigo, vô - pediu o sertanejo, entre apavorado e confuso.

- Se eu saio, você fica ou pior, ele busca Izaura para cá.

- Isso nunca, vô. Mas eu volto pra te buscar.

- Nem fale uma asneira dessa menino - gritou a voz - e agora corre, porque o bicho tá vindo aí.

Sem esperar nova ordem, Benevides disparou no rumo da lâmpada. Às suas costas parecia que um furacão tinha chegado tamanho o estrondo feito. Ouviu um grunhido feroz e o grito do avô em desafio.

Após alguns instantes, entrou na sua casa de uma vez só e trancou a porta. Estava amarelo como açafrão moído. Sentou-se na primeira cadeira que viu e tremeu.

- O que foi, papai? - perguntou Izaura.

A mulher dele buscou água no copo e ofereceu.

Benevides olhou para as duas e chorou.

- A gente vai mudar amanhã e não volta aqui nunca mais - ele disse.

- Mas que loucura é essa, hômi? E a roça? e os trem nosso?

Antes de responder, a porta da casa foi aberta com violência e o monstro mais horrendo já visto invadiu o lugar carregando na bocarra o corpo de um velho. Farejou o ar e mirou os olhos de Benevides. Soltou o cadáver no chão e foi em direção à Izaura. Benevides se atracou com o bicho, cravou-se a faca no pescoço rugoso, o que fez a coisa se virar para fora e fugir com o homem em suas costas.

Ele nunca mais foi visto. A família enterrou o avô desaparecido e sumiram da região.

Nas noites mais gélidas daquelas bandas, há quem diga ter visto um homem montando num dragão em luta feroz.

FIM.

Olisomar Pires
Enviado por Olisomar Pires em 23/05/2020
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